O debate sobre políticas antirracistas na educação não é recente. Em 1978, o movimento negro já recomendava ao Estado brasileiro a adoção de medidas ativas para promover o ensino, a memória, a língua, a cultura e o censo da população negra no País. Por sua vez, com o processo de reabertura democrática, nos anos 1980, emergiu uma agenda de reinvindicações de medidas de compensação de negro/as brasileiros/as pelos mais de três séculos de escravização e decênios de discriminação racial após a abolição, dentre as quais, a promoção de uma perspectiva educacional que destacasse positivamente a contribuição cultural e estética da população negra na construção da história do Brasil.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte, que culminou com a Constituição Federal de 1988, houve forte articulação do movimento social para inclusão no texto constitucional da proteção do patrimônio cultural das populações negras e indígenas, o que resultou no conteúdo do art. 215.
Portanto, a reivindicação de uma educação antirracista, capaz de romper com o modelo eurocêntrico, já estava presente nos debates da constituinte e foi objeto de discussão legislativa já em 1988, com a propositura do Projeto de Lei nº 678/1988, da autoria do Senador Paulo Paim (PT-RS), o qual tramitou até 1996, quando foi arquivado.
É no início dos anos 2000, no entanto, que as produções intelectuais de autores e autoras negras passam a ser mais visibilizadas na abordagem do apagamento da história da população negra. Sueli Carneiro, por exemplo, aborda o conceito de epistemicídio das produções culturais, indicando que ele se realiza através de múltiplas ações que se articulam e se retroalimentam através da desconsideração da produção cultural e científica da população negra. Acrescentando também a relação direta do epistemicídio com a exclusão educacional, bem como a construção de estereótipos de rebaixamento da capacidade intelectual da população negra.
Pode-se dizer que a sofisticação da morte do conhecimento se dá através da negação do passado, apagando o que foi produzido em termos de conhecimento. A negação do presente, anulando as possibilidades de ascensão social e econômica, pela negação do acesso à educação. A negação do futuro, pelo extermínio dos corpos negros e pela estratégia de submeter a uma subalternização cultural imposta pelo padrão eurocêntrico de conhecimento que determina como negativo e exótico tudo que se refere a cultura e o conhecimento da população negra.
É nesse contexto que são desenvolvidas as estratégias pela militância da sociedade civil organizada, composta por entidades lideradas por mulheres negras como Gelédes, Criola e Maria Mulher para politizar a situação educacional do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, patrocinada pela Organização das Nações Unidas, ocorrida 20 anos atrás, em setembro de 2001, na cidade de Durban, na África do Sul.
Ressalte-se que a Conferência era estratégica para a delegação brasileira, uma vez que existia a compreensão de que era preciso promover a internacionalização do debate sobre os problemas gerados pelo racismo na contemporaneidade, especialmente porque no debate público internacional o Brasil ainda se apresentava como uma democracia racial. Tal retórica, entretanto, não encontrava contraprestação prática quando eram analisados os direitos básicos de cidadania da população negra como, por exemplo, o direito à educação.
A Conferência foi precedida por quase três anos de articulação que incluíram seminários, grupos de trabalho, levantamento de dados e de diagnósticos sobre as desigualdades raciais no País, bem como a mobilização de militantes dedicados à construção de políticas públicas com recorte racial.
Assim, o Brasil foi o País que enviou a maior delegação, com mais de 200 membros ligados, sobretudo, ao movimento negro, constituindo, assim, a mais numerosa comitiva da Conferência. Tal feito acabou por prestigiar o País na escolha da relatoria geral do Plano de Ação de Durban.
O parágrafo 10 do Plano de Ação insta os Estados a “garantirem aos povos africanos e afrodescendentes, em particular às mulheres e crianças, o acesso à educação e às novas tecnologias, oferecendo-lhes recursos suficientes nos estabelecimentos educacionais e nos programas de desenvolvimento tecnológico e de aprendizagem à distância nas comunidades locais, e os insta também a que façam o necessário para que os programas de estudos em todos os níveis incluam o ensino cabal e exato da história e da contribuição dos povos africanos”.
Observa-se, assim, que a Conferência de Durban foi determinante para responsabilizar o Estado brasileiro na construção de políticas públicas com enfoque numa perspectiva educacional antirracista, sendo fruto não de um reconhecimento espontânea do racismo em ato benevolente do Estado, mas a partir do tensionamento e da articulação política dos movimentos sociais que procuraram denunciar o debate, a fim inclusive de constranger o discurso da harmonia racial brasileira, amplamente sustentado por autoridades públicas.
É nesse contexto, pós-Durban, que se impulsionou a pressão social pela aprovação do Projeto de Lei nº 259, em tramitação na Câmara dos Deputados desde 1999, e que resultou na Lei nº 10.639/2003.
A Lei nº 10.639 alterou a Lei das Diretrizes e Bases da Educação (LDB/ Lei nº 9.394/1996) para estabelecer a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares.
Eis os artigos da LDB inseridos a partir da Lei nº 10.639/2003:
“Art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1ª – O Conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2ª – Os Conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Dessa forma, a Lei nº 10.639/2003 é uma ferramenta importantíssima rumo à descolonização do currículo escolar, na medida em que estabelece como horizonte a criação de uma sociedade multicultural, resgatando e valorizando de forma equitativa culturas, saberes, cosmovisões e conhecimentos historicamente invisibilizados e marginalizados pelo ensino oficial eurocentrado.
Nessa perspectiva, a Lei impele a abordagem crítica do material didático, com destaque para o conhecimento de personagens negros/as que construíram o Brasil e que resistiram bravamente ao período colonial. Além disso, fomenta a eliminação de obras que apresentem a população negra de forma estereotipada, vinculada a adjetivações socialmente negativadas, ou que relacionem o continente africano a uma visão distorcida, romantizada e estigmatizante.
Ademais, o referido diploma antirracista auxilia a promover a difusão da temática racial, que muitas vezes ainda está impregnada de melindres e tabus decorrentes da narrativa que nega a existência do racismo no Brasil. Assim, a obrigatoriedade instituída pela Lei estimula a visibilidade do enfrentamento de situações de discriminação racial nas escolas, uma demanda que é inadiável para o devido acolhimento, suporte e proteção dos educandos/as negros/as e brancos/as, especialmente no aspecto psicológico e na autoestima, promovendo a mudança de comportamento através da promoção de atividades reparadoras, capazes de modificar valores, crenças e comportamentos negativos que são historicamente direcionados à população negra.
Assim, compreende-se a Lei enquanto conquista social, popular, histórica e fruto da organização dos movimentos negros, sendo um dos maiores legados construídos a partir da articulação internacional concretizada pela Conferência de Durban.
De fato, o investimento na educação é uma estratégia estrutural para combater o aprendizado do racismo, que se inicia na infância e se dissemina na vida adulta.
Não resta dúvida de que há muito aprimoramentos a serem feitos na educação. Entretanto, há um Brasil antes e depois da Lei nº 10.639/2003.