“Gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”. O conceito da historiadora Joan Scott foi central na palestra da professora titular em Direito Público, Fabiana Severi. A pesquisadora em crítica jurídica feminista e acesso à justiça para as mulheres encerrou o Seminário comemorativo dos 28 anos de criação da Defensoria Pública do Estado do Ceará.
A mesa presidida pela defensora pública Jannayna Lima Sales Nobre e mediação da defensora pública e supervisora das defensorias da família, Michele Cândido Camelo, abordou como os papeis de gênero, historicamente construídos, ainda influenciam decisões judiciais no âmbito do direito das famílias.
Durante a palestra, Fabiana destacou que a divisão social entre a mulher cuidadora e o homem provedor, ainda profundamente enraizada na cultura e nas instituições, não apenas perpetua desigualdades, mas também distorce o entendimento jurídico sobre o que é justo e equitativo nas relações familiares.
“No Direito, gênero é um conceito jurídico hoje. É um conceito que a gente tem que operacionalizar para interpretar e aplicar normas jurídicas. E isso é, sobretudo a partir da Lei Maria da Penha, em 2006. Foi ela quem trouxe o conceito de gênero para o mundo do direito”, explicou a pesquisadora em referência à farmacêutica cearense Maria da Penha, vítima emblemática da violência doméstica.
Historicamente, a mulher foi condicionada a desempenhar o papel de responsável pelo lar e pelos filhos. Mesmo atualmente, quando acumula jornadas de trabalho, essa naturalização da função do cuidado como feminina é uma construção social que, segundo Fabiana, no campo do Direito de Família, pode resultar em decisões injustas na guarda de filhos, pensões alimentícias e partilhas de bens.
“O primeiro impacto no divórcio é que os filhos ficam com as mulheres. Como muitas vezes a mulher adequou seu trabalho funcional à sua maternidade, ela acaba ganhando menos. Quando eu penso que eu tenho que dividir os lucros e os reforços da proteção social, a partilha de meio a meio não acontece, se eu reconheço a proteção social como cuidado”, ressaltou.
Fabiana também alertou para o uso da chamada “alienação parental” como um instrumento de ataque às mulheres nos processos judiciais. Classificada pela pesquisadora como uma pseudociência, a teoria da alienação parental tem sido mobilizada para deslegitimar denúncias de abuso e manchar a imagem de mães que buscam proteger seus filhos.
“É uma pseudociência, um avanço dos movimentos masculinistas que vem sendo usado como forma de silenciar mulheres e perpetuar violências”, afirmou a professora, destacando que muitas vezes, sob a justificativa de uma suposta manipulação materna, o sistema de justiça desconsidera o contexto de violência doméstica, invertendo os papeis entre vítima e agressor.