Douglas Admiral Louzada
Defensor Público do Espírito Santo. Diretor Coordenador da Região Sudeste da ANADEP. Membro das Comissões para Assuntos Internacionais e de Diversidade Sexual da ANADEP. Mestrando em Direito na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
O ano de 2025 está se consagrando como um marco indelével na história da defesa dos direitos humanos e do meio ambiente na América Latina. Isso porque enquanto o mundo volta seus olhos para Belém e o Brasil se posiciona para liderar a COP 30, em novembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos apresenta a mais relevante resposta jurídica da região à crise climática mundial: a opinião consultiva 32/25, divulgada em 29 de maio.
Nesse contexto, o grito potente e necessário da Campanha Nacional da ANADEP - Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos do ano de 2025, com o tema "Justiça Climática é Justiça Social: Defensoria Pública por um Brasil mais sustentável, justo e igualitário", apresenta-se ainda mais atual e premente, principalmente com o objetivo de se consolidar o paradigma de que a crise climática é, em sua essência, uma crise de direitos humanos e de desigualdade social, a exigir a atuação de todo o Poder Público e, em particular, da Defensoria Pública.
Não há dúvidas de que a OC-32/25 sobre "Emergência Climática e Direitos Humanos" deve ser lida como um verdadeiro divisor de águas no debate sobre mudanças no clima e seus efeitos sobre as populações vulnerabilizadas. Solicitada por Chile e Colômbia, a opinião estabelece um roteiro claro e contundente sobre as obrigações dos Estados para enfrentar a questão.
Dentre os pontos mais impactantes e inovadores da decisão, a Corte IDH reconhece, pela primeira vez, o "direito a um clima são" como um direito humano autônomo, derivado do direito a um meio ambiente sadio, o que eleva a proteção climática a um novo patamar jurídico. Dessa forma, os Estados não devem apenas reagir aos efeitos das mudanças climáticas, mas agir proativamente. A Corte IDH estabelece, então, um padrão de "devida diligência reforçada", exigindo que os Estados atuem com base na melhor ciência disponível para prevenir e mitigar as causas e os impactos da mudança climática. Em uma de suas conclusões mais fortes, a Corte IDH afirma que a proibição de causar danos graves e irreversíveis ao sistema climático e ao meio ambiente constitui uma norma de jus cogens - uma norma imperativa do direito internacional que se sobrepõe a qualquer outra e que nenhum Estado pode deixar de cumprir.
Alinhando-se às tendências constitucionais mais progressistas da região, a Corte reconhece a importância de tratar a Natureza e seus componentes como sujeitos de direitos, reforçando a necessidade de proteger a integridade dos ecossistemas. Além disso, o documento é expresso em determinar que os Estados devem regular, supervisionar e fiscalizar as atividades das empresas para garantir que elas não violem os direitos humanos no contexto da crise climática, incluindo a obrigação de mitigar suas emissões de gases de efeito estufa.
Portanto, a Corte IDH consolidou, de modo salutar e irrevogável, que a construção de políticas públicas de proteção e prevenção, inclusive com a participação da Defensoria Pública, é uma imposição legal da contemporaneidade a partir de uma visão fundada no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Contudo, a partir do documento, talvez um dos temas mais levantes para a Defensoria Pública seja a necessidade de garantir proteção especial para grupos vulneráveis. A Opinião enfatiza o impacto desproporcional da crise sobre diversos grupos, como crianças e adolescentes, povos indígenas, comunidades tradicionais, mulheres, população LGBTI+ e pessoas em situação de pobreza, determinando que os Estados adotem medidas de proteção diferenciada. Assim, a opinião consultiva vai muito além de uma declaração genérica de proteção. Ela disseca a vulnerabilidade e estabelece um verdadeiro catálogo de deveres estatais, o que permite o estabelecimento de estratégicas específicas para exigir o cumprimento de cada um deles.
É aqui que a campanha e a Opinião Consultiva convergem de maneira poderosa. Enquanto a ANADEP busca dar rosto e voz a essa realidade, a Corte IDH lhe confere a base jurídica mais sólida possível, estabelecendo um conjunto de obrigações estatais e fornecendo à Defensoria Pública e à sociedade civil uma ferramenta legal de poder sem precedentes para cobrar ação.
Por exemplo, para as crianças e adolescentes, a Corte determina que o Estado deve ir além da mera garantia de educação. É seu dever assegurar a continuidade do aprendizado em cenários de desastre e fortalecer a resiliência da infraestrutura escolar Além disso, reconhece o impacto na saúde mental, como a "ecoansiedade", e consagra o direito à participação efetiva da juventude nos processos de tomada de decisão sobre o clima. Na prática, isso é um mandato direto para a atuação da Defensoria, que pode judicializar a falta de planos de contingência em escolas, exigir a criação de conselhos juvenis de política climática em municípios ou mesmo pleitear a inclusão de saúde mental climática nos serviços públicos.
