No julgamento da ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.943, o ministro Celso de Mello proferiu uma pergunta memorável para quem, diariamente, se dedica à atividade defensorial e para as pessoas em situação de vulnerabilidade que são destinatárias desse serviço: "A quem interessa enfraquecer a Defensoria Pública?".
A indagação extrapola os limites daquele julgamento e convida à reflexão sobre o real propósito de fortalecimento da Defensoria como instituição que é expressão do Estado Democrático de Direito, especialmente diante de recorrentes medidas que possam culminar na exclusão ou redução de suas prerrogativas ou garantias institucionais.
Este artigo tem por objetivo discutir a importância da simetria constitucional entre as funções essenciais à justiça, destacando a Defensoria Pública como expressão concreta do direito fundamental de acesso à justiça e sua atuação em contextos de elevada exposição e risco. A análise culmina na defesa da inclusão da instituição no texto do PL 4015/23, que reconhece determinadas atividades jurídicas como de risco - o que deve se estender, de forma incontornável, à Defensoria Pública.
A CF/88 prevê, em seus arts. 127 a 135, as chamadas funções essenciais à justiça, elencando, entre elas, a Defensoria Pública. Embora as atribuições de cada uma sejam distintas, é notório que o constituinte lhes conferiu igual importância como parte de um todo indivisível da função jurisdicional e, portanto, um status institucional nivelado, reconhecendo, assim, a essencialidade dessa equiparação ao funcionamento do sistema de justiça como um todo.
No que tange à Defensoria Pública, a CF assegurou a sua simetria com as demais funções no próprio texto do art. 134, como decorrência da necessidade de se manter a paridade de condições das funções jurisdicionais essenciais ou do sistema de justiça, conferindo, a partir dessa simetria, a defesa das próprias pessoas em situação de vulnerabilidade.
Em especial, ressalte-se que a Defensoria Pública ocupa lugar singular no arranjo constitucional: é a única instituição voltada, por missão constitucional expressa (art. 134, CF), à defesa das pessoas em situações diversas de vulnerabilidade: econômica, social, tecnológica, circunstancial, étnico-racial, de gênero, etária, entre outras. Assim, conferiu-lhe um papel destacado de, assegurando a dignidade dessas diversas pessoas e grupos, alcançar o cumprimento dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme previsão do art. 1.º, inciso III, da CF.
A sua atuação, no contexto brasileiro, traduz-se em uma atividade que vai muito além dos gabinetes institucionais. Trata-se de uma instituição que efetiva direitos em campo, em espaços marcados pela ausência do Estado, pela violência e desigualdade estrutural e pela vulnerabilidade social extrema, sendo inúmeras as frentes de atuação que envolvem risco elevado e exposição pessoal direta, tais como:
- Atendimento itinerante em comunidades remotas;
- Atendimento em unidades de privação de liberdade;
- Fiscalização de audiências de custódia e atuação contra a tortura;
- Acompanhamento de reintegrações de posse;
- Atuação em situações de desastres ambientais;
- Defesa de mulheres vítimas de violência doméstica e de idosos submetidos a maus-tratos;
- Proteção de povos indígenas e populações tradicionais.
- Essas atividades, todas ligadas à defesa dos direitos humanos, tornam inequívoco o risco cotidiano a que estão submetidos defensoras e defensores públicos, não raras vezes enfrentando contextos de flagrante hostilidade e ausência de proteção estatal efetiva.
Assim, reconhecer a atividade da Defensoria Pública como atividade de risco no PL 4015/23 - atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados - é, além de uma exigência decorrente da simetria institucional, um imperativo de coerência constitucional: trata-se de garantir a proteção daqueles que, diariamente, colocam-se como escudo dos vulneráveis frente a violações diversas, inclusive derivadas da própria ação estatal.
A exclusão revelar-se-ia inconstitucional por ferir o princípio da simetria, o direito à igualdade, a proteção à integridade funcional daqueles que atuam em prol dos direitos fundamentais e, em última instância, os fundamentos da República. A Defensoria Pública, por tudo o que representa e realiza, não pode ocupar posição desprestigiada, desequilibrada ou amesquinhada no sistema de justiça, sob pena de desprestigiar a própria jurisdição e os valores democráticos que a sustentam.
Como destacou o ministro Celso de Mello, enfraquecer a Defensoria Pública é atentar contra a democracia e contra a própria justiça. Negar-lhe garantias que são reconhecidas a outras instituições e adotar medidas para que atue em condições desiguais é permitir que o direito à defesa dos mais vulneráveis seja relativizado.
A inclusão da Defensoria Pública no PL 4015/23 é, portanto, uma exigência constitucional, ética e institucional. Reconhecer o risco envolvido na atuação de defensoras e defensores é reconhecer a importância de sua missão - e, com isso, fortalecer a democracia e a higidez da defesa da dignidade da população majoritariamente vulnerável em nosso país.
Fernanda Fernandes
Presidenta da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP)
Luciana Bregolin
Presidenta da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (ANADEF)