Rivana Barreto Ricarte - Presidenta da Anadep
Há uma relação indissociável entre a história da Defensoria Pública no País e a história da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos. Assim, celebrar 40 anos da Anadep é celebrar o movimento associativo organizado marcado pelo trabalho de aprofundamento de reivindicações em torno dos direitos de cidadania, da defesa da democracia e dos Direitos Humanos, das causas de defensoras e defensores públicos, da ampliação do acesso à Justiça e do fortalecimento da Defensoria Pública.
Celebrar a Anadep é celebrar uma história que remonta a década de 1980, quando os movimentos em prol da redemocratização do país tomaram conta do cenário político, artístico e cultural e firmaram o momento histórico de discussões que antecediam e permeavam a Assembleia Nacional Constituinte.
Neste período de verdadeira efervescência nacional, a luta pela constitucionalização da Defensoria Pública ganhou força a partir do trabalho de união de um grupo de defensores que se uniu e fundou aquela que seria no futuro a maior associação de defensoras e defensores públicos do mundo. Já se mostrava naquele momento, a visão dos defensores da necessidade da união e defesa do Estado Democrático de Direito.
O fato é que, antes da Constituição de 1988, havia várias formas de prestação de serviços de assistência judiciária nos diversos estados brasileiros. Os primeiros cargos de defensores foram criados em dezembro de 1954 no Rio de Janeiro. Embora ligados administrativamente ao Ministério Público, esse grupo de defensores constituíra um quadro próprio de assistência judiciária. Em 1987, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro adquiriu sua autonomia administrativa, grande marco na história da instituição, refletindo fortemente na inserção da Defensoria Pública na Carta Magna.
Nos anos 1980, os estados de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, após incansável luta dos servidores públicos que atuavam no serviço de assistência judiciária, se uniram aos já defensores públicos do Rio de Janeiro e chegaram a obter nestes estados uma estrutura organizada semelhante ao que se fazia no Rio de Janeiro. Em Minas Gerais, em 1981, foi criada e organizada a Defensoria Pública de Minas Gerais, mas mantendo-a vinculada à Secretaria de Estado de Interior e Justiça. A presença de figuras políticas e autoridades importantes, entre eles o Deputado Silvio Abreu, eleito deputado constituinte, nestes atos de instalação da defensoria pública mineira, conferiram mais força ao movimento e serviram de exemplo na discussão da Assembleia Nacional Constituinte.
Foi neste período, exatamente em 3 de julho de 1984, que nasceu a Fenadep – Federação Nacional de Defensores Públicos, que passou a agregar forças em todo o Brasil visando implantar um modelo público geral de assistência judiciária.
Instalada a Assembleia Nacional Constituinte, delegações de defensores públicos e de assistentes judiciários, sob a liderança dos colegas José Fontenelle Teixeira e Suely Pletz Neder, visionários e predecessores maiores do associativismo na Defensoria Pública, passaram a frequentar o Congresso Nacional diuturnamente.
A incansável e permanente presença dos defensores e demais interessados atuando junto aos parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado Federal durante todo o período de elaboração da Constituição Federal de 1988 foi primordial para a consecução do objetivo. A Defensoria Pública foi tema muito discutido na Comissão e Subcomissão temática criadas para tratar do sistema de justiça.
Naquele início, o trabalho da Fenadep foi marcado pelo enfrentamento a muitas divergências. O que as defensoras e os defensores almejavam era a institucionalização da Defensoria Pública como política nacional de acesso à justiça. Contudo, outros integrantes da área jurídica que atuavam na prestação de assistência judiciária em alguns estados, dentre eles procuradores de estados e advogados, e até alguns governos estaduais que mantinham outros serviços de assistência judiciária e que não tinham interesse em criar as defensorias em seus estados, além do próprio Ministério Público, que não queria uma nova instituição do sistema de justiça, faziam forte oposição.
O embate foi travado, inicialmente, na Subcomissão do Poder Judiciário e Ministério Público que tinha como relator o Deputado Plínio de Arruda Sampaio. A forte defesa da Defensoria Pública foi capitaneada pelos Deputados Constituintes Silvio de Abreu, mineiro, e Plínio Martins, sul-mato-grossense. A presença de representantes da Fenadep nas reuniões da Subcomissão e o pronunciamento das defensoras e defensores públicos, demonstrando cabalmente a necessidade social de se implantar a Defensoria Pública em todo o território nacional, sensibilizou os constituintes membros da Subcomissão, e logrou-se a primeira vitória do trabalho associativo nacional, com a inclusão do dispositivo que atendia parte das pretensões da Fenadep no projeto. O texto seguiu para o debate e para as modificações nas comissões que sucederam, como a comissão da organização dos poderes do sistema de governo e, em seguida, no Plenário.
O trabalho associativo da Fenadep foi incansável e um marco para que se alcançasse êxito no texto final da Constituição Federal, com a constitucionalização da Defensoria Pública. A Constituição Federal de 1988 passou a refletir os anseios dos brasileiros por redemocratizar o Estado e construir uma “sociedade livre, justa e solidária” e concretizou, em seu artigo 134, o sonho de previsão de uma instituição autônoma que desse voz aos grupos sociais mais vulnerabilizados e que pudesse, com a concretização do mandamento constitucional, fazer frente aos que violassem seus direitos.
