Algumas frases mascaram como ‘natural’ o que tem nome: violência psicológica – um crime que consta no artigo 7º da Lei Maria da Penha. Que mulher nunca ouviu “você está imaginando coisas” ou “você está ficando maluca”, quando tudo o que estava acontecendo era bem real? Existe um nome para este tipo de abuso psicológico: gaslighting. A pesquisa anual realizada pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Estado do Ceará (Nudem) revela, ao traçar o perfil das mulheres vítimas de violência que procuram ajuda, que 97,27% delas são vítimas de violência psicológica e permaneceram sem romper este ciclo por um período entre 5 a 10 anos.
Em situação de violência, conheça os direitos da mulherA defensora pública e supervisora do Nudem, Jeritza Braga, explica que a dificuldade em perceber a existência da violência psicológica se dá por não ser algo visível, o que faz com que a mulher não compreenda que a forma como ela é tratada também gera comportamentos como depressão, baixa autoestima e sentimentos de inferioridade em relação ao seu parceiro. “Considero a violência psicológica como uma das mais graves, pois ela é silenciosa, não deixa marcas físicas, mas deixa marcas impressas na alma. Os dados coletados são uma soma dos atendimentos dos últimos quatro anos e evidenciam o quanto esse tipo de violência é perigosa pelos danos causados e pelo tempo que perdura. O fato é que a mulher que é ferida, ao longo de um relacionamento, tem sua autoestima prejudicada e não consegue perceber essas nuances. Quando o homem a intimida, ridiculariza e limita seus direitos, ela não percebe de forma rápida que está em um relacionamento abusivo e tem dificuldade de se desvencilhar, porque tende a minimizar, até por uma questão cultural mesmo”, explica.
Existe um termo para o tipo de violência psicológica que diminui a mulher, até a condição de que ela perde o discernimento do que está realmente vivendo: gaslighting. O termo (vide quadro) indica um ‘apagar e acender de luzes’, ou seja, uma consciência relativa da situação vivida, acrescida da manipulação emocional. Nele, o abusador distorce, mente e induz a vítima a achar que enlouqueceu e está errada. Todas estas expressões expõem cenários que indicam definir as mulheres como loucas, irracionais, exageradamente sensíveis e confusas.
C.S., 27 anos, auxiliar, vivenciou na rotina de seu relacionamento diversos episódios de abuso. E, mesmo tendo presenciado um cenário de constantes abusos por parte do pai com sua mãe, em um determinado momento se viu na mesma situação. “Eu estava presa em uma rotina de violência, humilhação e desconsideração, a mesma que minha mãe viveu. A dependência emocional me fazia aceitar tudo aquilo, tinha consciência que não era bom, mas continuava naquela relação. Sempre que eu argumentava sobre as atitudes dele, a resposta era que eu estava louca, que estava criando coisas, que não tinha nada e acabava distorcendo tudo o que eu dizia. Até que um dia consegui acordar e decidi dizer basta”, desabafa.
“Minha mãe me apoiou muito, me fazendo lembrar tudo o que viveu e que não poderia aceitar que isso se repetisse na minha vida, ainda mais meus filhos presenciando tudo isso, como foi comigo e meus irmãos. Hoje estou me refazendo, cuidando das crianças, trabalhando, tendo minha vida social, me valorizando, me enxergando como uma grande mulher”, ressalta C.S.
A coordenadora do setor psicossocial da Defensoria Pública, Andreya Arruda, explica que devido os atos violentos virem mascarados pelo ciúmes, controle, humilhações, ironias e ofensas a vítima, por vezes, desconsidera os sinais. “Para a mulher se perceber imersa em uma situação de violência é preciso vencer muitas barreiras internas que a façam compreender a sua identidade, seu espaço de fala e que não são obrigadas a aceitarem atitudes que venham a ferir sua dignidade, sua autoestima ou seu desenvolvimento e que isso, na verdade, é abusivo. Nossos encaminhamentos sempre envolvem acompanhamentos psicológicos e qualificação profissional justamente para possibilitar às vítimas um novo olhar, uma forma de resgatar essas mulheres e conscientizá-las que violência não é somente a física”.
Andreya explica que o número de atendimentos de vítimas de agressões psicológicas é muito expressivo e que “infelizmente, na maioria das vezes, quando elas chegam para buscar ajuda, já vivenciaram anos e anos de agressões e trazem consigo muitas repercussões psíquicas”. Por isso a conscientização é indispensável para alcançar essas mulheres que vivem situações de abuso e agressão. “Quando se tem informação é mais fácil estar atenta aos sinais seja para romper o ciclo, assim que identificarem a violência e antes de se tornarem uma vítima de violência física”, destaca.
A história de I.J.S 43 anos, costureira, somou 22 anos de silêncio, onde sentir e falar de seus sentimentos não era permitido, sua opinião não importava sendo sempre interrompida e desconsiderada. “No começo nossa rotina era normal. Tive a primeira filha, três anos depois o segundo. A partir de então tudo mudou. As agressões começaram verbais, me agredia com diversos nomes, humilhação, me isolava, eu não tinha roupa, sandália, não podia falar. E quando quis responder começaram as agressões físicas”, contextualiza. “Guardei essa dor, calei toda a violência que vivia, sem poder falar nada ali. Me sentia refém, pois não podia voltar para casa dos meus pais, não tinha apoio”, relembra com as mãos trêmulas e a voz embargada.
“Hoje, olho para minha vida e me pergunto o que eu vivi? Por que não dei um basta na primeira vez que ele gritou comigo? Às vezes temos medo de encarar a vida, de criar filhos sozinhas. Não podemos ter medo. As dificuldades existirão, contudo, com coragem, determinação e vontade conseguimos vencer. Temos que dizer: sou mulher, sou capaz. Antes nem me olhava no espelho, hoje me valorizo, me olho, me acho linda! Quando calei toda àquela realidade fui covarde comigo mesma. Por isso, mulheres, não se calem!”, aconselha I.J.S.
A defensora indica que mulheres que estão nesta situação, muitas vezes não percebem o jogo do abusador e isso faz ela perder a confiança em si mesma e acreditar que é a culpada por desconfiar dele ou por não perceber a pessoa que ele é. “A violência psicológica se caracteriza por um conjunto de humilhação, desvalorização e opressão que pode ocorrer nas casas e até no ambiente de trabalho. É importante que as mulheres conheçam como esse tipo de agressão acontece para não pensar que é só uma fase, deixar para lá, não tomar atitudes e se tornarem adoecidas psicologicamente. A Defensoria está sempre presente em campanhas, palestras, trazendo a tona estes temas que possibilitem a educação em direitos, pois é preciso levar informação”, pontua.
Origem do termo - Gaslighting define as agressões a partir de atitudes de abusos psicológicos onde informações são distorcidas, omitidas para favorecer o abusador ou inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. O termo gaslighting tem origem no filme “Gas Light” (À Meia Luz), de 1944. Na trama, o marido tenta convencer a mulher de que ela é louca, manipulando pequenos elementos de seu ambiente e insistindo que ela está errada ou que se lembra de coisas de maneira incorreta. O nome faz referência às lâmpadas que alimentadas a gás, e em certo momento piscam. Ela nota, mas o marido a faz acreditar que está imaginando, fazendo com que a mulher duvide da própria sanidade.
Serviço
Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher – Nudem Fortaleza
Rua Tabuleiro do Norte, S/N, Couto Fernandes (Casa da Mulher Brasileira).
(85) 3108-2986
Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher – Nudem Cariri
Travessa Iguatu, 304, CEP 63122045, Santa Luzia, Crato Ceará.