Muito antes de se tornar, em 2023, a primeira ministra dos povos indígenas da história do Brasil, Sônia Guajajara já era uma liderança pela preservação de territórios e da natureza. Nascida em Arariboia, no Maranhão, estado no qual as disputas fundiárias são acirradas de morte, ela tem sido voz ativa no Governo Federal em prol de uma agenda ambiental verdadeira (e não apenas vendida como perfumaria).
Seja por atuação individual ou em parceria com outros ministérios, mas sempre ladeada por parentes (como se chamam os povos originários), Guajajara tensiona dentro e fora do Palácio do Planalto para a perspectiva indígena ser considerada em pautas que vão além do identitarismo. Ou seja: para pessoas como ela serem lembradas não somente quando o assunto for a natureza. Porque, afinal, tudo é sobre a natureza – até mesmo aquelas pautas que não são.
O entendimento é até simples: não dá para implementar política pública que alcance todas as pessoas se todas as pessoas não forem reconhecidas no processo de elaboração dessa política pública. Em resumo: sem os indígenas, os projetos chegam em alguns (mas não em todos) e o racismo ambiental avança em um Brasil que cada vez mais deixa de ser Brasil.
Em entrevista inédita e exclusiva à DPCE, a ministra Sônia Guajajara reflete sobre os efeitos desta prática, lista o que tem sido feito para combatê-la e diz, categoricamente, que ela só existe graças a um histórico de abandono, por estados e municípios, das populações mais precarizadas: a negra, a indígena e a periférica.
Confira.
DEFENSORIA l Para a população em geral, o tema racismo ambiental pode soar abstrato. Para o seu povo, porém, é algo que tem consequências concretas. Pesquisas indicam que as mulheres indígenas, quilombolas e negras periféricas são as que mais sofrem com ele. Do ponto de vista prático, ministra, como isso se manifesta nos territórios? Como vocês percebem a gravidade disso? A senhora poderia dar exemplos de como o racismo ambiental afeta a vida das mulheres indígenas?
SÔNIA GUAJAJARA l Do ponto de vista concreto, o racismo ambiental se manifesta na negligência de estados e municípios, que deixam de desenvolver programas de caráter de adaptação, mitigação e preventivos para eventos extremos de mudança climática onde há concentração de pessoas habitando áreas tradicionais com maior presença de natureza suscetível a impactos ambientais.
O racismo ambiental também se manifesta de uma perspectiva privada, quando empreendimentos se instalam em regiões ocupadas por indígenas, quilombolas ou áreas com práticas predatórias que aprofundam as circunstâncias de fragilidade ambiental.
Como consequência, o racismo ambiental se traduz no abandono de brasileiros tratados como se fossem cidadãos de segunda classe por ocuparem territórios tradicionais e possuírem hábitos e costumes distintos, diretamente ligados ao meio ambiente, como é o caso dos indígenas.
A falta de ação em territórios indígenas agravou as condições de vida de milhares de pessoas, conforme apontam dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde. Temos como exemplo a seca histórica na região Norte, em 2023 e 2024, que afetou mais de 70% da população indígena de 17 Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Em fevereiro de 2024, inundações no Acre atingiram 50% das aldeias abrangidas pelo DSEI Alto Rio Juruá e mais de 70% no DSEI Alto Rio Purus.
As enchentes provocadas por chuvas intensas no Rio Grande do Sul, em abril e maio de 2024, atingiram 70% da população indígena na região, mobilizando esforços da União, do estado, da Defesa Civil, e do Sistema Único de Saúde. Já os incêndios florestais ocorridos em 2024 registraram impacto em mais de 61% dos polos base da Amazônia Legal, além de áreas do Pantanal e do Cerrado.
As mulheres indígenas são afetadas pela falta de logística para venderem cestarias e peças artesanais. Eventos extremos muitas vezes as impedem de se locomover para obter remédios e alimentos para seus filhos. Secas e enchentes afetam roçados e incêndios simplesmente os destroem, assim como suas moradias e as relações com os territórios, que permitem a reprodução de seus hábitos, costumes e cultura.
DEFENSORIA l De que forma o combate ao racismo ambiental está na agenda do Ministério dos Povos Indígenas? Quais ações, sejam elas de caráter individual ou com outras pastas, estão sendo desenvolvidas? As mulheres têm prioridade nessas ações? Se sim, como?
SÔNIA GUAJAJARA l O MPI combate o racismo ambiental por meio de programas e iniciativas que são aplicadas de maneira transversal, algo pautado pela atual gestão do Governo Federal. Além de constante diálogo com o Ministério das Mulheres, o MPI mantém contato direto com as bases de organizações de mulheres indígenas para realizar levantamentos e processos de consulta.
Apesar de o Censo Demográfico 2022 indicar a existência de 860.020 mulheres indígenas no país, questões como violência de gênero, preconceito, direito a territórios tradicionais, acesso a serviços essenciais, como saúde, educação e saneamento básico, atendimento do Estado com intérpretes voltados especificamente para culturas indígenas, delegacias da mulher indígena e outras medidas carecem de concretização em nosso país.
