Rivana Barreto Ricarte
Presidenta da Anadep
A Constituição Federal elenca em seu art. 134 as funções da Defensoria Pública, alçada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014, como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. A Emenda representou verdadeira evolução na carreira dos defensores públicos, sobretudo em razão da reconfiguração das funções de defensor/a público/a, com a ampliação de suas atribuições para além da defesa criminal, passando a alcançar também a defesa dos interesses e direitos das vítimas.
Em outros termos, a Defensoria Pública tem hoje uma atuação que vai muito além da simples defesa jurídica, sendo pilar para o funcionamento do Estado Democrático de Direito. Por isso, sua proteção é questão de interesse público.
No entanto, muitas notícias mostram que a relevância desse papel não encontra paralelo com o reconhecimento das condições e desafios enfrentados por esses profissionais no dia a dia do exercício de suas atividades.
Com a crescente atuação de defensoras e defensores públicos no campo dos direitos humanos, violência doméstica, no enfrentamento à violência policial, no atendimento em estabelecimentos penitenciários da justiça criminal, na defesa criminal, principalmente a que envolve crime organizado, no enfrentamento a diversas formas de violência, em especial conflitos agrários e o confronto com poderosos interesses econômicos e políticos, é inegável que esses profissionais estejam expostos a riscos elevados, que abrangem sua integridade física e segurança pessoal, tanto em razão de suas atividades quanto pelas circunstâncias em que as exercem. Não raras vezes a defesa criminal impõe conflito entre facções e expõe o/a defensor/a a situações de risco. São relatos de ameaças de facções criminosas, riscos de retaliação por sua atuação em casos de grande repercussão midiática e até ameaças físicas.
Nos últimos anos, por exemplo, nos estados da Bahia, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Sergipe, Paraná, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Piauí há registros de casos envolvendo a (in)segurança pública do defensor/a público/a no exercício ou em razão da função em diferentes áreas de atuação. Isto é, desde atuação em casos da área de família e cível, como também na atuação na seara criminal e questões fundiárias.
Um exemplo emblemático da exposição a que estão sujeitos defensores públicos pode ser visto no caso de uma defensora no Rio Grande do Sul, que, após atuar em um acordo de delação premiada envolvendo facção criminosa, foi alvo de um plano de sequestro, sendo necessária sua remoção para outro estado por um longo período. Essa situação revela que a exposição dos defensores, sobretudo em casos criminais de alta complexidade, não é menos perigosa do que a de outros membros do sistema de justiça.
Outro caso concreto desse risco ocorreu em 2018, quando uma das defensoras públicas do Rio de Janeiro recebeu ameaças de morte por sua atuação em casos de remoções forçadas de comunidades em áreas controladas por milícias. No Pará, em 2020, um defensor público foi ameaçado de morte após atuar em defesa de comunidades quilombolas em litígios territoriais com grandes fazendeiros e madeireiros ilegais. A atuação de defensores em conflitos agrários, principalmente em áreas rurais ou em regiões dominadas pelo garimpo ilegal, coloca-os em constante risco. As tentativas de intimidação não apenas ameaçam sua integridade física, mas também comprometem o acesso à justiça para as comunidades vulneráveis que representam. Em 2021, no estado do Mato Grosso, uma defensora pública foi ameaçada por um homem contra quem havia movido ação de proteção para sua companheira. O agressor, inconformado com a atuação da defensora, fez ameaças que levaram a Defensoria Pública do estado a intensificar as medidas de segurança, evidenciando o risco constante a que esses profissionais estão expostos ao defender direitos fundamentais.
Esses exemplos concretos evidenciam a necessidade urgente de o Estado reconhecer a atividade exercida por defensoras e defensores públicos como de risco permanente. A inclusão da defensoria pública no PL nº 4.015/2023, aprovada pelo Senado, foi uma resposta acertada à necessidade de maior proteção e segurança para esses profissionais. O projeto de lei original tratava do reconhecimento de várias categorias do funcionalismo público como sujeitas a riscos permanentes, mas a inclusão da Defensoria Pública corrige grave omissão e assegura que esses profissionais recebam a proteção devida.
Diante desse cenário, onde o sistema de justiça brasileiro enfrenta crescentes desafios, é fundamental que a legislação brasileira passe a reconhecer a atividade desempenhada por defensoras e defensores públicos como de risco permanente. O Projeto de Lei nº 4.015/2023, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, com as alterações propostas pelo Senado – o senador Weverton Rocha (PDT-MA) acolheu a emenda proposta pela senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB) e incluiu a Defensoria Pública entre as categorias de risco – representa avanço necessário para a valorização e proteção dessa carreira. O projeto de lei qualifica como crime os homicídios ou lesões corporais dolosas cometidos contra membros do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Defensoria Pública em decorrência ou no exercício de suas funções.
Esse reconhecimento não é apenas questão de justiça para os profissionais que atuam na Defensoria Pública, mas também medida estratégica para fortalecer as instituições que garantem os direitos fundamentais. A atividade de defensoras e defensores públicos é, por natureza, combativa e desafiadora. Eles lutam contra forças que muitas vezes operam à margem da lei, representando aqueles que não têm voz ou poder econômico. E, como dito, esse enfrentamento constante, sem a devida proteção institucional, expõe os profissionais a ameaças reais e iminentes, que impactam diretamente sua saúde mental, segurança e, em última instância, os próprios.
A inclusão da Defensoria Pública no PL nº 4.015/2023, fruto do trabalho legislativo desempenhado pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, foi resposta acertada à necessidade de garantir maior segurança a esses profissionais. O projeto de lei original tratava do reconhecimento de diversas categorias de servidores públicos como sujeitas a riscos permanentes. No entanto, foi a sensibilidade do Senado, ao perceber a lacuna que a ausência da Defensoria Pública representava, que corrigiu essa omissão e incluiu a carreira entre aquelas reconhecidas como de risco.
A tramitação agora depende da aprovação final na Câmara dos Deputados, e é crucial que o texto aprovado preserve as modificações introduzidas pelo Senado. Essa aprovação vai ao encontro da necessidade de garantir que o exercício da função pública, especialmente na proteção dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade, seja realizado com a proteção devida a quem a executa.
Por fim, é importante destacar que a aprovação do projeto com a inclusão da Defensoria Pública é um passo necessário não apenas para a proteção dos profissionais da área, mas também para a própria defesa da democracia. Quando o Estado assegura condições dignas de trabalho e proteção àqueles que defendem os direitos da população mais vulnerável, fortalece-se a própria estrutura democrática e o princípio da justiça igualitária. Afinal, a segurança de quem defende os mais vulneráveis é, em última instância, a segurança de toda a sociedade.