No que tange aos povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas e camponesas, a Corte reforça a proteção de seus territórios como um pilar da ação climática. A decisão determina que a consulta prévia, livre e informada - e, em casos de grande impacto, o consentimento - é obrigatória não apenas para projetos de exploração, mas também para políticas e medidas climáticas que possam afetar seus modos de vida. A Opinião também eleva os saberes tradicionais e ancestrais, determinando que eles devem ser integrados ao lado da "melhor ciência disponível". Isso instrumentaliza a Defensoria para contestar grandes projetos de infraestrutura ou de energia que ignorem esses saberes ou que não tenham realizado a consulta adequada, defendendo a integridade territorial e cultural como parte essencial da solução climática.
Indo além, a Corte adota uma visão profundamente interseccional ao tratar da proteção de mulheres e da população LGBTIQ+. Ela reconhece que, em contextos de desastres, as mulheres (especialmente as chefes de família) arcam com um fardo desproporcional de cuidado e são mais vulneráveis à violência de gênero. Dessa forma, o documento permite não apenas lutar por abrigos seguros e com protocolos de gênero, mas também exigir que os programas de recuperação econômica e de realocação priorizem as mulheres chefes de família. Além disso, a Corte estabelece que todas as ações empreendidas no marco da emergência climática devem incluir a perspectiva de gênero e interseccional.
De modo mais inovador ainda, a Corte estabelece a obrigação específica de garantir que os abrigos temporários sejam espaços seguros para a população LGBTIQ+, exigindo que o pessoal de atendimento receba formação sobre diversidade e inclusão para prevenir assédio e discriminação. Para a Defensoria, isso significa poder fiscalizar os planos de emergência e os abrigos, exigindo protocolos específicos de proteção e garantindo que a resposta a desastres seja verdadeiramente inclusiva e não replique as violências estruturais da sociedade.
Por fim, para as pessoas em situação de pobreza, a opinião consultiva opera uma mudança fundamental ao reconhecer a pobreza não apenas como uma condição preexistente, mas como um fator estrutural de vulnerabilidade que o Estado tem o dever de combater no contexto da ação climática, dialogando com o conceito de racismo ambiental, o qual refere-se à existência de desigualdades na distribuição de impactos ambientais negativos.
A Corte adota o conceito de pobreza multidimensional, que transcende a mera falta de renda para abranger a carência de acesso a serviços essenciais como saúde, educação, moradia e saneamento. Nesse sentido, a OC deixa claro que os impactos climáticos - como a perda de colheitas, a destruição de moradias precárias ou o aumento do preço dos alimentos - não apenas afetam mais intensamente quem já é pobre, mas criam novos bolsões de pobreza, em um ciclo vicioso que o Estado é obrigado a romper. Tal previsão fortalece imensamente o mandato da Defensoria Pública. A instituição pode, a partir desse documento, argumentar que uma política de adaptação que não inclua programas de proteção social e transferência de renda é, por si só, uma violação de direitos humanos. Da mesma forma, pode contestar medidas de mitigação que imponham um fardo desproporcional aos mais pobres, como a eliminação de subsídios sem a criação de alternativas, defendendo uma transição energética que seja genuinamente justa. A luta contra a pobreza, portanto, deixa de ser uma política social paralela e se torna um componente central e indispensável da ação climática estatal.
Assim, o que torna este momento singular é a convergência histórica entre o clamor social, a legitimação jurídica e o palco político. A Campanha Nacional da ANADEP, ao dar rosto e voz aos mais vulneráveis, capturou a essência da crise. A opinião consultiva da Corte IDH, por sua vez, transformou essa voz em um dever legal, em uma obrigação internacionalmente exigível. Agora, a COP 30 em Belém se apresenta como a arena onde esse novo e avançado paradigma de direitos humanos será posto à prova, e onde o Brasil terá sua liderança verdadeiramente testada.
A liderança que o Brasil almeja em Belém não será medida apenas pela capacidade de organizar um evento global ou por discursos eloquentes sobre a floresta. Será medida, fundamentalmente, pela sua disposição em honrar a mais progressista interpretação de direitos humanos produzida em seu próprio "quintal" interamericano. Nesse cenário, a Defensoria Pública transcende seu papel tradicional e busca assumir o protagonismo de guardiã dessa nova fronteira do direito.
Nesse cenário, a defensoria, armada com a OC-32/25 e impulsionada pelo chamado social de sua campanha, é um ator central para garantir que o legado da COP 30 não seja apenas uma carta de intenções, mas um compromisso real, fiscalizável e judicializável com as vidas que mais importam. O que está em jogo não é apenas o futuro do clima. A questão fundamental é se a justiça climática será o verdadeiro legado de nosso tempo ou apenas mais uma promessa adiada.