Funcionalismo: a quebra da barreira entre Política Criminal e Direito Penal
Estado: DF
Carlos Eduardo Freitas de Souza é Defensor Público Substituto em Primavera do Leste/MT e Poxoréu
1.Introdução
O direito penal, como todas as ciências naturais, sofreu uma profunda mudança ao longo de sua história (causalismo, neokantismo, finalismo, funcionalismo e teoria constitucionalista do delito). A incorporação prática destas mudanças ,ocorridas a partir de 1970, é praticamente invisível em nosso sistema jurídico. A sua discussão é essencial para que tenhamos um direito penal mais justo nos casos concretos.
2. Causalismo
O primeiro método a ser analisado é o naturalista, de Von Liszt, pregando a constituição do crime em 5 requisitos: conduta (ação, excluindo a omissão), tipicidade (nullum crimem sine lege, descoberto por Beling em 1906),a antijuridicidade (contrariedade da conduta ao direito), a culpabilidade (culpável) e a punibilidade(sancionado por uma pena).
A ação seria o movimento corporal capaz de produzir alguma modificação no mundo exterior (fenômeno perceptível pelos sentidos).
A antijuridicidade representaria a valorização do fato decorrente de um fenômeno natural, que se verificaria pela simples ausência de uma causa de justificação.
A culpabilidade seria a valorização do autor proveniente de um vínculo entre o agente e seu ato - conceito psicológico de culpabilidade - cujos pressupostos seriam: a imputabilidade e dolo ou culpa Dolo e culpa faziam parte da culpabilidade. Aliás, são duas formas de culpabilidade.
Penetrando nas categorias do delito, chega-se a uma bipartição do delito. A parte objetiva engloba a tipicidade, proveniente do 'nullum crimen, sine lege', e a antijuridicidade é a contradição entre a conduta típica e a norma de direito, desde que não haja causas de justificação (antijuridicidade indiciária). A subjetiva é constituída pela culpabilidade, que seria a relação psíquica a conduta e o resultado (teoria psicológica da culpabilidade [1]).
Esta sofreu profundas modificações, introduzidas por FRANK, idealizador da teoria psicológica-normativa da culpabilidade, que seria o vínculo entre o agente e seu fato, além do juízo de reprovação do autor de um fato antijurídico, porque ele podia ter agido de modo diferente.
Discorre, desta forma, a respeito de mais um pressuposto da culpabilidade: a exigibilidade de conduta diversa. Seria ela, portanto, a reprovação do autor por ter cometido um fato antijurídico, sendo que ele podia ter agido conforme o direito.
3. Neokantismo
O neokantismo teve como idéia principal dotar todos os requisitos do delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) de conteúdo valorativo, principalmente a tipicidade sendo encarada como a descrição de uma ação socialmente lesiva, a antijuridicidade passou a ser material, ou seja, levando-se em conta a lesividade social e a culpabilidade passou a ser normativa: juízo de reprovação pela prática do ilícito típico, incluindo a exigibilidade de conduta diversa (concepção defendida por Frank).
O tipo deriva de um juízo de valor para selecionar o que é mais danoso para o ser humano e para a sociedade. A tipicidade não é mero indício da antijuridicidade, mas sim a sua própria razão de ser(ratio essendi). Se o fato é típico, naturalmente é, também, antijurídico.
A culpabilidade teve como base a teoria psicológico-normativa, idealizada por Frank, que pregava que só é culpável o agente se dele era exigível comportamento diverso, nas circunstâncias em que agiu [2] . O Direito Penal passa a ser uma ciência valorativa, não neutra e nem meramente classificatória, como a botânica. Teve Edmund Mezger [3] como principal expoente.
4. Finalismo
O finalismo teve Welzel [4] como principal teórico. Seu método foi o ontológico (conceitual), ou seja, todas as categorias do delito são referidas a conceitos pré-jurídicos, obtidas por mera dedução, confiando-se na lógica intrínseca do objeto que se vai regular [5].
A ação é de natureza finalística, ou melhor dizendo, é a ação naturalística do homem dirigida a uma finalidade. Por exemplo: A quer matar B e acaba atirando em B e conseguindo o seu intento, porque quis que este resultado ocorresse.
O dolo e a culpa, em decorrência disso, passam a pertencer ao tipo penal. Desta feita, se houver uma ação, desprovida de dolo ou culpa, esta será considerada atípica. Um bom exemplo disso: é o atropelamento de um suicida que atravessa um estrada por um motorista de ônibus, sem que este tenha tido dolo ou culpa.
Além disso, o dolo passa a ser natural, representando a consciência e a vontade de realizar a conduta e a consciência da ilicitude passou para a análise da culpabilidade. Em resumo, dolo natural é aquele dolo desprovido de consciência da ilicitude e, portanto, abandona o conceito de dolus malus do causalismo.
A culpabilidade passou a ser definida como um juízo de reprovação, excluindo-se, portanto, todos os aspectos subjetivos e foi adotado a concepção normativa pura da culpabilidade [6]. São seus requisitos: imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude).
Prefere o desvalor da ação ao desvalor do resultado. Por isso, defendeu a punição do crime impossível na Alemanha. O finalismo valorizava a intenção de um agente que disparava um projétil contra um cadáver . Desta feita, pune-se a intenção e não a lesão inequívoca de um bem jurídico tutelado (conceito que será defendido mais adiante pelo funcionalismo).
5. Funcionalismo
A célebre frase de Von Liszt: 'O direito penal é a barreira intransponível da política criminal' consiste no abismo em que se encontra o nosso direito penal atualmente.
