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08/07/2024

Um novo presente é (e deve ser) possível

Fonte: Revista Justiça&Cidadania

Antonio Barbosa de Almeida - Coordenador da Comissão dos Direitos da População em Situação de Rua da Anadep

Regina é uma mulher em situação de rua. É vítima de violência doméstica (na rua) perpetrada por seu companheiro também em situação de rua. Atendida pela Casa da Mulher Brasileira, obteve medida protetiva que não consegue ser plenamente cumprida, pois vive em situação de calçada: não consegue acionar a patrulha Maria da Penha porque não tem acesso ao telefone e, mesmo se acionasse, dificilmente algo seria exitoso, já que não tem uma casa, nem vaga no único abrigo para mulheres em sua cidade. Regina, com um olhar lânguido e a partir das marcas em sua pele, que expressam que seu corpo continuará à margem da proteção legal, desabafa que prefere ficar com as agressões do companheiro do que ser violentada por outros homens. Ao menos ele a “protege” das demais violências. 
 
João não possui vínculos familiares, é bipolar, possui dependência química, históricos de tentativa de suicídio e dificuldade de interação social. Está medicado e em tratamento, e agora gostaria de um local onde pudesse se abrigar e organizar suas medicações, seus pertences e buscar um trabalho. Ele não se sente confortável em dividir um único espaço para repouso com várias pessoas em razão da sua condição pessoal, e por não ter sua individualidade respeitada. Como os serviços públicos de acolhimento são coletivos e ele não possui família, tampouco uma habitação, dorme sozinho, abraçado às (e por) suas coisas, na calçada sob a marquise de um banco no centro da cidade. 
 
Lígia é uma mãe (sem filhos) em situação de rua. Ela conta que tem três filhos, mas não sabe onde estão, pois, embora entrasse no hospital carregando um feto em seu ventre, em todas as vezes que deu à luz, saiu sozinha, sem os filhos nos braços. A justificativa: os recém-nascidos seriam acolhidos – já havia determinação judicial nesse sentido – e ela não poderia sequer amamentá-los para não gerar vínculo. Embora todas as respostas lhe fossem negativas, ela vaga nas ruas do centro da cidade em busca dos que lhe foram retirados e de um sonho de maternidade e família que as demais mulheres domiciliadas podem sonhar, mas ela não. E com os olhos marejados, ela pergunta durante um atendimento jurídico na Defensoria Pública: “Dr., eu vou poder ver meus filhos algum dia?”.
 
Gustavo, homem negro e sem família em situação de rua, grita que é um absurdo ter que esperar, na chuva e no frio, até às 18 horas para poder entrar e comer no abrigo. O relógio marca 16 horas e a fila já se forma na capital mais fria do País. Gustavo é acusado pelo Guarda Municipal de estar tumultuando a fila enquanto as portas não se abrem. Ele não concorda (nem com a acusação, nem com o frio, nem com a fome que sente). A fim de evitar que ocorra um tumulto, o agente público lhe atinge com um soco. Gustavo tem sua mandíbula fraturada. Nessa noite, ele dormiria e jantaria no hospital. 
 
Os relatos acima possuem nomes fictícios, mas representam cenas e histórias reais de atendimentos realizados por defensoras e defensores públicos no País. São apenas quatro recortes de um estado de coisas inconstitucionais cotidiana e rotineiramente naturalizado por nós. 
 
A situação de rua é tida por muitos como sendo uma “escolha individual” daqueles que sobrevivem nas calçadas dos centros urbanos. Pouco mais de uma década de atuação defensorial, quando ouço afirmações como essas, concluo que elas funcionam mais como uma estratégia de isenção de responsabilidade social de quem as enuncia do que propriamente serem fruto de uma capacidade reflexiva e científica sobre o assunto. 
 
