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01/07/2025

CE: Mais do que um nome no papel: a liberdade de existir sem pedir permissão ao Estado

Fonte: ASCOM/DPECE
Estado: CE
Entre se descobrir uma pessoa trans, no começo da adolescência, e ter um documento com essa identidade, Roberta Gambine, a Roberta Close, esperou quase três décadas. Nem o fato de ser “a mulher mais bonita do Brasil”, como durante muito tempo foi publicamente aclamada, facilitou as coisas. O Estado não a reconhecia. Apenas em 2005, aos 41 anos, a modelo conseguiu alterar a certidão de nascimento. E, ainda assim, somente após três tentativas com a apresentação de laudos médicos, inclusive psiquiátricos, pois a Organização Mundial da Saúde (OMS) à época classificava a transexualidade como doença.
 
Isso começou a mudar no Brasil em 2016, quando a publicitária Neon Cunha, então com 46 anos, acionou a Justiça para ser morta por eutanásia – procedimento proibido em todo o território nacional – caso não pudesse alterar os documentos oficiais. Essa “audácia” de peitar o “cistema” fez dela a primeira pessoa do país a ter novos nomes e gênero, no feminino, sem ser submetida a avaliações médicas. E abriu caminhos para, menos de dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinar que esse tipo de correção poderia ser feita por maiores de 18 anos, dali em diante, direto nos cartórios (Provimento nº 73/2018).
 
Até então, uma pessoa trans e travesti brasileira só mudava o nome e o gênero com a autorização de um juiz. “Os laudos médicos eram solicitados por pura vaidade! E eu não queria oferecer laudo nenhum. Porque, pra mim, o corpo é instrumento da gente e nós somos divindade. A sociedade que nos tornou demonizadas. Então, eu paguei a minha retificação inteira, e não foi barata, sem querer oferecer nem uma foto. Disseram que eu não conseguiria nada…”, recorda Neon, que completa: “mas cada pessoa que não teve o seu nome retificado [alterado], cada pessoa que não teve o seu direito de existência garantido é omissão do Estado”.
 
CAMINHOS ABERTOS
Por também entender que é dever do poder público garantir a todas as pessoas o direito personalíssimo à identidade (ou seja, essencial à dignidade), a Defensoria do Ceará (DPCE) luta por pessoas trans e travestis desde quando a mudança de nome e gênero só era feita pelos cartórios com ordem judicial.
 
A defensora Amélia Rocha trabalhava no Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) quando um primeiro mutirão aconteceu. Era 2014 (quatro antes da decisão do CNJ, portanto) e a ação atendeu a 17 mulheres trans e travestis. “Eram todas muito obstinadas, mas o tema era novo pra gente. Então, pegamos casos paradigmas e construímos petições de forma bem pedagógica. Com ela, mostrava a diferença entre quem é cis e quem é trans. Naquele momento, o nosso papel era abrir caminhos”, recorda.
 
A estratégia, Amélia diz, era fazer uma espécie de letramento, apresentando ao juiz um bê-á-bá sobre gênero, identidade de gênero e orientação sexual. Tudo fundamentado com leis, documentários, entrevistas, documentos pessoais e relatos escritos pelas próprias mulheres trans e travestis. “A ideia era mostrar que não era uma simples mudança de nome. Era uma questão existencial. Não era uma pessoa brincando de ser outra pessoa. A gente tentou levar vida pra dentro do processo, no sentido de tentar mostrar que o Direito deve servir como instrumento de transformação de vidas. Que nós podemos ajudar a construir um Direito que enxergue as pessoas”.
 
Por insistir em uma tese complexa para a época, a defensora lembra de ter sido muito criticada. Mas não se arrepende dos enfrentamentos. Diz acreditar, inclusive, que a atuação da Defensoria também influenciou na forma menos burocrática – embora ainda cara – de resolver a questão nos dias de hoje. “O Direito precisa proteger a pessoa para que ela seja o melhor que ela pode ser. É por isso que a Defensoria não tem atos heróicos individuais. Ela gera política pública. Quando a Defensoria encampa uma briga, quem assume essa briga é o Estado. O Estado-defesa. A Defensoria na qual acredito consegue compreender o processo de construção do Direito”, frisa Amélia Rocha.
 
LIBERTAÇÃO
Hoje coordenadora regional no Ceará do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), Bárbara Queiroz tem 49 anos, foi uma das 17 pessoas atendidas pelo mutirão de 2014 e lembra como era muito mais difícil mudar os documentos antigamente do que nos dias de hoje. Mesmo ainda sendo necessário pagar as taxas cobradas pelos cartórios, como acontece com quem faz tudo sem o auxílio jurídico da Defensoria Pública, ela considera tudo menos burocrático nos tempos atuais.
 
Bárbara foi levada à DPCE por Thina Rodrigues (ilustração em destaque), uma das maiores lideranças do ativismo trans do Brasil e que à época, aos 50 anos, também tentava mudar os próprios documentos. Mas morreu sem conseguir, pois o processo aberto no mutirão não teve desfecho favorável e ela, descrente na burocracia estatal, nunca mais buscou a alteração – embora uma vida inteira tenha sido reconhecida socialmente como a travesti preta e sertaneja que era. Thina foi uma das vítimas da pandemia de Covid em 2020 e virou símbolo de luta e resistência e, este ano foi homenageada pela 24ª Parada pela Diversidade Sexual do Ceará.
 