Considerando o cenário, o MPI articula a elaboração de uma Estratégia Nacional para fomentar a promoção de políticas públicas para prevenção, enfrentamento e erradicação de violências de gênero vivenciadas pelas mulheres indígenas, dentro ou fora dos seus territórios.
A iniciativa é realizada conjuntamente entre o MPI e o Ministério das Mulheres (MMulheres), com participação da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), representante do movimento indígena.
Pela primeira vez, será realizada no país a Conferência Nacional das Mulheres Indígenas, com sete etapas regionais prévias, contemplando os povos indígenas dos diferentes biomas do país, para ampla consulta e colaboração de mulheres indígenas às políticas propostas. A conferência nacional está prevista para ser realizada em Brasília (DF) no mês de agosto de 2025.
Com grupos de trabalhos e rodas de conversa, as participantes vão colaborar com a reflexão e com propostas coletivas às em seis eixos temáticos: Direito e Gestão Territorial, Emergência Climática, Políticas Públicas e Violência de Gênero, Saúde, e, por último, Educação e transmissão de saberes ancestrais para o bem viver. As etapas regionais da conferência cumprirão o papel de efetivar a aplicação da consulta livre, prévia e informada, em consonância com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Entre as políticas previstas na estratégia nacional em desenvolvimento, está a criação da Casa da Mulher Indígena, que será um espaço focado no atendimento especializado a casos de violência, uma em cada bioma brasileiro. Também estão em desenvolvimento protocolos especializados de atendimento que levam em consideração as especificidades territoriais e as realidades indígenas.
Além desta ação principal, há outros projetos em curso:
Edital Karoá – Fortalecimento das mulheres indígenas do bioma caatinga na gestão socioambiental de seus territórios.
Por meio do edital, 20 propostas foram selecionadas no valor de R$30 mil para iniciativas de gestão socioambiental realizadas por mulheres indígenas no bioma Caatinga. O aporte global é de R$600 mil.
O objetivo é reconhecer e fortalecer as iniciativas realizadas por mulheres indígenas do bioma Caatinga na gestão socioambiental e conservação da biodiversidade de seus territórios. Os projetos selecionados receberam recentemente os recursos e estão em fase de implementação.
Foram contemplados projetos que promovam a transmissão intergeracional de conhecimentos e ciências tradicionais, segurança e soberania alimentar, recuperação de áreas degradadas, proteção das águas, entre outras ações qualificadas como gestão socioambiental e territorial.
As técnicas de recuperação e conservação da biodiversidade deste bioma e direcionadas à soberania alimentar local também serão levadas em consideração.
Edital Mulheres Indígenas Tecendo o Bem Viver:
As mulheres indígenas são grandes guardiãs dos saberes e tecnologias ancestrais dos povos indígenas.
Assim, o edital foi lançado para apoiar iniciativas socioeconômicas e culturais lideradas por mulheres indígenas, promovendo a preservação de saberes tradicionais e o fortalecimento de redes de proteção por meio da concessão de bolsas-prêmio de R$ 30 mil a R$ 100 mil a organizações de mulheres indígenas.
Os projetos selecionados receberam recentemente os recursos e estão em fase de implementação.
Oficinas de fortalecimento da Associação de Mulheres Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes Amy Kumirayoma – AMYK:
As associações de base desempenham um papel crucial tanto na preservação cultural quanto na garantia dos direitos dos povos indígenas, mas, no caso das organizações das mulheres indígenas, ainda há muito que se fazer para atingir a equidade de gênero de modo que elas possam desempenhar as funções que lhes são atribuídas ao tomarem posse de seus cargos na diretoria de suas entidades representativas.
Para tanto, está em implementação um projeto para o fortalecimento da Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), no Amazonas.
O projeto teve início em janeiro de 2025 e sua primeira etapa será finalizada em maio. Até o momento, foi aprovado o plano para a implementação e execução da primeira etapa do projeto, mas há a expectativa de continuidade pelo MPI visando resultados mais eficazes na realidade local.
DEFENSORIA l Alguns pesquisadores indicam o combate ao racismo fundiário como algo necessário para se combater o racismo ambiental? Garantir o papel da terra às populações indígenas é uma prática antirracista de que forma? Qual o desdobramento objetivo disso?
SÔNIA GUAJAJARA l Uma das principais estratégias para a mitigação das mudanças climáticas é a demarcação de territórios indígenas. Somente com a regularização fundiária de Terras Indígenas haverá segurança jurídica para a preservação ambiental necessária para aplacar os efeitos da crise climática e para que as populações indígenas sigam desenvolvendo o trabalho de guardiões da biodiversidade no Brasil e no mundo.
Além de assegurar a relação dos indígenas com áreas de ocupação tradicional sem ameaças de remoção, a demarcação é um processo, ainda que tardio, de reparação histórica e um caminho para viabilizar ações do governo e de outros atores para trazer segurança física e aplicar medidas que impeçam mais deterioração e prejuízo ambiental no país.
DEFENSORIA l Quais práticas indígenas a senhora indicaria como possíveis de serem adotadas por governos e pela sociedade em geral para, finalmente, nós nos entendermos enquanto parte da natureza e não como alguém que vai apenas cuidar dela…?
