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15/04/2024

A Defensoria Pública na defesa dos direitos dos povos indígenas

Fonte: Revista Justiça&Cidadania

Cláudia Aguirre - Integrante da Comissão dos Direitos dos Povos Indígenas da Anadep

Quando tomei posse como Defensora Pública do Acre, em 2014, não ouvia a palavra “indígena” na minha instituição. Quase dez anos depois, continuo em minha primeira lotação, numa cidade localizada no Vale do Rio Juruá, chamada Cruzeiro do Sul, a mais de 600 quilômetros da capital, região que concentra parte das terras indígenas acreanas. 
 
Forjada em Niterói, São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, eu não fazia ideia do que era morar e trabalhar no interior. Estamos falando do interior na Região Amazônica, com suas belezas, com seus rios e igarapés, com a umidade, a riqueza humana dos povos indígenas e comunidades ribeirinhas. Também com vulnerabilidades mais abissais, com alto índice de analfabetismo, que me obriga a ter uma almofada para carimbo sempre à mão, com o isolamento geográfico e comunicacional, além da absoluta ausência do Estado em muitos locais.
 
Atendi em meu primeiro mês uma mulher Ashaninka, salvo engano para tratar de retificação de registro civil – o que depois descobri ser algo costumeiro dos atendimentos da Defensoria Pública para a população indígena. Hoje sei que isso é racismo institucional, que desenha os mais diversos descuidos e negativas quando uma pessoa indígena pretende ter aquele primeiro documento que lhe dá visibilidade. Pois bem, essa mulher Ashaninka não falava português e entrou altivamente no meu gabinete com suas vestes e sua criança no colo. Ashaninka? De onde são, quem são? Passei a ter um mapa em minha mesa com as terras e os povos indígenas do Acre. Redobrei minha atenção para superar a barreira linguística e cultural. Também comecei a estudar o assunto diariamente. Vinda de um Sudeste onde se diz que “o Acre nem existe”, tive que encarar minha ignorância.
 
Comecei a ver o Acre existindo todos os dias desde então, sobretudo na medida em que os povos indígenas me desafiavam a sair da minha zona de conforto. Fiz um primeiro contato com a FUNAI em Cruzeiro do Sul em 2014 e dali começou uma parceria profícua, que me levou a participar das etapas da Conferência Nacional de Política Indigenista em 2015. A etapa local fora realizada na Terra Indígena Puyanawa, em Mâncio Lima (AC), para a qual fui convidada para fazer uma palestra. Era a primeira de muitas vezes em que pisaria em uma terra indígena, cada vez mais descobrindo as possibilidades da educação em direitos em meio ao meu próprio letramento étnico-racial. 
 
Aos poucos, vi crescer o número de indígenas no atendimento da Defensoria Pública em Cruzeiro do Sul. A visibilidade da pauta vêm aumentando no meio institucional e hoje a Defensoria Pública do Acre também conta com uma mulher indígena na Ouvidoria Externa, Soleane Manchineri.
 
Começo esse artigo falando brevemente da minha experiência pessoal porque, felizmente, não fui nem a primeira nem a única que se viu inquieta ao chegar em territórios com presença indígena, especialmente nas comarcas do interior. Muitos fomos obrigados a rever paradigmas diante da vergonhosa lacuna na formação acadêmica e pessoal no que diz respeito a povos indígenas. Desta forma, passamos a enxergar uma realidade por vezes invisibilizada no sistema de justiça, começamos a procurar formas de inverter isso e transformá-la no que está ao nosso alcance. 
 
Para que as Defensorias Públicas cumpram adequadamente sua missão de promover o acesso à justiça aos povos indígenas, é necessário que estas experiências ultrapassem o âmbito individual e se tornem políticas institucionais. Isto exige não só um entendimento legal, mas uma compreensão vivencial e étnico-racial do nosso papel. 
 
Funções institucionais da Defensoria Pública na perspectiva étnico-racial – A Constituição Federal, em seu art. 134, institui a Defensoria Pública como essencial à função jurisdicional do Estado, com a atribuição de prestação de orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todas as esferas e graus, dos direitos individuais e coletivos dos “necessitados”. Atualmente, nós, defensoras e defensores públicos, preferimos falar em pessoas em situação de vulnerabilidade, ou em vulnerabilidades, para enfatizar que ninguém é “necessitado” ou “vulnerável” por uma característica intrínseca, mas por estruturas sociais que produzem a vulnerabilidade.
 
Ao olharmos para a Lei Complementar 80/94, que organiza as Defensorias Públicas brasileiras, notamos que seu art. 4º, além de ressaltar a difusão dos direitos humanos (inciso III) e a ampla defesa dos direitos fundamentais individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais (inciso X), identifica grupos específicos – como as mulheres, idosos, crianças, e pessoas com deficiência – que merecem especial atenção. No mesmo sentido, seu inciso XI menciona “outros grupos sociais vulneráveis que mereçam a proteção especial do Estado”, e é aqui que os povos indígenas se enquadram e nos provocam a enxergar as especificidades das dificuldades que enfrentam. 
 
O que significa perceber as especificidades das vulnerabilidades que afastam os povos indígenas do pleno exercício de direitos? Para além de identificar as normas constitucionais, convencionais e legais aplicáveis de forma isolada, deve-se contextualizá-las na retomada daquilo que está no DNA dos direitos humanos: a luta antidiscriminatória e a busca por igualdade substancial. 
 
É preciso compreender que as violações de direitos dos povos indígenas são fruto de um histórico colonial que perpassa por questões sociais, econômicas, culturais e epistemológicas que definem as estruturas racistas que geram desigualdades. Lidar com os povos indígenas é inquietante e desafiador porque estamos prestes a participar das engrenagens discriminatórias se não tivermos o trabalho de nos conscientizar, duvidar das “fórmulas” jurídicas, saber ouvir os pontos de vista e saberes desses povos, e mudarmos nossas práticas. 
 