Já o caso de Bárbara foi diferente. “A defensora disse que ia dar entrada primeiro no pedido pra mudar o nome e só depois iria pedir pra mudar o gênero, porque naquele tempo a Justiça só autorizava mudar o nome. Aí, as poucas que conseguiam ficavam com o nome de mulher e o gênero masculino. Eu não queria isso. Expliquei que, pra mim, ou mudavam os dois ou era ficar como estava. Ela foi super sensível e disse que iria tentar. Lembro que era muita papelada e que eu tive que levar seis testemunhas. Levei tudo e, ainda assim, passei quase dois anos indo ao fórum quase todo mês, porque sempre diziam que “faltava” algum coisa ou eu tinha que dar alguma informação”.
 
O ganho de causa veio em 2017,quase três anos depois da abertura do processo e menos de um ano antes de o CNJ enfim mudar as regras do jogo para facilitar as mudanças. “A sentença favorável foi uma libertação pra mim. Passa um filme de todos os constrangimentos que eu já vivi na vida, e não foram poucos. Muita gente não respeita a gente e faz questão de chamar pelo nome masculino, mesmo a gente pedindo pra não chamar. Ter o documento retificado muda muita coisa. Só sabe quem vive. Nada do que eu fale se aproxima do conforto e da segurança de ser chamada pelo nome com o qual eu me identifico”, sublinha Bárbara.
 
Agora, diante da possibilidade de se reconhecer nos próprios documentos sem a necessidade de um juiz decidir por isso, muitas pessoas trans de meia idade têm buscado mudar nome e gênero. A travesti Viviane Venâncio, hoje aos 50, foi uma delas. Um ano após a nova regra do CNJ, em 2019, ela buscou o cartório no qual é registrada e deu entrada na solicitação. Uma semana depois, recebeu a certidão de nascimento alterada. Toda no feminino.
 
“Na época, eu tive que imprimir todas as certidões. Não tinha os links que se tem hoje e a gente faz tudo de casa. Eu precisei ir ao fórum e a outras instituições, recolhendo toda a documentação, que não é pouca. Quando reuni tudo, fiz. Paguei todas as taxas porque trabalhava e tinha condições. Mas essa não é a realidade da imensa maioria das meninas”, analisa ela, que este ano é uma das madrinhas da 24ª Parada pela Diversidade Sexual do Ceará e recentemente foi diplomada como defensora popular, projeto da Defensoria Pública que trabalha com lideranças sociais femininas.
 
TRANSFORMA
É justamente pelo fato de a maioria das pessoas trans e travestis ainda não terem como arcar com os valores das taxas dos cartórios que o trabalho da DPCE é determinante para elas garantirem o direito de mudar o nome e o gênero nos documentos. Com a Defensoria, tudo sai de graça. Se acontecer durante o Transforma, mutirão anual que atende exclusivamente esse público para esse fim, tudo se resolve com ainda mais rapidez.
 
Seja como alguém que trabalha ou uma das pessoas atendidas pelo Transforma, a travesti Fran Costa, de 40 anos, conhece bem a importância desse serviço. “Alterar minha certidão de nascimento era uma coisa no campo das impossibilidades. Se eu só pudesse fazer isso pela via do processo [até 2018], eu nunca iria fazer. Porque é muito violento passar por todo um processo no qual quem vai dizer quem eu sou é um juiz. É absurdo que eu dependa do ‘cistema’ pra dizer quem eu sou. Mudar os documentos só se tornou possível devido ao mutirão. Até então, minha relação com a minha documentação era muito complicada. Como meus documentos não davam conta de ser quem eu sou, eu não tinha zelo por eles. Eu ignorava. É o Transforma que ressignifica isso”, testemunha.
 
Este ano, o desfecho do mutirão da Defensoria, quando as pessoas recebem as novas certidões, acontece nos próximos dias 3 e 4 de julho em três polos: Fortaleza, Cariri e Crateús. Ao todo, 160 pessoas serão beneficiadas pela força-tarefa da DPCE, que nas três edições anteriores alcançou 600 homens trans, mulheres trans e travestis. São, portanto, 760 vidas que se tornaram mais possíveis de exercerem alguma cidadania. Algo simbólico diante de dois fatos: 1) o Brasil ser líder mundial de assassinatos dessas populações pelo 16º ano consecutivo e 2) haverem 21 países nos quais ser trans/travesti é crime ou pode resultar em alguma punição.
 
Enquanto nenhuma lei proíbe a transexualidade e a travestilidade por aqui, as pessoas com essas identidades seguem conquistando direitos. “Ainda há dificuldade sobre a emissão das certidões, mas isso a gente já consegue solucionar dentro do mutirão. Nosso grande gargalo é que muita gente não envia documentações básicas. E eu entendo. Então, a gente vai dando força e orientando. Nós conseguimos conversar com esse público de forma que ele não desista. E a gente faz isso porque a gente entende os efeitos no nosso corpo. Poder auxiliar essas pessoas acende uma chama de alegria na gente”, acrescenta Fran Costa.
 
Estudos internos indicam que, do público do Transforma, quem tem mais acesso à informação são as pessoas de maior formação escolar e as pessoas com menor nível têm mais dificuldade. A maioria (até 70%) de quem participa é mulher (seja trans ou travesti), negra (60%) e de áreas periféricas. “A gente lida com um público muito vulnerável no mutirão. Muito mesmo. De exclusão quase total das políticas públicas. Então, assegurar que a mudança do nome e do gênero na certidão, uma conquista dos movimentos sociais, aconteça com agilidade e segurança. Porque é a partir desse nome, do nome que elas escolheram, que elas vão poder acessar um mundo de direitos”, pontua a coordenadora do mutirão, defensora Lia Felismino.
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