SÔNIA GUAJAJARA l Os indígenas entendem os ciclos da natureza e se integram ao bioma em que vivem por meio de conhecimentos ancestrais, passados de geração a geração diante do entendimento de que a natureza não é algo a ser dilapidado para nos servir e sim como algo que do qual somos parte e, portanto, destruí-la é atacar a própria humanidade de forma direta.
As principais práticas são as de conservação e preservação da natureza. Como somos humanos, não há qualquer possibilidade de nos separarmos do ambiente que nos proporciona água, ar e alimento.
O que os indígenas fazem é um processo harmônico de vivência unificada e não apartada da natureza, porém feito de uma perspectiva adaptada para as especificidades do local que habitam. Em vez de concentrar esforços em alterar os arredores a todo custo para domar a natureza, o que é feito pelos indígenas provoca pouco impacto e respeita os ciclos sem busca perpétua por extrativismo.
A forma que o MPI encontrou de incentivar esse tipo de ação prática nos territórios é por meio do Plano de Gestão Ambiental e Territorial Indígena, o PGTA, que se trata de uma forma de reconhecer que para cada local há um jeito de lidar com a natureza que o ocupa percebido e adotado pelos indígenas ao longo de décadas e séculos. A Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), cujo PGTA é um dos instrumentos, foi instituído por decreto em 2012 e agora tramita no Congresso para se tornar lei.
DEFENSORIA l A senhora acredita que, do ponto de vista do governo, apenas soluções sociais resolvem o problema? Ou o nó é grande e tão grave que só se desfará com a junção de diversas áreas? Se sim, quais as principais e por quê?
SÔNIA GUAJAJARA l A mudança de fato precisa ocorrer de forma transversal. A saída para acabar com o racismo climático envolve não só as ações de todos os ministérios, do governo federal e das unidades federativas, mas também de todo setor privado e da sociedade civil. A mudança tem que ocorrer em um nível coletivo de consciência para surtir efeito prático.
Como governo, temos trabalhado muito para avançar nessa questão. Demarcamos mais terras indígenas (13) do que na década anterior à instalação do Ministério dos Povos Indígenas (11), além de assinarmos 11 portarias declaratórias. Além disso, estamos investindo em iniciativas como o Programa Restaura Amazônia para Terras Indígenas.
Em parceria com o MPI e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançaram, em abril, chamada pública do programa Restaura Amazônia voltada à restauração ecológica e produtiva de Terras Indígenas (TI) no Arco da Restauração, região crítica de desmatamento que se estende do leste do Maranhão ao Acre. A chamada destina R$ 150 milhões à restauração ecológica com espécies nativas e/ou sistemas agroflorestais (SAFs), incluindo produção agrícola. Esse é o maior projeto de reflorestamento de TIs da história do país alcança.
São ações essenciais que priorizam os indígenas e seus hábitos como soluções a serem horizontalizadas para reformular a maneira como a sociedade global lida com a natureza.
O racismo ambiental é consequência de aspectos profundos da história de colonização do nosso país e é uma das consequências do modelo econômico adotado nos últimos séculos. A mudança não pode ser cosmética. Ela precisa ser interpretada como uma visão distinta de eixo civilizacional que integre educação, saúde, economia e segurança a partir da preservação.
Pelo fato de as mudanças climáticas serem centrais na existência do planeta como o conhecemos, não são apenas uma ou outra alteração de posturas que vão nos devolver a normalidade: é preciso um esforço urgente de caráter mundial que devote investimentos para restaurar.
DEFENSORIA l Quais os maiores desafios que os povos indígenas encontram no combate ao racismo ambiental? Esses desafios são os mesmos do Governo? Como a sra, enquanto ministra, administra essas tensões?
SÔNIA GUAJAJARA l Os maiores desafios são o entendimento de que racismo ambiental existe como consequência da falta de infraestrutura e leniência com processos antigos de marginalização social. As mudanças climáticas afetam quem vive justamente nas áreas de natureza atingidas pela crise, fruto da ação humana. Se o descaso com a desigualdade provoca miséria, pobreza e exclusão, o mesmo vale para a depredação do meio ambiente, uma vez que ele é habitado por pessoas e sofre com as consequências do modo de vida que impera na sociedade.
Os indígenas convivem com a dificuldade de injetar recursos de forma direta em seus territórios em decorrência da burocracia e da falta de caminhos para promover a compensação real nas regiões que contribuem para manter em pé e conservada. O financiamento ambiental proveniente de fundos do exterior precisa alcançar o chão das aldeias para que o dinheiro seja capilarizado a ponto de criar chances reais de mudança.
Portanto, meu papel como ministra é encarar as tensões para desfazê-las por meio de conexões e alianças para promover soluções, porém, sempre me valendo dos princípios indígenas que valorizam a harmonia de relações. Assim sendo, como ministério, estamos viabilizando a maior participação indígena da história na COP 30, que ocorre em novembro, no Pará, para aproximar a realidade indígena do país aos atores presentes na Conferência e trazer atenção para os biomas do Brasil e as necessidades de investimento em territórios indígenas para que ampliem sua capacidade de preservação.