Júlia Lordêlo dos R. Travessa
Integrante da Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da ANADEP
Quando se fala em mudança climática, é costumeiro colocar de forma secundária a voz dos vulnerabilizados, o que é incongruente considerando os dados estatísticos que os colocam em maior suscetibilidade aos riscos a serem lesados em desastres climáticos tanto em país do Norte quanto do Sul global.
Não é desconhecido que os países do Norte Global emitem cerca de 92%1 do gás que mais contribui para alterações climáticas bruscas, o gás carbônico, enquanto o Sul Global, por sua vez, notadamente África e as Américas Central e do Sul, pouco menos de 3%. Esta dinâmica se repete quando se fala em pessoas mais vulnerabilizadas: em 2019, 1% mais rico da população mundial foi responsável por emissões de C02 em quantidade igual a 2/3 mais pobres do mundo2.
Apesar de serem agentes com mínimo impacto para as mudanças climáticas globais, são os mais pobres os mais vulneráveis aos seus efeitos, afinal, como restará demonstrado a seguir, são os mais expostos aos danos causados pelos eventos extremos aqueles que possuem menos condições de contornar os impactos sob si.
Ora, é perceptível que o Brasil, por exemplo, sofre com ausência de política pública estrutural para redução percentual de quantitativo de população sem acesso a moradias adequadas, o que abrange locais mais suscetíveis a deslizamentos e outros eventos impulsionados por eventos climáticos como enchentes e alagamentos. Não se fala aqui em um processo higienista de remoção/deslocamento dos espoliados para outros espaços, mas sim em considerar que tais espaços de ocupação humana consolidada precisam da atuação do Poder Público para, por exemplo, obras de criação de sistemas de drenagem, tratamento de encostas, de política de evitem o assoreamento de rios, além de promoção educativa ambiental.
A situação do Brasil é dramática: apenas conforme dados do CAD ÚNICO, há cerca de 335 mil pessoas em situação de rua, e, em 20223, o déficit habitacional já passava dos 6,2 milhões de domicílios e 26,5 milhões de pessoas no Brasil em moradias com inadequações. Acaso se busque o necessário recorte de gênero e raça, relatório da ONG Habitat evidencia que o déficit habitacional no Brasil possui gênero: "62,6% dos domicílios em situação de déficit habitacional são chefiados por mulheres, isto é, as mulheres são maioria dentre os que precisam escolher se comem ou pagam aluguel no fim do mês, ou, ainda, que precisam morar de favor ou em domicílios improvisados e rústicos"4.
Quanto à estrutura sanitária, apesar de algum crescimento ao longo dos anos, segundo dados do Instituto Trata Brasil5, em torno de 32 milhões de brasileiros não possuem acesso à água potável e mais de 90 milhões não têm acesso à coleta de esgoto. Este panorama significa que 40% da população despeja os resíduos domésticos produzidos diretamente ou em rios/mananciais ou no solo, elevando potencialmente a possibilidade de contaminação de lençóis freáticos e alimentos produzidos no solo, e, ainda, propagação de doenças. Por estimativas da Organização das Nações Unidas6, 01 milhão e 600 mil mortes seriam evitadas com a estruturação de sistema de saneamento básico e acesso a água potável, inclusive, apenas em 2002, doenças associadas à ausência de coleta de esgoto e acesso a água potável mataram mais de 03 milhões, sendo 90% crianças com menos de 5 anos.
Adiciona-se que, conforme a ABREMA7 - Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente, há cerca de três mil lixões a céu no Brasil, ou seja, apenas 1.700 municípios atendem à necessidade de local adequado para destinação e tratamento de resíduos. Do mesmo modo que a ausência de saneamento básico, o descarte irregular de resíduos sólidos afeta diretamente o meio ambiente, natural e artificial, mas também a propagação de doenças.
Quando se caminha para acesso à nutrição adequada, mesmo com dados da segurança alimentar melhorando no país8, ainda há, no Brasil, 2,5 milhões de pessoas em insegurança alimentar severa e permanece a desigualdade entre as regiões do país9.
Ademais, mesmo reconhecendo o Poder Público que os povos indígenas e as comunidades tradicionais são agentes relevantes para a preservação do meio ambiente natural no Brasil10-11, muito pouco se avança na fixação das áreas de propriedade das comunidades quilombolas e na demarcação das terras indígenas12. Lado outro, invasões e ameaças a terras indígenas, muitas vezes com características violentas, cada vez mais se intensificam. Conforme dados do CIMI - Conselho Indigenista Missionário13, de 2016 (em que foram 59 casos de invasão, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos às terras indígenas) para 2017 (96 casos), houve aumento de 62%, sendo que, por sua vez, no ano de 2018, já foram 109 casos.
O panorama nacional para uma efetiva JUSTIÇA CLIMÁTICA revela-se, então, preocupante quando se conjugam tais dados sociais do desigual (ou nenhum) acesso a saneamento e água, à moradia, à terra e à alimentação, com uma não linear política nacional de proteção ao meio ambiente equilibrado, pois somente na última década houve expressivo aumento de perda de cobertura vegetal no país14-15.
