“Louca”. É o que muitas pessoas diriam sobre Ângela (nome fictício)*, reduzindo-a a sua doença. Era quase fim de 2023 quando ela foi presa preventivamente na Casa de Prisão Provisória de Aparecida de Goiânia, por suposto furto. Em audiência de instrução realizada em março, foi verificado que Ângela possui problemas de saúde mental, com suspeita de esquizofrenia. Esvaziada de sua humanidade, permaneceu encarcerada mesmo com um laudo médico recente. Por isso, em maio, a Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO), através do Núcleo Especializado em Situação Carcerária e Política Criminal (NESC), requereu a imediata revogação da prisão. Após negativa inicial pelo juízo de primeiro grau, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) concedeu liminarmente a ordem de Habeas Corpus impetrada e restituiu em liberdade.
Em meio ao diagnóstico de esquizofrenia e dependência química, a história de Ângela revela a urgente necessidade de um olhar mais humano às pessoas com adoecimento mental, especialmente as que são colocadas em cárcere. Durante os primeiros meses do ano, a assistida foi mantida presa enquanto aguardava a realização de perícia médica, que não ocorreu pela falta de escolta até à Junta Médica. Ocorre que, um laudo que atestava a sua insanidade mental já havia sido concluído em maio de 2023. “Examinada, Ângela é portadora de uma doença mental”, versa o documento.
Pela sua condição, foi comprovada a dificuldade em entender o caráter ilícito de ações praticadas, além de total incapacidade de responder pelos seus atos. Neste caso, o defensor público coordenador do NESC, Salomão Neto, em pedido liminar, ressaltou que se trata de uma pessoa inimputável, ou seja, isenta de pena, motivo pelo qual requereu a revogação imediata da prisão preventiva. Em seu parecer, Salomão destacou a Resolução 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu a Política Antimanicomial ao Poder Judiciário. “As pessoas com sofrimento mental absolutamente não devem permanecer encarceradas. Isso não condiz com o modelo de atenção psicossocial que o Brasil adotou em sua legislação”, afirmou.
Batalha judicial
O pedido da Defensoria Pública foi indeferido pelo juízo de primeiro grau, desconsiderando que o cárcere não é medida adequada para casos como o de Ângela. Em decisões como esta, a doença mental, ao substituir a pessoa, passa a explicar também o crime, como se trancá-la fosse a “garantia da ordem pública”. Para contestar este estigma, o defensor público, por meio do NESC, protocolou um Habeas Corpus com pedido liminar a favor da assistida em 20 de maio, reforçando as argumentações expostas no pedido inicial.
“A Defensoria Pública entende que não há qualquer motivação que justifique a manutenção da prisão, uma vez que, inexistindo fundamentação válida, a medida passa a ser inconstitucional”, assinalou Salomão. Sua afirmação foi baseada na demonstração de inexistência de elementos que ofereçam risco à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal. O defensor público, portanto, requereu novamente a revogação imediata da prisão ou substituição da mesma por medida cautelar alternativa, prevista no Código de Processo Penal.
Em 21 de maio, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) reconheceu a urgência e gravidade do caso e concedeu liminar para que Ângela deixe a prisão e receba tratamento ambulatorial e psiquiátrico, além de acompanhamento médico pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A decisão, cumprida pelo juízo de origem, reafirmou o direito das pessoas com transtorno mental a receberem tratamento adequado e humano.
Luta Antimanicomial
Poucas horas após expedição do alvará de soltura, Ângela deu passos não só para além dos portões da Casa de Prisão Provisória, mas também rumo ao resgate de sua humanidade. Ao deixar o cárcere, negou simbolicamente o preconceito que durante toda a vida lhe condenou como “louca”, num ato de reafirmação de sua existência enquanto sujeito. Agora, a assistida será acompanhada pelo Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) da DPE-GO, para orientação da família sobre inclusão em espaços de acolhimento Rede de Atenção Psicossocial.
No mês em que se comemora a luta antimanicomial, sua história reverbera esperança. A decisão favorável reflete o esforço empenhado por parte da sociedade na luta pelos direitos das pessoas com sofrimento mental, inclusive no âmbito do sistema de justiça. Historicamente, o dia 18 de maio resgata o início do Movimento da Reforma Psiquiátrica, no final da década de 70, que culminou na Lei nº 10.216/2001, que prevê o fechamento de manicômios e hospícios.
“Precisamos cuidar das pessoas, contribuir com o fim dos estigmas, ter como norte a inclusão comunitária e familiar adequada e, sobretudo, respeitar as singularidades das pessoas com transtorno mental ou qualquer deficiência psicossocial que respondam a processos na justiça criminal”, conclui o defensor público.
*O nome foi alterado para preservar a identidade da assistida.