Cleber Francisco Alves
Defensor Público do Rio de Janeiro
No dia 19 de maio os profissionais jurídicos de todo o mundo festejam seu padroeiro: Santo Ivo da Bretanha. Em alguns países cristãos nesse dia é comemorado – também no calendário civil – o Dia do Advogado(a) e dos demais profissionais jurídicos. Embora o Brasil seja um País de forte tradição católica, em que muitas das profissões liberais comemoram seu “dia” na data de memória litúrgica de seus respectivos patronos (como é o caso dos médicos, que comemoram seu dia em 18 de outubro, dedicado a São Lucas), não é muito arraigado o costume – no âmbito das profissões jurídicas – de se celebrar a data festiva do seu santo patrono. Isto porque a data do calendário civil em que se comemora o Dia dos Advogados em nosso País é em 11 de agosto. Como se sabe, isto se dá por razões históricas: nesse dia foi assinada pelo Imperador Dom Pedro I, em 1827, a Lei que criou os primeiros cursos superiores jurídicos do País, em São Paulo e em Olinda.
Considerando-se que os cursos superiores jurídicos não se destinam apenas à formação de advogados, talvez fosse mais correto celebrar no dia 11 de agosto o dia de todos os profissionais jurídicos. Entretanto, certamente com intuito de afirmação de identidades institucionais próprias, ao longo do Século XX foram sendo estabelecidas no Brasil datas específicas para homenagear as demais carreiras que se dedicam a realizar o Direito e a Justiça. Assim, o Decreto-Lei nº 8292/1945, estabeleceu que o 8 de dezembro se tornaria um feriado forense para celebração do Dia da Justiça, que passou especificamente a ser adotado como data festiva pelos integrantes do Poder Judiciário. Essa comemoração foi ratificada através da Lei Federal nº 1408/1951.
No caso do Ministério Público, o art. 82, da Lei nº 8625/1993, oficializou o 14 de dezembro como Dia Nacional da referida instituição. Essa data se refere ao dia em que foi sancionada a Lei Complementar nº 40/1981, que estabeleceu normas gerais de organização para os Ministérios Públicos estaduais e que é considerada um marco na configuração identitária própria que o Parquet veio a alcançar no Brasil, e que foi confirmada na Constituição Federal. Nessa linha de afirmação da identidade institucional, no ano de 1967, durante o I Congresso Estadual do Ministério Público Fluminense, realizado na cidade de Miguel Pereira, que contou com representação de várias unidades federativas, já havia sido aprovada uma resolução atribuindo a Campos Salles o título de “Patrono do Ministério Público”.
Desde 2002, por força da Lei Federal nº 10.448, foi estabelecido que o 19 de maio deveria ser dedicado à comemoração do Dia do Defensor Público. Tal data foi estabelecida por sugestão das próprias entidades representativas da Defensoria, em razão da forte identificação desses agentes estatais, que prestam assistência jurídica gratuita, com o personagem histórico Ivo de Kermartin, ou, como dito acima, o Santo Ivo da Bretanha. Mas qual é a razão de tal identificação? Quem foi esse santo? E mais. Por que em muitos países Santo Ivo é considerado o patrono de todos os juristas, não apenas dos advogados?
Santo Ivo ainda é pouco conhecido no Brasil. Em algumas Igrejas mais antigas, sobretudo dos tempos coloniais, é até comum encontrar altares laterais dedicados a ele, mas sua devoção não é muito popular. Originário da Bretanha, região situada no noroeste da França, nasceu em 17 de outubro de 1253, na cidade de Minihy-Tréguier. Seus pais pertenciam à baixa nobreza bretã, mas Ivo, cujo nome em bretão é “Erwan” e em francês “Yves”, viveu de modo simples, sem grandes luxos. Desde cedo sua família notou sua extraordinária capacidade intelectual. Por isso, ainda muito jovem foi enviado para Paris, para estudar na Universidade que já naquela época era famosa em razão dos grandes professores que ali ensinavam: Alberto o “Magno”, Tomás de Aquino e o grande mestre franciscano São Boaventura.
Mesmo diante das tentações mundanas que – já então – rondavam a vida de um estudante universitário, Santo Ivo sempre foi reconhecido por seus colegas como modelo de vida cristã: tinha intensa prática de oração, participação frequente nas missas e celebrações, e incansável caridade para com os numerosos mendigos que viviam perambulando pela cidade.
Ivo formou-se em Filosofia e em Teologia na Universidade de Paris e, depois, na cidade de Orléans, doutorou-se em Direito. Retornando à Bretanha, foi nomeado juiz eclesiástico em Rennes, num tempo em que essa função era muito importante, pois a jurisdição dos tribunais da Igreja abrangia muitas das questões da vida cotidiana de grande parte da população, e tinha às vezes até mais prestígio do que a Justiça civil, controlada pelos reis.
Ivo notabilizou-se por ser reconhecido como um juiz honesto e justo. Além disso, naquela época, não havia clara distinção entre os papéis dos profissionais jurídicos, de modo que Santo Ivo também atuava efetivamente como advogado, especialmente em causas em que uma das partes fosse pobre, sem condições de pagar pelos serviços profissionais: queria fazer justiça entre o pobre e o rico! Ele passou então à história conhecido como “advogado dos pobres”.
