Rivana Ricarte, presidenta da ANADEP;
Guilherme Vilela, vice-presidente Administrativo
A Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988, há 35 anos, além de ter sido um dos pilares para o restabelecimento e consolidação da democracia após o obscurantismo da ditadura militar, também tem a marca indelével de ter constitucionalizado a Instituição que, algum tempo depois, se tornou o maior órgão público de assistência jurídica integral e gratuita do mundo, a Defensoria Pública do Brasil.
A assistência jurídica estatal integral e gratuita aos que comprovarem a insuficiência de recursos foi alçada à condição de direito fundamental pelo constituinte (art. 5o LXXIV), razão pela qual goza do status de cláusula pétrea, não podendo sequer ser objeto de deliberação por proposta de emenda constitucional que pretenda a sua abolição (art. 60, § 4o, IV, CF/88).
A promulgação da Constituição Federal se tornou marco histórico paradigmático para o estabelecimento do modelo público de assistência jurídica a pessoas hipossuficientes. O constituinte originário previu numa única seção a advocacia e a Defensoria Pública, pois o contexto histórico daquele momento permitia o equívoco de pensar que a atividade defensorial se confundia com o exercício da advocacia – até hoje ainda é muito comum o jargão popular de que “defensor é o advogado dos pobres”. Mas a história pós-constituição cuidou de separar cada qual em seu lugar.
Apesar de resistências pontuais, a vontade governamental materializou a ideia do modelo público de assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes. E nos locais onde não houve espontaneidade para o cumprimento do comando constitucional do modelo público de assistência jurídica, foi fundamental a atuação de universidades, associações de classe, como a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), e órgãos públicos que precisaram demandar o Judiciário para estabelecer prazo para a implementação da Defensoria Pública, citando-se exemplificativamente os estados de Santa Catarina e Paraná, além de Goiás e Amapá.
Hoje é possível afirmar que, ao longo dos 35 anos da Constituição Federal, a Defensoria Pública passou por um processo de evolução significativa no Brasil. Inicialmente, a sua função era mais restrita, mas ao longo dos anos ela foi ganhando reconhecimento e atribuições mais amplas.
Na trilha da evolução histórica da Constituição Cidadã é fundamental a referência à Emenda Constitucional no 45/2004, que assegurou autonomia funcional e administrativa e iniciativa de proposta orçamentária, obedecendo-se os limites estabelecidos pela lei de diretrizes orçamentárias (art. 134, §§ 2o e 3o da CRFB), às defensorias públicas estaduais, o que possibilitou que ela exercesse suas funções de forma independente. E um pouco mais tardiamente essa mesma autonomia foi assegurada à Defensoria Pública do Distrito Federal e da União pelas emendas constitucionais no 69/2012 e 74/2013, respectivamente.
Referida autonomia foi um marco divisor na realidade daquelas instituições que dependiam completamente do Executivo para ampliação de seus quadros de membros e servidores, interiorização das unidades defensoriais e investimentos em estrutura física. Ao deixar de ser um órgão vinculado a alguma secretaria do Executivo, a Defensoria Pública pode enfim se desenvolver e se robustecer em estrutura de pessoal e equipamentos para fazer frente à imensa demanda que precisa de atendimento. Isso fortaleceu a Instituição e permitiu que ela atuasse de maneira mais eficiente na defesa dos direitos dos cidadãos.
Na continuidade da análise do crescimento institucional consagrado na Constituição de 1988, o poder constituinte derivado aprovou, em 2014, a conhecida “PEC das comarcas”, uma norma de conteúdo programático que estabeleceu o prazo de oito anos para que União, estados e Distrito Federal contassem com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais.
A Emenda Constitucional no 80/2014 reformulou o perfil constitucional de Defensoria Pública, passando a Instituição a ser capitulada topograficamente no art. 134 como “função essencial à Justiça”, “instituição permanente” e “expressão e instrumento do regime democrático”. A referida emenda ainda redirecionou os objetivos cardeais da Instituição, impondo à Defensoria Pública a perseguição da orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, às pessoas em situações de vulnerabilidades. É fundamental reconhecer que essa mudança constitucional imprimiu alteração nas legislações infraconstitucionais posteriores, e a jurisprudência do STJ e do STF foram, cada vez mais, abrindo o caminho para a consolidação de uma assistência jurídica, através da Defensoria Pública, prestada não apenas aos vulneráveis econômicos, mas também aos vulneráveis histórico-culturais e identitários.