Surge, portanto, o funcionalismo que visa a superar essa teórica união impossível pregada pelos finalistas, como Welzel. Roxin tentou vincular estes dois conceitos e não desuni-los. É importante trazer uma nota dele em seu livro Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal[7] .
Antes, dizia Roxin, os sistemas eram fechados (dedutivo-axiomático) e eram meramente classificatório. Não concorda com isso e defende um sistema teleológico, ou seja, orientado para o cumprimento de finalidades político-criminais.
A partir de então, cada categoria do delito deveria estar estritamente ligada à política Criminal. Tenta, desta feita, aproximar os conceitos de Direito Penal e Política Criminal.
Defende uma decisão justa para cada caso concreto e não uma decisão tecnicamente perfeita. Um exemplo claro desta aplicação é a negação da aplicação da pena de 6 anos para um simples beijo lascivo, em decorrência da desproporcionalidade da pena e do fato. Aplica-se, portanto, a pena de 2 anos, que era a pena aplicada antes da entrada em vigor da Lei dos crimes hediondos.
Outra aplicação do funcionalismo é o reconhecimento do princípio da insignificância para delitos de bagatela, como o descaminho inferior a 2500 reais[8] , furto de uma cebola, etc.
A lógica do princípio acima mencionado, é que não se pode matar um passarinho com um canhão. Isto significa que o Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, quando outros ramos do Direito puderem solucionar o conflito, devem ser utilizados em primeira opção.
O Direito criminal, portanto, somente pode punir condutas que sejam tipicamente ofensivas, antijurídicas, culpáveis e puníveis.
Esta tipicidade é entendida em sentido material (fato ofensivo típico), ou seja, não basta que haja a subsunção da conduta à letra da lei, mas é necessária que haja uma efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido e que esta conduta caracterize um risco proibido (teoria da imputação objetiva).
Enfim, com estes posicionamentos, Roxin desenvolveu a dogmática penal, superando o atrasado método positivismo legalista com seus excessos abstrato-dedutivistas.
6. Teoria Constitucionalista do Delito
A teoria constitucionalista do delito nada mais é que a teoria funcionalista, aproveitando os princípios constitucionais como seu eixo principal, como dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, etc para atingir às finalidades do Direito Penal.
Sua base ideológica está centrada nos direitos fundamentais e só considera criminalmente puníveis aqueles ataques concretamente ofensivos a bens jurídicos importantes, em consonância com o princípio da fragmentariedade.
Daí, dizer que somente os ataques mais intoleráveis e que possam causar repercussões visíveis para a convivência social é que devem ser castigados penalmente.
Critica o modelo subjetivista (o indivíduo é condenado pelo que ele é) e não pelo que ele faz (modelo objetivista).
A tipicidade, doravante, passa a ser não a apenas a tipicidade legal (mera subsunção do fato à letra da lei), mas exige-se que haja um desvalor do resultado grave (como exposto, acima, na descrição da tipicidade material).
Desta feita, se você quer ser um jurista do 3º milênio, é bom ficar atento a esta mudança da dogmática penal. O jurista napoleônico, formalista, legalista, finalista, etc já faz parte do 2º milênio. Não se admite mais a solução de um caso formalmente perfeita. É necessário mais: uma decisão justa no caso concreto. Se o jurista atual não raciocinar assim, está sujeito a ser aniquilado pelas mudanças do Funcionalismo e da teoria Constitucionalista do delito. É bom pensar nisso!
[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal:Parte Geral. 2.ed. São Paulo:Saraiva, 2001,p. 255: 'Teoria psicológica da culpabilidade: surgiu com nitidez no sistema naturalista ou causal da ação, preconizado por VON LISZT e BELING, e refletia a situação dogmática na Alemanha por volta de 1900. Segundo ela, a culpabilidade é uma liame psicológico que se estabelece entre a conduta e o resultado, por meio do dolo ou da culpa. O nexo psíquico entre conduta e resultado esgota-se no dolo e na culpa, que passam a constituir, assim, as duas únicas espécies de culpabilidade.
[2] GOMES, Luiz Flávio. Curso de Direito Penal- Parte Geral on-line. Aula 5.
[3] MEZGER, Edmund, Derecho penal-PG, trad. Conrado A. Finzi, Buenos Aires: ED. Bibliográfica, 1955.
[4] WELZEL,Hans. Derecho penal-PG, trad. De S. Yañez e Juan Bustos Ramirez, Santiago de Chile: Ed. Jurídica de Chile, 1970.
[5] GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito- Em comemoração aos trinta anos de 'Política criminal e sistema jurídico-penal' de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 8,n. 32, p. 120-163 , out./dez. 2000.
[6] GOMES, Luiz Flávio. Erro de Tipo e erro de proibição. 5.ed. São Paulo:Saraiva, 2001, p. 91: 'Sendo puro juízo de censura, não pode a culpabilidade abrigar em seu seio requisitos subjetivos ou psicológicos;logo, o dolo, que é psicológico, é afastado do âmbito da culpabilidade e passa a compor o tipo subjetivo dos delitos dolosos. A culpa, do mesmo modo, como forma de conduta humana, também passa a fazer parte do tipo nos crimes culposos'.
[7] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, tradução Luís Greco. São Paulo:Editora Renovar, 2000, p.20: ' De todo o exposto, fica claro que o caminho correto só pode deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista da proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que o Estado de Direito e Estado Social não são opostos incociliáveis, mas compõem-se uma unidade dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito.
[8] SOUZA, Carlos Eduardo Freitas de. Crime de descaminho e a aplicação do Princípio da Insignificância. Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br, 24.11.2001.






