Justiça climática é justiça social: o Brasil que a Defensoria Pública escolhe construir
Fernanda Fernandes
Presidenta da ANADEP
O Brasil, neste mês de novembro, recebeu, em Belém, a COP30 – a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – que reúne países, especialistas, autoridades e representantes da sociedade civil para discutir problemas, soluções, mecanismos de contenção da crise climática, proteção ambiental e os caminhos para verdadeira justiça climática.
Sediar esse encontro, no país da maior biodiversidade do planeta, é relevante, mas sua conexão mais profunda com o nosso território é, sobretudo, porque traz concretude aos debates sobre os impactos que as mudanças ambientais e os eventos climáticos extremos produzem, de forma desproporcional, nos seres humanos mais pobres.
A preocupação da Conferência do Clima não se restringe às alterações ambientais: envolve, igualmente, as metas de desenvolvimento social – os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Em um país onde o ODS 1 (erradicação da pobreza), o ODS 2 (fome zero) e o ODS 5 (igualdade de gênero) seguem como desafios urgentes, os obstáculos sociais e estruturais internos revelam que o tema da COP é uma realidade simbolizada na contradição da linda cidade de Belém, que segue entre as cidades do país com maior deficiência no tratamento de esgoto.
No Brasil, milhões de pessoas vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica, e são elas que, historicamente, sofrem os custos mais altos das secas, enchentes, deslizamentos e perdas decorrentes da crise climática. As secas comprometem os rios que servem para o transporte aquaviário de crianças à escola e de onde se retiram os peixes que garantem o alimento às comunidades indígenas e ribeirinhas. Nas secas ou enchentes, há o impacto direto à comida do prato, ao trabalho, à casa, à escola, à moradia.
A reflexão brasileira na COP 30, portanto, é sobre examinar, de forma direta, como o clima impacta a vida concreta do nosso povo brasileiro. Por isso, sediar a COP 30, no Brasil, tem significado especial para as defensoras e os defensores públicos que, neste ano, elegeram como eixo central de sua atuação a campanha “Justiça Climática é Justiça Social: defensoras e defensores por um Brasil mais justo, solidário e igualitário”. A convergência entre clima e justiça social é indispensável.
O diálogo entre justiça ambiental e justiça social foi reafirmado em diversos painéis da COP, dedicados a temas como gênero, infância, comunidades ribeirinhas e povos tradicionais. Em um dos debates, destacou-se que “a mudança do clima tem maior impacto sobre aqueles segmentos da população que dependem diretamente dos recursos naturais para sua subsistência e/ou que possuem menor capacidade de responder a eventos naturais extremos, como secas, deslizamentos, enchentes e furacões. As mulheres, especialmente em situações de pobreza, enfrentam riscos mais elevados e cargas mais pesadas decorrentes desses impactos, sendo que a maioria das pessoas pobres no mundo é composta por mulheres. A participação desigual das mulheres nos processos de tomada de decisão e nos mercados de trabalho aprofunda ainda mais essas desigualdades e, frequentemente, impede que elas contribuam plenamente para o planejamento, a formulação de políticas e a implementação de ações relacionadas ao clima”.
Esse trecho traduz verdade incontornável: a crise climática não é neutra, não é teórica e, tampouco, é futura. Ela é atual, real e marcada por recortes de cor, gênero, CEP e renda. Afeta, com intensidade desproporcional, povos indígenas, comunidades ribeirinhas, quilombolas, moradores de áreas alagáveis, trabalhadoras e trabalhadores informais, mulheres chefes de família, pessoas negras e populações periféricas – exatamente os grupos acompanhados pela Defensoria Pública em seu cotidiano, com atuação reforçada pela campanha nacional.
A Constituição de 1988 conferiu, à Defensoria Pública, missão inequívoca: assegurar o acesso à justiça e a proteção dos direitos fundamentais, especialmente das pessoas em situação de vulnerabilidade, o que se traduz em garantia de acesso ao Judiciário, assim como às medidas extrajudiciais de cidadania e de condições mínimas para a vida digna, inclusive às condições ambientais seguras e sustentáveis. Em contextos de desastres climáticos, essa atuação envolve garantir abrigamento digno, acesso a benefícios socioassistenciais, emissão de documentos, proteção contra remoções forçadas, acesso à saúde, entre outras demandas.
A tragédia recente em Rio Bonito do Iguaçu, cidade do Paraná que foi 90% destruída após ser atingida por um tornado com ventos de até 250 km/h, é um retrato evidente dessa realidade e da essencialidade da Defensoria Pública na garantia da dignidade das pessoas. Os ventos, embora democráticos em sua chegada, não o foram em seus efeitos, atingindo, mais profundamente, pessoas em condições mais vulneráveis. Nesse cenário, as equipes de defensores e defensoras da Defensoria do Estado do Paraná foram pioneiras e essenciais em força-tarefa para a obtenção de documentos perdidos no desastre, acesso a benefícios assistenciais, tratamentos de saúde e outras demandas jurídicas em atendimentos realizados às pessoas que estavam nas ruas, casas, abrigos e hospitais. Para essas pessoas – muitas vezes invisibilizadas pelas políticas públicas – a Defensoria Pública é a primeira porta e, muitas vezes, a única.
Durante a COP 30, a campanha também se concretizou com a presença física da Defensoria Pública em todos os espaços do evento. Defensoras e defensores de diversas regiões do país participaram de atividades e debates na Zona Azul, na Zona Verde e, também, na Cúpula dos Povos, onde, em vans da Defensoria Pública do Estado do Pará, estiveram para dialogar, atender diretamente integrantes de comunidades tradicionais, movimentos sociais, coletivos juvenis, organizações sociais, garantindo, assim, o cumprimento de sua missão constitucional de assegurar acesso a justiça também no contexto da justiça climática como justiça social, instrumento de efetivação da dignidade humana.
É por isso que a campanha da Anadep nasce de uma convicção institucional e social evidente: a crise climática retroalimenta a pobreza, que retroalimenta a vulnerabilidade climática, ciclo que só pode ser enfrentado se justiça ambiental e social caminharem juntas – compreendendo que democracia é, antes de tudo, proteção da vida com qualidade e dignidade para todos e todas.
O Brasil tem a oportunidade única de liderar esse debate e também as soluções no cenário global. E a Defensoria Pública tem o dever constitucional e papel indispensável nesse cenário: garantir que aqueles atingidos de forma mais drástica não estejam à margem ou invisibilizados no contexto da justiça climática. Em cada comunidade, periferia, território tradicional atingido por enchentes ou seca, defensoras e defensores públicos constroem, diariamente, aquilo que a campanha proclama: um Brasil mais justo, solidário e igualitário, onde a justiça climática não é promessa, mas compromisso de uma instituição.