Passada essa etapa, o movimento associativo se volta ao trabalho para aprovação da lei orgânica nacional que desse concretude àquilo estabelecido na Constituição Federal de 1988. As atividades legislativas foram mais uma vez intensas, e com o envolvimento de defensoras e defensores de todo o país que somavam esforços com os presidentes da Fenadep até alcançar êxito, já sob a liderança do colega André de Felice, com a aprovação da Lei Complementar no 80 de 1994.
Foi neste período também que a Fenadep passou a ser chamada de Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep), e o trabalho associativo foi voltado a correta instalação e fortalecimento das Defensorias Públicas nas diversas unidades da federação, sem se descurar dos inúmeros avanços legislativos em âmbito nacional, sejam eles avanços constitucionais, sejam os avanços na legislação infraconstitucional.
Não à toa o trabalho legislativo e jurídico da Anadep, em defesa da solidificação da Defensoria Pública, ao longo destes 40 anos, junto a parlamentares, ministros e membros do executivo, é sempre reconhecido. Observa-se nitidamente um legado de uma entidade bem estruturada e pautada, desde sua criação, por ideais de união e de unicidade de propósitos em busca do crescimento e fortalecimento da Defensoria Pública em pautas que vão muito além da defesa corporativa de tradicional referência, mas também para o fortalecimento dos elos sociais e para a defesa democrática que representa a realização dos direitos constitucionais das pessoas em situações de vulnerabilidades no país.
A Anadep exerceu trabalho fundamental durante a Emenda Constitucional no 45 de 2004, denominada Reforma do Judiciário, que assegurou às Defensorias Públicas Estaduais autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária, bem como o recebimento em duodécimos dos recursos correspondentes às suas dotações orçamentárias, nos termos dos artigos 134 e 168 da Constituição Federal de 1988. Também a aprovação da Lei Complementar no 132 de 2009 que regulamentou a autonomia da Defensoria Pública, reformando a Lei Complementar Federal no 80 de 1994 – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, atualizando seus institutos, ampliando significativamente suas competências, abrindo-a aos seus destinatários e estabelecendo como funções institucionais a promoção prioritária da solução extrajudicial dos litígios, a difusão dos Direitos Humanos e a tutela, individual e coletiva, de vítimas e pessoas em condições de vulnerabilidade, aprofundando assim a vocação democrática da instituição como instrumento de realização da cidadania para as camadas mais pobres. A Emenda Constitucional no 80 de 2014 que deu novo perfil constitucional à instituição, constitucionalizando os princípios da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional, além de conferir a obrigação do Poder Público de universalizar o acesso à Justiça e garantir a existência de defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais. As reformas do Código de Processo Civil, Código de Processo Penal, além de outras incontáveis reformas legislativas, como Reforma da Previdência, Código Penal, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto da Pessoa Idosa, Estatuto da Pessoa com Deficiência, entre outros, estão permeados do trabalho legislativo capitaneado pela Associação Nacional.
Ao longo de quatro décadas, 11 presidentes e 3 presidentas assumiram a direção associativa, oriundos de diferentes regiões e estados (Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Bahia, Distrito Federal, Piauí, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Maranhão, São Paulo, Espírito Santo e Acre). A Anadep passou por três mudanças de sede em Brasília e foi a primeira entidade nacional a acolher a adequação da linguagem de gênero em seus documentos, tendo alterado, em 2018, o seu nome para Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos.
A certeza que move o movimento classista é que não é possível olhar para o futuro se não tivermos os olhos postos no passado para que se aprenda com a experiência dos que vieram antes. Assim, celebrar 40 anos é rever passos dados e caminhos percorridos, em um verdadeiro exercício de elucidação e de aprendizado, onde se revisita histórias de luta, união, derrotas e conquistas. Voltar o olhar para o passado, impulsiona a seguir construindo a trajetória de um movimento associativo coletivo, forte e responsável, que une defensoras e defensores públicos que trabalham pela solidificação da independência funcional dos membros da Defensoria Pública, pela defesa da autonomia administrativa e financeira da instituição, das suas prerrogativas e pela remuneração justa e adequada às funções que desenvolvem.
Olhar para o futuro é trabalhar para garantir a simetria constitucional da Defensoria Pública e consolidar a atuação das defensoras e defensores públicos como agentes de transformação social em todos os espaços.
Olhar para o futuro da Anadep é reconhecer que o trabalho associativo forte e organizado é o motor que alavanca pautas da Defensoria Pública e que abre caminhos para prosseguir com a construção de uma Defensoria Pública que cumpre de maneira responsável, criativa e sempre promissora a sua missão institucional de promover, de forma integral e gratuita, em todos os graus de jurisdição, orientação jurídica e defesa da população sócio e economicamente vulnerabilizada no país, ou seja, de todos aqueles indivíduos e grupos de indivíduos que não podem arcar com as despesas de uma representação privada na defesa de seus direitos.