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12/07/2023

O direito fundamental à igualdade material e os critérios de acesso à Justiça

Fonte: Revista Justiça&Cidadania

Rivana Ricarte - presidenta da ANADEP;

Jeniffer Scheffer, diretora jurídica

O direito à igualdade é direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988, constituindo-se em verdadeiro compromisso do Estado Democrático de Direito e, por isso, deve permear todo o sistema jurídico e social do País. Assim, quando se analisa o sistema judicial, é necessário observar que o acesso à Justiça é um requisito básico deste sistema, que visa assegurar a igualdade de direitos para todos.
 
Não basta declarar que todas as pessoas são iguais perante a lei, é necessário garantir que todos tenham um mecanismo para exercer seus direitos, resolver conflitos por meios legais quando necessário e guiar-se por seus direitos.
 
O direito fundamental ao acesso à Justiça deve ser analisado, portanto, com o objetivo de resguardar a igualdade material, garantindo o acesso para aqueles que não possuem condições de suportar seja os custos da ação judicial, seja o custo da assistência jurídica integral e gratuita.
 
Assim, é fundamental compreender as dimensões do acesso à Justiça e o papel da Defensoria Pública como instituição garantidora da preservação desta igualdade material. Para isso, analisa-se, inicialmente, que o acesso à Justiça possui, portanto, duas dimensões: (a) a negativa, não podendo o Estado impor barreiras que impeçam ou dificultam que os cidadãos pobres e vulneráveis tenham acesso aos seus direitos e ao Poder Judiciário; e (b) a positiva, a qual consolida-se como uma obrigação do Estado prover as estruturas e ferramentas necessárias para que a pessoa em situação de vulnerabilidade tenha profissional capacitado para orientá-la e, se necessário, representá-la em juízo para exigir seus direitos.
 
Três conceitos que, embora estejam inter-relacionados, não devem ser confundidos, traduzem o direito fundamental de acesso à Justiça. São eles: (a) a gratuidade de Justiça; (b) a assistência judiciária; e (c) a assistência jurídica.
 
A gratuidade de Justiça deve ser compreendida como a dispensa provisória da antecipação do pagamento das despesas judiciais ou extrajudiciais que venham a ser necessárias para o exercício dos direitos do hipossuficiente. A assistência judiciária consiste no suporte estatal para acessar o Poder Judiciário: garante-se os recursos e os instrumentos necessários para a defesa dos direitos do hipossuficiente em juízo. Por sua vez, a assistência jurídica, como a própria terminologia permite inferir, engloba toda e qualquer atividade relacionada ao Direito – seja ela vinculada à atuação perante o juízo (judicial), seja ela vinculada à atividade extrajudicial.
 
Quanto à assistência jurídica, esta pode ser dividida em privada e pública. Os advogados privados prestam assistência jurídica privada mediante o pagamento de uma taxa ou gratuitamente. E, de acordo com o disposto na Constituição Federal de 1988, a forma brasileira de assistência jurídica pública será prestada exclusivamente pela Defensoria Pública.
 
Ou seja, a Constituição Federal de 1988, ao criar a Defensoria Pública não apenas para auxiliar na área processual/judicial, mas também em assuntos jurídicos que não envolvam o acesso ao Judiciário, criou uma situação para garantir acesso igualitário aos tribunais.
 
Em suma, a Defensoria Pública é a instituição de Estado cujas atribuições vão de encontro à promoção e defesa dos direitos da sociedade. Entre suas funções, uma das mais importantes é prestar atendimento jurídico integral e gratuito aos cidadãos necessitados. E isso vai além da simples “advocacia gratuita”.
 
Com efeito, os defensores públicos atuam também como assistentes jurídicos, prestando assistência não só para facilitar o acesso à justiça, mas também para facilitar na procura de resolução consensual de conflitos, elaboração de contratos e assessoria jurídica, conforme estabelece o art. 134 da Constituição Federal.
 
