Abril é o mês do ano em que a causa indígena é rememorada em função da data oficial: 19 de abril, “Dia do Índio”. Nesse dia, toda a sorte de apetrechos vinculados ao estereótipo fantasioso do/a indígena vem à tona nas representações públicas: vestimentas, adereços e supostos rituais. A propósito desse fenômeno, parece interessante constatar que essa percepção, residente no imaginário popular, se reflete – ainda que de encontro a todo um arcabouço legislativo e jurídico-doutrinário – nos/as operadores/as do Direito.
A constituição do sujeito indígena se dá, obviamente, de forma alheia ao Direito. Porém, o Direito se ocupa – e bastante, nesse caso – de conceituar, em função de uma necessidade de definir a aplicação ou não de normas específicas relativas a esse grupo.
Analisando os países da América Latina, é possível observar que os Estados em geral não optam por uma definição, não contemplando taxativamente, em nível constitucional ou em nível de legislação ordinária, qualquer definição de povo, população ou comunidade indígena, sem deixar, contudo, de estabelecer direitos relativos a esses povos. Por sua vez, as organizações indígenas argumentam que as definições dos instrumentos internacionais, assim como as definições das legislações nacionais, quando existentes, não são satisfatórias, ora pela ambiguidade, ora pela contradição, mas quase sempre por contemplarem visões paternalistas, que excluem até mesmo povos historicamente reconhecidos.
Dos instrumentos internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, trazemos à lume nessa breve incursão ao tema a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), como principais fontes de definições, conceitos e direitos reconhecidos aos povos indígenas, ao lado da própria Constituição Federal de 1988.
A Convenção 169 da OIT, instrumento de grande repercussão internacional quanto às questões indígenas e de comunidades tradicionais, não define quem são os povos indígenas. A Convenção apenas aporta critérios para identificação desses sujeitos que são, portanto, critérios de identificação, e não de definição. De fato, a Convenção adota critérios objetivos, observáveis externamente, e também critérios subjetivos, observáveis internamente (autoidentificação).
Note-se que ao adotar o critério subjetivo, a Convenção 169 da OIT deixa clara a importância da própria percepção dos povos indígenas sobre a sua identidade. Assim, se aplicam os direitos reconhecidos na convenção aos coletivos que se autoidentificam de acordo com os critérios objetivos, isto é, se reconhecem como descendentes “de populações que habitavam o País ou uma região geográfica pertencente ao País na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais” e que se reconheçam como coletivo que conserva “todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas” (texto da Convenção). Desimporta para a aplicação da Convenção a denominação, o status jurídico, ou qualquer outra condição imposta pelo Estado.
Já a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas não opta por uma definição, justamente por incorporar o posicionamento de que é necessário delegar aos próprios povos sua autoidentificação, limitando-se a elencar e reforçar direitos especiais dos quais os povos indígenas são titulares.
Ao lado da normativa internacional incorporada, a atual Constituição Federal, de 1988 também trata de direitos indígenas, na medida em que está situada no que podemos denominar de ciclo dos constitucionalismos pluralistas, embora ainda na fase primária desse ciclo, Contudo, a Constituição Federal é anterior à aprovação da Convenção 169 da OIT. No que pese essas duas considerações, o seu conteúdo de reconhecimento de alguns aspectos de direitos indígenas está claramente vinculado às discussões indigenistas que antecedem a aprovação da Convenção 169.
A Constituição Federal dedica um capítulo próprio ao tema, denominado “Dos Índios” (capítulo VIII do título VIII – da Ordem Social), e está composto por dois artigos: 231 e 232. O art. 231 consigna o direito indígena à terra tradicionalmente ocupada e ainda à sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. Já o art. 232 confere capacidade postulatória aos povos indígenas em juízo. Portanto, mesmo que a partir de uma análise superficial, é possível perceber que ambos os artigos refletem a clara pretensão de desvincular-se o texto do paradigma integracionista, reconhecendo-se o direito à existência e organização social diferenciada aos indígenas.
De fato, a própria expressão “índio” substitui a expressão “silvícola” até então padronizada na produção legislativa nacional. Porém, nesse mesmo diapasão, note-se que a Constituição Federal não adota o termo “povos” para referir-se aos “índios”, mas sim, utiliza as expressões “comunidades” (§ 3º do art. 231) ou “grupos” (§ 5º do art. 231), ou ainda “populações” (inciso XIV do artigo 22). Nesse aspecto, portanto, podemos observar que ainda está aquém do paradigma de reconhecimento da Convenção 169 da OIT.
Por outro lado, é importante referir que ainda vigora no ordenamento nacional o “Estatuto do Índio” (Lei nº 6.001/1973), o qual dispõe sobre “a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (art. 1º da Lei). Essa lei contém vários dispositivos os quais, no nosso entendimento, não foram recepcionados pela Constituição Federal, além, é claro, do próprio artigo citado. Não há referência à definição de indígena nesse texto.
Nesse norte e diante dos textos legislativos sobre o tema conclui-se que o padrão adotado para identificação de quem é indígena no Brasil passa basicamente pelos critérios mencionados na Convenção 169 da OIT: autoidentificação e heteroidentificação. De qualquer forma, exclui-se uma pré-definição e até mesmo uma incumbência do Estado em dizer quem é indígena, colocando esse poder nas mãos dos sujeitos do direito.
Muito embora, portanto, um olhar para norma nos confirme que a definição do sujeito indígena incumba aos próprios povos indígenas, é constante a batalha jurídica para o reconhecimento dos direitos vinculados a esse reconhecimento, quando então surgem os argumentos lastreados no senso comum, como referimos de início. Isso porque considerar-se um sujeito indígena nos termos da lei significa o rompimento com a tradição de “tutela” indígena e, o mais importante, o reconhecimento de direitos especiais. Note-se que a declaração desses direitos também ocorre em um marco de admissão de um status aos povos indígenas, o que permite sejam abordados direitos que conferem verdadeira possibilidade de decisão autônoma por esses povos.
Esse marco de direitos constitui um bloco bem destacado, lastreado em quatro pilares: autodeterminação, participação, consulta e consentimento. Por sua vez, esses pilares encontram seu marco legislativo principal na Convenção 169 e na Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas.
Com um olhar mais estrutural, é possível afirmar que tais direitos obrigam os Estados, basicamente, a não tomar decisões que possam afetar os povos indígenas sem que implementem processos de diálogo, de participação e de consulta prévia. Os Estados estão obrigados, em outras palavras, a respeitar a visão e as decisões dos povos indígenas sobre seu próprio desenvolvimento. Trata-se do direito à existência diferenciada, do qual deriva o dever do Estado criar espaços para que os povos possam participar das políticas de desenvolvimento que lhes possam afetar e, ainda, de consulta antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas concretas.
Embora a clareza do ordenamento, sua aplicação ainda resta mitigada pelos/as operadores/as do Direto, o que torna, portanto, a luta indígena constante e indispensável no Brasil. Aos indígenas impende continuar a defesa de sua sobrevivência cultural e a reivindicação de seus respectivos direitos, resistindo a um processo impiedoso e constantemente renovado de colonização e imposição de um modelo alheio de desenvolvimento. Mas a nós, brancos/as operadores/as do Direito, incumbe dialogar com a luta alheia, observando, no mínimo, as regras que o nosso próprio sistema cultural – e legal – nos impõe.