Também foi a Emenda Constitucional no 80/14 que conferiu seção própria à Defensoria Pública (seção IV), separando-a da advocacia (seção III), pois não se justificava essa indevida confusão entre esses tão distintos atores que exercem funções essenciais à Justiça, cada qual à sua forma. Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 4.636, reconhecendo a inconstitucionalidade de qualquer interpretação que resulte no condicionamento da capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública à inscrição dos Defensores Públicos na OAB, o Ministro Gilmar Mendes assim se pronunciou sobre algumas das distinções desses atores:
A diferença entre a atuação de um advogado (particular) e a de um defensor público é clamorosa, perceptível inclusive antes do advento da EC no 80/2014. O primeiro, em ministério privado, tem por incumbência primordial a defesa dos interesses pessoais do cliente. O segundo, detentor de cargo público, tem por escopo principal assegurar garantia do amplo acesso à Justiça, não sendo legitimado por qualquer interesse privado. Tais características não afastam, obviamente, a prestação de serviço público e exercício de função social pelo advogado, tampouco dispensa o defensor do interesse pessoal do assistido. O ponto nevrálgico é a definição das finalidades transcendentes.
O defensor público tem assistido, e não cliente. A ele é vinculado pelas normas de Direito Público, e não por contrato. Sendo assim, a função dos membros da Defensoria Pública é, evidentemente, marcada pela impessoalidade, porquanto o assistido não escolhe seu defensor, tampouco o remunera diretamente. Ao contrário do cliente, que gratifica o trabalho feito com honorários, tendo poder de escolha sobre o profissional de sua preferência, trazendo à função do advogado feição personalíssima.”
Ao longo do tempo, algumas unidades da Federação se empenharam para dar cumprimento à norma programática prevista na Emenda no 80, ampliando a atuação da Defensoria Pública a todas as comarcas e subseções judiciárias. E, muito embora, isso não tenha ocorrido de maneira homogênea, vivencia-se, a cada ano, a expansão dos serviços da Defensoria Pública em todo o País. Para exemplificar, em 2022, a Defensoria Pública atingiu a marca histórica de 21.881.913 atendimentos prestados à população, representando um aumento de 33,1% em relação ao quantitativo apurado em 2021 e um crescimento de 516,9% em relação ao volume registrado em 2003.
Como se observa, a evolução histórica defensorial no Brasil nesses 35 anos de constitucionalização, que serão completados no próximo mês de outubro, partiu de uma assistência jurídica, no passado, ainda tímida, e trouxe crescimento exponencial da Instituição, sendo uma ferramenta de transformação social que materializa direitos que antes eram privilégios dos poucos que tinham condições de pagar por um advogado, mas que agora se tornam mais acessíveis a cada brasileiro que vive em situação de risco social, nos mais distantes rincões desse País com dimensões continentais.
A reflexão que fica no bojo dos 35 anos da Constituição Federal é que para fortalecer a democracia brasileira é preciso vencer as desigualdades que se acumulam. O Estado Democrático de Direito no Brasil não pode ser alçado de realidade para o status de uma ilusão, e dentro do aspecto de realidade promissora deste Estado de Direitos, encontra-se a Defensoria Pública. É uma Instituição que deu certo e, como já provou, recebendo o investimento orçamentário necessário, poderá fazer muito mais e se consolidar como instrumento de promoção da igualdade social. Isso significa que a Instituição poderá ter um papel ainda mais ativo na busca por políticas públicas que visam reduzir desigualdades e garantir direitos fundamentais, como saúde, educação, moradia e trabalho digno.
Com os avanços tecnológicos, é possível que a Defensoria Pública utilize cada vez mais ferramentas digitais para ampliar o acesso à Justiça, como serviços on-line, plataformas de orientação jurídica e até mesmo a utilização de inteligência artificial para auxiliar na resolução de demandas. Isso tudo sem deixar de lado o crescimento no território, garantindo o acesso à Justiça e atendimento humanizado e mais próximo a todos os que necessitam, inclusive em regiões mais remotas.
O olhar para o futuro do País e da Defensoria Pública pode ser ainda mais promissor e cheio de possibilidades, pois, como afirmou o Ministro Luiz Fux, “(…) por meio da Defensoria Pública reafirma-se a centralidade da pessoa humana na ordem jurídico-constitucional contemporânea, deixando-se claro que todo ser humano é digno de obter o amparo do ordenamento jurídico brasileiro.”
Notas____________________________________
1 Importante ressaltar que antes da Constituição Federal de 1988 já haviam sido estabelecidos órgãos de assistência judiciária gratuita (Defensorias Públicas) nos estados do Rio de Janeiro (1954), Minas Gerais (1976), Mato Grosso do Sul (1982), Piauí (1982), Pará (1983), Bahia (1985), Paraíba (1985), Distrito Federal (1987).
2 STF, Ação Declaratória de Inconstitucionalidade no 3.892 e ADI no 4270.
3 STF, Agravo de Instrumento no 598.212.
4 ADO 2, Relator Ministro Luiz Fux, J. 15-4-2020, P, DJE de 30-4-2020.