Presa para cumprir pena de nove anos e quatro meses, e já na penitenciária há dois anos e meio, uma mulher teve a condenação anulada pela justiça após a Defensoria Pública do Ceará atuar no caso. Em parceria com o Innocence Project Brasil, uma associação sem fins lucrativos que busca reverter erros do judiciário, a DPCE solicitou revisão processual e apresentou novas provas e testemunhas que ficaram esquecidas no processo, inocentando, assim, Edilene Rodrigues.
A auxiliar de costureira era acusada de omissão no estupro da própria filha. O crime ocorreu em 2012, quando a garota tinha apenas 12 anos, e a mãe foi considerada conivente por não ter registrado Boletim de Ocorrência contra o então namorado logo após o estupro, o que acabou sendo feito pelo pai da adolescente. Nove anos depois, o processo correu sem ela saber que era ré e ela foi considerada culpada, mesmo sem indícios de que sabia de tudo e não reagiu. Com o término do relacionamento imposto por Edilene, o acusado fugiu para o Rio de Janeiro (RJ), onde foi capturado em junho de 2022. Ele foi condenado a 14 anos de detenção e permanece preso na capital fluminense.
Entre dezembro de 2021 e agosto de 2024, a auxiliar de costureira ficou presa em regime fechado na Unidade Prisional Feminina Desembargadora Auri Moura Costa, localizada em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza. Cumpriu, portanto, 27% da pena. Quase um terço do total. “Esse foi um caso muito difícil. Era dado como perdido e exigiu da gente um grande trabalho de investigação. Analisei de ponta a ponta, não vi nenhum indício de omissão e fiquei me perguntando como a Justiça fez um negócio desses. A Edilene foi condenada a partir de especulações. Um absurdo!”, afirma o defensor Emerson Castelo Branco Mendes, titular do Núcleo de Assistência ao Preso Provisório (Nuapp) da DPCE e responsável pelo caso ao lado do defensor Leonardo de Moura e da defensora Nelie Aline Marinho.
Emerson entrou no caso a pedido da filha de Edilene, a quem atendeu no Nuapp e de quem recebeu uma carta escrita à mão com um apelo por socorro. Era início de 2022 e a garota vítima do abuso tornara-se uma mulher adulta em busca de justiça. “Dez anos após o crime, nós retornamos ao local onde tudo aconteceu e conseguimos provas fundamentais, como uma vizinha que nunca tinha sido ouvida e um homem que foi testemunha ocular da reação da Edilene quando ela partiu pra cima do ex-namorado tão logo soube do ocorrido. Assim, provamos que ela não protegeu o abusador e não sabia de nada. É inimaginável uma mãe dedicada ser condenada ao patamar de um crime hediondo”, analisa o defensor.
A anulação da condenação de Edilene foi fruto de decisão unânime das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), nas quais a atuação da Defensoria Pública de buscar novas provas e solicitar a revisão criminal foi qualificada pelos desembargadores e pelas desembargadoras como “um grande trabalho para que seja restabelecida a justiça”. A absolvição aconteceu em sessão ocorrida no último dia 30 de setembro.
Pedir a inocência através da revisão do caso era, como sintetiza o defensor Emerson Castelo Branco, “a cartada final”. “Essa é uma vitória da Justiça. Porque ninguém pode ter compromisso com o erro”, avalia. “Até a direção do presídio sabia que ela [Edilene] não era culpada. Nem a própria filha culpou a mãe, em momento nenhum. Mas o depoimento dela [da filha] nunca foi considerado. A função da Defensoria Pública, então, é ser o filtro dos inocentes”, finaliza.
Edilene com os defensores Leonardo de Moura (centro) e Emerson Castelo Branco logo após o julgamento que a inocentou, em 30 de setembro de 2024, no Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza
INNOCENCE PROJECT BRASIL
A revisão do caso de Edilene foi a segunda conquistada pela DPCE em parceria com o Innocence Project Brasil. O primeiro beneficiado foi Antônio Cláudio Barbosa de Castro, que em julho de 2019 foi absolvido após quase cinco anos preso sob a acusação de ser o “maníaco da moto”, um estuprador, com base exclusiva em “reconhecimentos” das vítimas. À época, novas provas foram produzidas, inclusive periciais, a partir de filmagens que atestaram uma diferença de 20 centímetros entre a altura dele e do verdadeiro autor dos crimes, que continuou agindo mesmo após a prisão do borracheiro.
Edilene é a primeira mulher do Brasil a conseguir a anulação da condenação a partir de uma intervenção do Innocence Project. A iniciativa existe no país desde 2016 e integra uma rede maior pelo aprimoramento da justiça, composta de 68 organizações e responsável pela absolvição de 624 pessoas presas injustamente em diversas localidades do mundo. A assistência jurídica é prestada de forma totalmente gratuita.
Diretora-fundadora do Innocence Project Brasil, a advogada criminalista Flávia Rahal atuou na revisão criminal de Edilene. Ela saiu de São Paulo em direção a Fortaleza só para acompanhar presencialmente o julgamento no TJCE e classificou a anulação da condenação como “realização de justiça” depois de um processo longo e maduro de análise do caso, que só foi aceito pelo projeto porque, diante das novas provas apresentadas pela DPCE, a inocência da auxiliar de costureira era praticamente incontestável.
“Foi um trabalho feito por muitas mãos, em São Paulo e aqui no Ceará. Essas novas provas demonstraram, sem sombra de dúvidas, que a mãe, em vez de ter se omitido, fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar que os abusos acontecessem. A anulação é uma realização de justiça e um resgate de duas vidas, da mãe e da filha, que foi a grande batalhadora para que essa inocência fosse reconhecida”, avalia Rahal.
Em nova chance, Edilene se tornou funcionária da Defensoria do Ceará, garantindo que outros réus tenham ampla defesa, consigam provar a própria inocência e, consequentemente, tenham direitos assegurados.