Assim, mesmo sendo um direito fundamental expresso no art. 225 da CF/88 (que inclui o clima, como ressaltou o STF na ADPF 708), segundo dados do IPCC16 - Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU, 83% dos municípios brasileiros já enfrentaram desastres conectados com eventos climáticos extremos, afetando indiretamente 177 milhões de pessoas e diretamente 4,98 milhões. Inclusive, vale trazer que, conforme dados do CEMADEN - Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, já se desenrola no Brasil a formação das primeiras áreas de desertificação no Brasil: entre os Estados de Bahia e Pernambuco, abrangendo cerca de 8 municípios e 38 milhões de pessoas17.
Este quadro de desastres climáticos desenvolveu-se mesmo com já promulgadas e vigentes a lei Federal 12.187/09 (instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima), com a RIO 9218, o Acordo de Paris e a ferramenta, desde os idos de 2015, dos relatórios SEEG19, sendo que apenas no ano de 2024 o Brasil começou a estabelecer um Sistema Nacional de alerta a desastres climáticos e somente para as regiões Sul e Sudeste20.
A ausência por muito tempo de um efetivo programa de Estado para minoração dos impactos das mudanças climáticas necessariamente conduziu, portanto, a um aumento exponencial dos impactos sociais do meio ambiente desequilibrado, o que afeta de forma desigual os brasileiros, impactando, por óbvio, mais diretamente os que são hipossuficientes. É neste ponto, especificamente, que se apresenta a Defensoria Pública, enquanto instituição de Estado que, nos termos do art. 134 da CF/88 e do art. 98 do seu ADCT, busca recalibrar o foco para os mais vulnerabilizados, economicamente e por condições pessoais intrínsecas, afinal, como recorda Pedro Gonzalez21, a Defensoria Pública foi desenhada, pela EC 80/14 e pela LC Federal 132/09, para fazer o singular papel de promoção de direitos humanos.
Dentro do espectro da qualidade da Defensoria Pública como agente pela voz popular, vale recordar alguns eventos em que houve atuação da Defensoria Pública para buscar a reparação e o fomento à oitiva dos atingidos: desastres de Mariana e Brumadinho, cujas implicações ainda são sentidas até hoje em diversas cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo; e eventos causados por chuvas acima da média histórica com milhares de desabrigados e óbitos, por exemplo, em boa parte das regiões sul, sudeste e nordeste, como no ano de 2021 em Jequié/BA, no ano de 2022 em São Sebastião/SP, e no ano de 2024 em Porto Alegre/RS. Estes exemplos revelam não que a Defensoria Pública é o único espaço de veiculação das pretensões dos mais vulnerabilizados ambientalmente, mas sim que, em sua funcionalidade orgânica, atuará necessariamente como estrutura estatal que tem como delineamento institucional teórico demandatório o de agir com vistas à "prevalência e efetividade dos direitos humanos como objetivo da Defensoria Pública (art. 3º-A, III, LC 80/94)22".
Especificamente sobre a educação e conscientização em direitos, nos termos do art. 4º da LC Federal 80/1994, a Defensoria Pública conecta-se mais uma vez com a promoção de justiça climática. Ora, como sugere a ONG Conectas Direitos Humanos23, "a efetividade da ação climática no Brasil depende da participação pública e popular, do acesso à informação e da educação climática", não só por ser previsão expressa no Princípio 10 da Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 e no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 da ONU - Paz, Justiça e Instituições Eficazes, mas também na Política Nacional de Meio Ambiente - lei 6.938/1981 e na lei de acesso à informação ambiental - lei 10.650/03. Corroborando, Thiago Burlani diz que
Nesta senda, como já vislumbrado, a conscientização da cidadania é função institucional da Defensoria Pública, da mesma forma que este valor constitucionalmente estabelecido é foco da educação ambiental [...]
Com efeito, a educação ambiental é formada como baliza mestre para que a maior parte da população possa participar das decisões tomadas na seara ambiental24
Assim, também neste recorte institucional, a Defensoria Pública busca realizar e possibilitar que os vulnerabilizados possam exercer participação consciente e informada, afiançando dizer que é, então, estrutura de Estado vocacionada a realizar um dos pilares da justiça climática, como pontua Melissa Borborema25.
Em complemento às atuações jurídica, de promoção de direitos humanos e de conscientização sobre direitos, a Defensoria Pública também, como concluem Bruno Braga e Bheron Rocha26, auxilia e aprimora o processo de construção e criação das políticas públicas a nível Legislativo e Executivo, levando ao debate público os direitos e interesses dos vulnerabilizados.
A conclusão inerradável é que, diante do liame entre Defensoria Pública e justiça climática, o fortalecimento orçamento da Defensoria Pública é não só cumprir a determinação constitucional do art. 98 do ADCT e o art. 5º da CF/88, mas também é caminho material e processual por mais justiça climática no Brasil.
Aguarda-se, então, que a postura estatal passe a enfrentar de forma substancial, dentre outras medidas essenciais em direção à justiça climática, o vazio defensorial27, notadamente após a Opinião Consultiva 32 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, no mesmo sentido, logo depois, a Corte Internacional de Justiça.