Além da Convenção de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 – considerada o primeiro tratado de direitos humanos da ONU ao trazer a questão étnico-racial e a discriminação para o centro do debate –, outros marcos constitucionais e convencionais supervenientes consagraram importantes direitos alinhados com as reivindicações dos povos indígenas. A Constituição Federal de 1988 é um exemplo disto, especialmente nas disposições dos artigos 231 e 232. Houve, ainda, a Convenção 169 da OIT de 1989, que afasta o assimilacionismo e reconhece o direito dos povos indígenas de assumirem o controle de suas próprias instituições e formas de vida. Também é importante mencionar a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007, a qual reflete os anseios da articulação de povos indígenas de todo o mundo. 
 
Em suma, este conjunto de normas impõe modificações estruturais na forma como o Estado se relaciona com os povos indígenas, afastando o regime tutelar antes vigente e determinando obrigações relacionadas à autodeterminação, consulta prévia, livre e informada, consideração das especificidades étnicas nas políticas públicas e na legislação doméstica, o olhar para o coletivo além do individual, o compromisso com a erradicação da discriminação, dentre outros deveres. 
 
Na perspectiva da cidadania diferenciada garantida aos indígenas constitucional e convencionalmente, todos os órgãos estatais, de todas as esferas e poderes, devem estar aptos a promover os direitos dos povos indígenas em seus serviços, inclusive a Defensoria Pública. À Defensoria Pública cabe, portanto, ao lidar com as demandas por direitos dos povos indígenas, reler as suas funções institucionais previstas na Constituição Federal e na LC 80, especialmente o seu artigo 4º, pela lente antirracista e com a sensibilidade e interdisciplinaridade necessárias para considerar os aspectos étnicos envolvidos. 
 
Definitivamente não há receita pronta nem “modelo de petição”. Há vivência, luta diária pela priorização institucional das pautas étnico-raciais, oitiva cuidadosa dos povos indígenas para criar estratégias não só a partir do que o livro diz, mas, preferencialmente, fora do gabinete, em uma aldeia ou uma comunidade indígena urbana. E é isto que vemos crescer pelas Defensorias Públicas Brasil afora. 
 
Evento histórico – Entre os dias 22 e 23 de fevereiro, foi realizado, em Brasília, o I Encontro da Frente Afro-Indígena das Defensoras e Defensores Públicos do Brasil, organizado pelo Fórum Justiça e a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, com o apoio de suas Comissões de Igualdade Étnico-Racial e de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas.
 
Trata-se de um evento histórico por muitos motivos, como o fato de sua organização contar com o protagonismo de pessoas negras e indígenas. As posições de facilitadores, palestrantes, bem como de apresentadoras e apresentadores de práticas, contaram com o protagonismo de profissionais e defensores públicos também negros e indígenas. Por fim, mas não menos importante, o encontro permitiu a apresentação de uma gama de práticas que nos possibilita mapear atuações consistentes na defesa dos direitos dos povos indígenas. 
 
Pudemos testemunhar uma Defensoria Pública que sai do gabinete e vai para o território, reinventando-se a partir do diálogo e da construção de vínculos de confiança com os povos indígenas. Os exemplos de atuações institucionais são muitos: o caso da CAPI Indígena, a Central de Atendimento e Peticionamento Inicial Indígena, criada pela Defensoria de Roraima dentro da TI Waimiri Atroari, gerida pela própria comunidade indígena, e que conseguiu erradicar o sub-registro no local. Também relevantes as estratégias de comunicação da Defensoria Pública da União criadas por jornalistas indígenas. 
 
Tiveram lugar as iniciativas acadêmicas com foco na experiência defensorial, com a pesquisa sobre mulheres indígenas encarceradas apresentado pela assessoria jurídica do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica (NUPIIR) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul. Considerado pioneiro, o núcleo foi criado em 2018 e também apresentou atuação para erradicar o sub-registro de crianças indígenas nos territórios Guarani-Kaiowá por meio do mapeamento das escolas nas respectivas localidades. 
 
Do Mato Grosso do Sul veio, ainda, a experiência associativa da ADEP/MS na presidência do Conselho Estadual de Direitos Humanos, com a criação de uma comissão específica que apresentou relatório sobre a situação dos povos indígenas nas proximidades com a fronteira do Paraguai.  
 
Da Defensoria Pública de Minas Gerais foram trazidas várias práticas, como as reflexões sobre a priorização de meios consensuais e administrativos apresentadas pela Defensoria Pública de Minas Gerais; a atuação defensorial junto ao povo Maxakali para o acesso a direitos, sobretudo aqueles ligados à saúde e à família; e o trabalho da Defensoria Pública com a rede de proteção à criança e adolescente em Belo Horizonte buscando a garantia de direitos às crianças e adolescentes migrantes do povo Warao. 
 
Outro destaque foi a atuação da Defensoria Pública em grandes desastres socioambientais, como no atendimento, pela Defensoria Pública de Espírito Santo, a indígenas Comboios, Tupiniquim e Guarani atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (MG). Houve ainda o espaço para um workshop sobre protocolos de consulta prévia, livre e informada, tema tão caro aos povos indígenas.  
 
Temos um longo caminho pela frente para que as Defensorias Públicas e o sistema de justiça como um todo promovam os direitos dos povos indígenas de forma mais efetiva. Todavia, as vivências defensoriais pelo País, das quais tivemos uma amostragem bastante representativa no I Encontro Afro-Indígena das Defensoras e Defensores Públicos, nos indicam possíveis e necessárias vias. 
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