O despojamento de Santo Ivo quanto aos bens e riquezas materiais, e sua mística compreensão acerca do autêntico sentido da pobreza, encontrou fundamento particularmente na sua adesão à espiritualidade franciscana: consta que ele teria se associado à Ordem Terceira Franciscana. Conforme nos conta o Padre Philippe Roche, seu biógrafo, nos últimos anos de vida, sem abandonar suas atividades de juiz e de advogado, Ivo abriu as portas do solar que herdou de sua família para acolher os pobres, alimentá-los, fazê-los sentar-se à sua mesa, abrigá-los e até mesmo ceder sua própria cama, indo dormir no chão. Quando Ivo morreu, dada sua notória fama de santidade, uma multidão acompanhou o cortejo para conduzir seu corpo à Catedral de Tréguier, onde está sepultado. Seu processo de canonização, mesmo no período medieval, é considerando um dos mais rápidos já realizados: muitos dos que conviveram com ele serviram de testemunha nesse processo.
Exatamente em razão de todas essas características de sua personalidade e de seu modo de vida, em todo o mundo a figura de Santo Ivo é associada, particularmente, aos juristas e advogados que buscam – através de sua profissão – assegurar especial proteção aos mais fracos e vulneráveis, defendendo-os diante dos ricos e poderosos. Assim, desde a segunda metade do Século XX, como parte de um esforço no sentido da construção e demarcação da identidade institucional própria da Defensoria Pública, fora definido – pioneiramente – pela Lei Estadual nº 635/1982, do Estado do Rio de Janeiro, que o dia 19 de Maio seria a data dedicada a homenagear os integrantes dessa nova carreira jurídica. Posteriormente, a Lei Federal nº 10.448/2002 oficializou o 19 de maio como Dia Nacional da Defensoria Pública. Tal data foi escolhida exatamente para lembrar aquele que já era reconhecido como Patrono da Assistência Judiciária e da Defensoria Pública: o jurista Yves Hélory de Kermartin, ou Santo Ivo da Bretanha.
A celebração das datas comemorativas das diversas profissões tem, como se procurou demonstrar, um forte aspecto de caráter histórico-cultural e também de afirmação de identidades. No caso de Santo Ivo, embora como indicado acima – sobretudo para os advogados e juristas católicos – ele continue sendo reconhecido como seu santo padroeiro, sua escolha como “patrono” da Defensoria Pública brasileira tem embasamento que transcende a dimensão apenas religiosa. Ivo de Kermartin é um personagem histórico que se notabilizou especialmente pelo comprometimento e dedicação à defesa das pessoas mais vulneráveis no contexto social em que viveu, tão profundamente marcado por desigualdades e arbitrariedades.
Há registros documentais que estabelecem vínculos entre sua atuação como profissional jurídico a ideias embrionárias – e, de certo modo, revolucionárias para a época – do que veio a ser reconhecido mundialmente nos tempos atuais como assistência judiciária e, mais recentemente, assistência jurídica gratuita. Essa foi, certamente, a razão – de aspecto identitário – que justificou a escolha feita pelos pioneiros juristas que lançaram os alicerces da instituição defensorial, na segunda metade do Século XX, atribuindo a Ivo a condição de patrono da nascente Defensoria Pública brasileira. Há que se ter presente, por oportuno, que no período medieval em que Santo Ivo viveu, não havia uma demarcação precisa entre as carreiras jurídicas, de modo que os que se dedicavam à profissão de jurista desempenhavam, ocasionalmente, tanto a função de advogado quanto a de juiz: esse foi o caso de Ivo, e por isso – como já afirmado acima – em muitos países ele é reconhecido também como patrono de todos os juristas, indistintamente. Mas é inequívoco o fato de que o traço fundamental que marcou a história de Santo Ivo foi sua identificação com a defesa dos mais frágeis e desemparados, especialmente quando se defrontavam com os integrantes das elites do poder político e econômico, o que leva à identificação com o papel que cabe aos defensores públicos.
Seus biógrafos registram também seu pioneirismo na criação de agremiações estudantis de caráter cooperativo, para apoio a estudantes mais pobres que acorriam a Paris para estudar na sua célebre Universidade no Século XIII. Por isso, ele é tido por muitos também como “padroeiro dos estudantes”, circunstância que – curiosamente – traz mais uma correlação com a data comemorativa do dia 11 de agosto no Brasil, também considerado “Dia do Estudante”.
Há personagens na história que alcançam um patamar de consagração e de reconhecimento que os torna referência e inspiração para o cultivo dos valores mais nobres da alma, estimulando as gerações futuras ao aprimoramento moral e intelectual que enaltecem a dignidade humana. No tempo presente, talvez caiba citar – dentre outras – figuras como Madre Tereza de Calcutá ou, no Brasil, a Irmã Dulce da Bahia que, tal como Santo Ivo, são reconhecidas como modelo de virtudes e de amor ao próximo: os três tem em comum o fato de haverem sido “canonizados” pela Igreja Católica, mas o consenso acerca da grandeza desses personagens ultrapassa em muito a esfera dos que professam a mesma fé religiosa. Portanto, assumir Santo Ivo como patrono corresponde a uma escolha que não denota propriamente uma conotação religiosa: trata-se de fazer memória de um personagem histórico, que alcançou projeção mundial, e cujo legado está em total sintonia com o perfil e identidade desejável para aqueles que são vocacionados ao exercício a função defensorial, em particular, e – de modo mais amplo – com os juristas em geral comprometidos na luta pela realização da Justiça, contribuindo para a superação das iniquidades e arbitrariedades que afligem sobretudo os mais pobres e marginalizados tanto no passado quanto no presente
Tendo como referência histórica o patrimônio cultural e humanístico que é comum a todos os juristas, desde os tempos em que as profissões jurídicas ainda estavam amalgamadas, a referência e lembrança de figuras notáveis do passado – como é o caso de Ivo de Kermartin, cuja memória será celebrada em 19 de maio – pode nos inspirar e nos motivar a cultivar sempre mais o senso de justiça e de compaixão pelo próximo, que jamais deveriam estar afastados da prática cotidiana dos profissionais do Direito e da Justiça.