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1 Dados de medição desde o ano 1750, como se vê no https://www.nexojornal.com.br/grafico/2021/11/03/europa-asia-e-america-do-norte-concentram-928-das-emissoes-de-co2, acessado em 19/08/2025.
2 Segundo Relatório da ONG Oxfam Internacional intitulado "Igualdade Climática: um Planeta para os 99%".
3 Dados do relatório "Sem moradia digna não há justiça de gênero" emitido em 2025 pela ONG Habitat para a Humanidade Brasil. Disponível em file:///C:/Users/dpe/Downloads/1743689358362ESTUDO_oficial_final.pdf
4 Página 06 do relatório "Sem moradia digna não há justiça de gênero" emitido em 2025 pela ONG Habitat para a Humanidade Brasil. Disponível em file:///C:/Users/dpe/Downloads/1743689358362ESTUDO_oficial_final.pdf
5 Estudo "Avanços do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil de 2024". Disponível em https://tratabrasil.org.br/avancos-do-novo-marco-legal-do-saneamento-basico-no-brasil-2024-snis-2022/
6 Informações extraídas de reportagem especial veiculada no website oficial da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/radio/programas/270998-especial-saneamento-4-doencas-provocadas-pela-falta-de-saneamento-05-51/, acesso em 19/08/2025.
7 Levantamento divulgado no 2º semestre de 2024, como se vê na reportagem: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-tem-cerca-de-tres-mil-lixoes-a-ceu-aberto-mostra-levantamento/#goog_rewarded
8 Conforme medido no Relatório SOFI 2024. Acessível em https://centrodeexcelencia.org.br/sofi-2024/
9 Comparativo extraído de pesquisa do IBGE, como se vê em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39838-seguranca-alimentar-nos-domicilios-brasileiros-volta-a-crescer-em-2023
10 https://www.gov.br/mast/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/a-importancia-dos-povos-indigenas-para-a-preservacao-da-natureza
11 "As taxas de desmatamento em terras de afrodescentes do Brasil, Colômbia, Equador e Suriname podem ser até 55% menores que em outros territórios semelhantes, mas sem titulação (ou seja, sem a situação fundiária estar resolvida), segundo pesquisa publicada na revista científica Communications Earth & Environment, do Grupo Nature" - https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2025/07/terras-de-afrodescendentes-e-quilombolas-tem-ate-55-menos-desmatamento-diz-estudo.shtml
12 A ONG Conectas Direitos Humanos, inclusive, recomenda, no Relatório "Impulsionando a ação climática a partir dos direitos humanos" lançado em 2023, como medida em prol da justiça climática que seja respeitado o direito à terra dos povos indígenas e das comunidades tradicionais com a realização, respectivamente, das demarcações e das titulações. Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://conectas.org/wp-content/uploads/2023/10/relatorio-climatico-03-impulsionando-a-acao-climatica.pdf
13 Reportagens em https://cimi.org.br/2019/01/pelo-menos-seis-terras-indigenas-sofrem-com-invasoes-e-ameacas-no-inicio-de-2019/ e https://cimi.org.br/2019/09/a-maior-violencia-contra-os-povos-indigenas-e-a-apropriacao-e-destruicao-de-seus-territorios-aponta-relatorio-do-cimi/
14 Segundo o MapBiomas, "os dados desde 1985 até 2022, por sua vez, mostram uma perda de 96 milhões de hectares de vegetação nativa - uma área equivalente a 2,5 vezes a Alemanha. A proporção de vegetação nativa no território caiu de 75% para 64% no período"
15 Confira em https://brasil.mapbiomas.org/2023/08/31/perda-de-vegetacao-nativa-no-brasil-acelerou-na-ultima-decada/
16 Veja em https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/mudanca-do-clima/adaptacao
17 https://www.camara.leg.br/noticias/1072212-desertificacao-aumenta-no-brasil-em-meio-a-alerta-da-onu-sobre-seca-em-escala-planetaria/, acessado em 16/07/2025.
18 Recomenda-se a leitura da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992.
19 Veja linha do tempo no website https://seeg.eco.br/linha/
20 Conforme notícia acessado em 20/08/2025 no endereço https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202410/novo-sistema-de-envio-de-alertas-de-desastres-comeca-em-novembro-saiba-como-vai-funcionar
21 In: Defensoria Pública, Democracia e Processo II. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. Pg 71.
22 In: Defensoria Pública, Democracia e Processo II. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. Pg 74.
23 Veja o Relatório "Impulsionando a ação climática a partir dos direitos humanos", lançado em 2023 pela Conectas Direitos Humanos: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://conectas.org/wp-content/uploads/2023/10/relatorio-climatico-03-impulsionando-a-acao-climatica.pdf
24 In: Defensoria Pública e educação ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. Pg 166-168.
25 In: Defensoria Pública, Democracia e Processo II. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. Pg 189-191.
26 In: Defensoria Pública, Democracia e Processo II. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. Pg 324.
27 Expressão cunhada originalmente em https://www.conjur.com.br/2022-fev-22/tribuna-defensoria-vazio-defensorial-estado-coisas-inconstitucional-orcamentario/