Assim, o direito básico dos grupos vulneráveis ao acesso aos tribunais permeia os conceitos de gratuidade de Justiça e de assistência jurídica estatal gratuita, e não devem ser confundidos, pois são complementares.
 
O direito à gratuidade da Justiça não pode ser analisado separadamente da assistência judiciária gratuita e integral, assim como não pode ser prestada assistência judiciária gratuita e integral sem o direito à gratuidade da Justiça. Apenas quando os dois estão interligados é que se pode afirmar que o povo brasileiro (que vive em grave situação de desigualdade e vulnerabilidade) tem amplo acesso à Justiça
 
Via de regra, qualquer pessoa que não tenha condições financeiras para arcar com as despesas com advogados e custas judiciais poderá utilizar dos serviços prestados por defensoras e defensores públicos. Isso inclui não apenas cidadãos, mas pessoas jurídicas como associações de bairro e organizações sem fins lucrativos. E isso acontece porque o constituinte originário e os legisladores infraconstitucionais optaram por utilizar o conceito de “insuficiência de recursos”, que pode ser entendido como um termo geral, conceito ou princípio jurídico indeterminado. Independentemente da terminologia ou natureza jurídica, é uma regra aberta.
 
As normas abertas têm um propósito em si. Esta é uma opção política e legislativa que precisa ser avaliada e implementada pelos órgãos destinatários delas.
 
Compete, portanto, à Defensoria Pública instituir quais requisitos devem ser preenchidos para a atuação da Instituição, e essa tem utilizado como parâmetro, em suas diferentes leis orgânicas e resoluções, critérios que colocam no centro da demanda as múltiplas vulnerabilidades, observando as interseccionalidades que atingem a pessoa.
 
É isso que está sendo defendido pela Anadep no julgamento do Tema 1.178 (REsp 1.988.686/RJ 1.988.687/RJ 1.988.697/RJ), que foi afetado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que visa consolidar entendimento a respeito da legalidade de se aferir, por meio de critérios objetivos, a condição de hipossuficiência em pedido de gratuidade de justiça, quando formulado por pessoa natural.
 
Sobre o tema, a Anadep tem defendido que fixar critérios objetivos com fundamento unicamente na questão financeira ou em limites pré-definidos de patrimônio ou renda, quando há tantos fatores envolvidos, inclusive diferenças geográficas e econômicas regionais, pode se constituir em anacronismo.
 
Na verdade, a “insuficiência de recursos” que gera a assistência jurídica integral e gratuita, prestada pela Defensoria Pública, tem amparo na hipossuficiência, mas essa envolve inúmeros outros fatores de vulnerabilidade. A lógica de atuação de defensoras e defensores públicos coloca no centro da questão o vulnerável. São vários, portanto, os fatores de vulnerabilidade a serem considerados, como sexuais, sociais, diferenças em razão da localização territorial, idade, questões epidemiológicas, gênero, pertencimento a certas coletividades, etc.
 
Em outras palavras, a “insuficiência de recursos” que gera a atuação da instituição é devida não só às pessoas economicamente hipossuficientes, mas a todas as pessoas em situações de vulnerabilidade.
 
Assim, entende-se que o melhor critério é ter em conta que a questão da gratuidade deve ser analisada no caso concreto, com base nas múltiplas vulnerabilidades do sujeito, e na avaliação de razoabilidade pela qual todos os rendimentos e despesas pessoais e domésticas do requerente devem ser ponderados para determinar se o saldo remanescente é suficiente para cobrir despesas legais e honorários advocatícios, sem prejuízo da satisfação das necessidades vitais básicas inerentes à dignidade humana.
 
É necessário observar a realidade e todas as suas características de modo a evitar que imposição de critérios objetivos simplistas promovam desigualdades e violações de direito ao acesso à justiça, indo de encontro a todas as promessas firmadas na Constituição Federal de 1988 e aos avanços no acesso à Justiça nas últimas décadas.
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