A perpetuação da situação de rua talvez seja o estado mais bruto da desumanização — não de quem está nas ruas, mas dos que compõem o sistema de justiça, os poderes instituídos e dos que habitam nossas casas. É a escassez de alteridade, da responsabilidade social e da fragilidade da nossa solidariedade. É também a falência (ou seria o êxito?) de uma racionalidade neoliberal que exorta o dogma da meritocracia, da concentração de renda e do (auto)empreendedorismo. Afinal, se falhar, é tão e somente sua responsabilidade. 
 
O Brasil possui mais de 280 mil pessoas em situação de rua; a situação de vulnerabilidade é um quadro extremo de violação de direitos. São pessoas historicamente marginalizadas e que, do ponto de vista historiográfico, apenas recentemente receberam atenção normativa na perspectiva da promoção de direitos e não da repressão. 
 
Apenas em 2005, por exemplo, houve previsão expressa em texto de lei para garantir o atendimento às pessoas em situação de rua nos programas socioassistenciais de proteção (Lei 11.258/2005). Essa “inovação” legislativa ocorreu após o “Massacre da Praça da Sé” no qual, entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, sete pessoas foram covardemente assassinadas e outras oito ficaram gravemente feridas enquanto dormiam nas ruas da região da Praça da Sé, na cidade de São Paulo. Os autores do crime estão impunes até hoje.  
 
De lá para cá, tivemos outras normativas que buscam promover e proteger os direitos das pessoas em situação de rua, tais como: o Decreto Federal 7.053/2009, a Resolução 40/2020 do CNDH, a Resolução 425/2021 do CNJ, a Lei 14.489/2022 e a Lei 14.821/2024. No entanto, ainda persiste o fosso entre a norma e a efetividade (realidade). 
 
Inúmeras teorias sociológicas e jurídicas podem explicar essa disparidade, não sendo elas o objeto das linhas desta reflexão. A nós, neste momento, cumpre trazer à tona a importância de se alterar a metodologia das políticas públicas com a qual se trabalhou, de lá para cá, em relação à situação de rua. Dos relatos históricos apresentados no início do texto, há em comum entre eles a completa ausência de alternativas habitacionais e de moradia às pessoas que estão em risco social. 
 
Nacional e internacionalmente, inúmeros estudos científicos (teóricos e empíricos) demonstram que é preciso trabalhar primeiro com o acesso a uma moradia, integrada com os demais serviços públicos, para a superação da situação de rua. Afinal, como aderir a um programa de trabalho e renda, a um tratamento de saúde, como usufruir de uma alimentação adequada, por exemplo, sem ter um local seguro para morar? Algo que parece óbvio, mas que ainda não recebeu a devida atenção por parte dos poderes instituídos e gestores públicos. 
 
Diante desse panorama urgente, a Associação das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) resolveu abordar em sua campanha anual o seguinte tema: “Um novo presente é possível: a Defensoria Pública pela superação da situação de rua”. 
 
Um novo presente é possível, pois não se pode delegar ao futuro a mudança. Um futuro diferente e melhor, com a superação da situação de rua, só será possível se mudanças forem feitas a partir de agora, em especial: se humanizarmos nossa visão em relação a essas pessoas; se tivermos vontade política e jurídica de mudar, especialmente centralizando o debate da moradia digna associada com os demais serviços essenciais; se resistirmos à racionalidade neoliberal de culpabilização individual e se fortalecermos laços de solidariedade e comunidade. 
 
Defensoras e defensores públicos, no exercício de seu mister por excelência contra majoritário – uma vez que canalizam as vozes e clamores dos grupos vulnerabilizados pelo sistema hegemônico – atuam e devem atuar por transformações sociais futuras a partir da mobilização da esperança (verde) em um novo presente possível. 
 
Clarice Lispector, em seu conto “Mineirinho”, nos mostra que nós somos o outro. Não podemos dormir em nossas camas e falsamente pretendermos nos salvar, enquanto outros morrem sob o manto de alguma (in)justiça lá fora. Não podemos continuar sendo os sonsos essenciais. 
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