Em setembro de 2019, após ter o fornecimento de água de sua casa cortado pela Casan, sem aviso prévio, e surpreendido com a notificação de uma dívida gigantesca de débitos pretéritos, dos quais não tinha conhecimento, o aposentado Manoel Nicanor Sabino, de 68 anos, foi aconselhado por um funcionário do centro comunitário do bairro onde mora a procurar ajuda na Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina.
Seu Manoel é um dos moradores mais antigos do Monte Cristo, no Continente, um dos mais pobres de Florianópolis. Há 50 anos, ele construiu uma pequena casa de madeira na Servidão Três Rosas, 161, de não mais de 50 metros quadrados, muito tempo antes do local ser preenchido pelas construções padronizadas de um projeto habitacional. Para sustentar a mulher, o irmão deficiente e os três filhos, trabalhou muitos anos vendendo picolés no Centro da cidade, que comprava de uma sorveteria que existia no bairro Abraão, ou frutas e verduras que buscava no Ceasa.
Os anos se passaram, a família foi aumentando, os filhos foram lhe dando netos, o pequeno lote foi sendo dividido em outros casebres, estes já de alvenaria, e a própria casa foi também repartida ao meio para que um filho e o irmão mais velho pudessem ali residir. Já aposentado, recebendo pouco mais de R$ 1 mil mensais do BPC – Benefício de Prestação Continuada, quando pensava apenas em ajudar a criar os netos, sete crianças, sua vida foi transtornada pelo corte da água e pela notícia da existência da dívida de quase R$ 180 mil.
Após atuação da 13ª Defensoria Pública da Capital, por meio do defensor público Marcel Mangili Laurindo, o fornecimento de água da residência foi restabelecido e, em março deste ano, o juiz Giuliano Ziembowicz, da 2ª Vara Cível da Comarca da Capital, julgou improcedente o pedido reconvencional formulado pela Casan.
De acordo com o defensor público, em sua apelação, a Casan pretendia que o aposentado provasse, por exemplo, não ter consumido R$ 4.180,02 de água em maio de 2019 e não ter recebido qualquer fatura. “A dar de ombros para o Código de Defesa do Consumidor, a Recorrente almeja, na realidade, uma inversão do ônus probatório ao contrário – algo que afronta tanto a lógica quanto a lei. Há mais. Para a Recorrente, competiria ao Recorrido (!) identificar eventuais vazamentos ocultos na rede da fornecedora. De quebra, a empresa pespega no consumidor a pecha de inerte – ainda que ela mesma, a responsável pelo serviço, nada tenha feito para solucionar o problema”, escreveu Marcel Mangili Laurindo.
Em sua decisão, o juiz da 2ª Vara Cível diz não parecer provável que uma família consiga consumir uma média mensal de aproximadamente R$ 2.400,00 de água, sem haver qualquer tipo de erro na medição. Segundo o magistrado, a empresa apresentou uma planilha na qual constam 77 faturas em aberto desde 2013. “Em contrapartida, no ‘comunicado de corte’ verificamos a inadimplência de apenas 09 (nove) faturas, sendo estas em meses aleatórios nos anos de 2013, 2014 e 2019. Portanto, resta demonstrado a falta de conhecimento do autor em relação àqueles números estratosféricos da suposta dívida. Ademais, embora a manutenção da rede interna compete ao próprio usuário, a reconvinte não logrou comprovar vistorias no local com o intuito de verificar a ocorrência de vazamento, tampouco qualquer inadequação do hidrômetro. Por tais razões, demonstrou-se displicente e alheia ao consumo excessivo e improvável da unidade consumidora, desrespeitando um dos princípios previstos na Lei de Diretrizes Nacionais para o saneamento básico”, citou o juiz Giuliano Ziembowicz.
De fato, após a normalização do abastecimento de água, as faturas seguintes recebidas por Manoel Nicanor Sabino passaram a registrar a taxa mínima de consumo, que atualmente é de R$ 58,98, sem que tenha havido qualquer reparo na rede da Casan ou sido identificado qualquer vazamento nas imediações da residência. “A Casan nunca veio fazer conserto aqui. Não existe vazamento. Agora eu consumo o mesmo que antes e estou pagando a taxa mínima. Eu não me nego a pagar, mas tem que ser justo. Queriam que eu pagasse uma fortuna, um assalto isso. A única coisa que eu tenho é isso aqui (mostra a casa). Não tenho carro, não tenho bicicleta. Só quero viver em paz e ajudar os meus netos”, disse seu Manoel.