Há quatro anos, a Defensoria Pública do Estado do Ceará traça o perfil de mulheres vítimas de violência doméstica que buscam assistência no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), em Fortaleza e na Região do Cariri. O objetivo é entender como a violência se manifesta, conhecer o perfil da assistida e, a partir disso, pensar em políticas públicas com os demais atores da rede de proteção a essas mulheres.
Neste ano, os dados levantados pelo Nudem Fortaleza até novembro de 2019 mostram que o perfil da vítima se assemelha ao dos anos anteriores. São as mulheres com idade entre 36 a 45 anos (35%), pardas (63%), que estudaram até o Ensino Médio (37%), que sofrem todas as formas de violência, seja ela psicológica, física, sexual, patrimonial e moral, e só passaram a denunciar depois de mais de dez anos vivendo em um relacionamento abusivo.
O levantamento foi feito por amostragem com 573 mulheres que receberam assistência jurídica, psicológica e social da Defensoria. Mesmo inseridas no contexto familiar de violência doméstica, 273 das mulheres entrevistadas revelaram que não pretendem representar criminalmente o agressor, ou seja, 48%.
“Esse dado é preocupante. Elas sentem medo, porque os agressores ameaçam com relação à pensão e à guarda dos filhos. Então, elas chegam ao Nudem com o objetivo da separação, porque querem se livrar de uma vez por todas daquela situação, e realmente, não pensam em continuar com a denúncia. Mas é importante lembrar que a abertura da ação penal contra agressores se dá apenas partir de queixa feita pelo Ministério Público, sem obrigação de que a mulher tenha de tomar a iniciativa de denunciar o crime”, esclarece a defensora pública Jeritza Braga, supervisora do Nudem.
São os ex-companheiros e os cônjuges, com 47% e 36%, respectivamente, os responsáveis pela agressão e, em 42% dos casos, eles já vivenciaram situação de violência na infância. A estatística sobre o perfil do agressor se mantém nas pesquisas anteriores, em 2018, 44,5% e em 2017, 46,84% eram ex-companheiros. Além disso, em 60% dos casos, a violência acontece em ambos os espaços (público e doméstico) e os principais fatores que potencializam são: o ciúmes, uso de álcool e drogas, traição e a separação.
De acordo com a defensora pública “conhecer o perfil da assistida é uma forma de determinar os encaminhamentos que serão direcionados em cada caso e isso nos permite aperfeiçoar o serviço da Defensoria Pública. Já sabemos quem realmente são essas mulheres, elas têm rostos, nomes, endereços, filhos e, o pior, têm medo. E cada vez que essa mulher conta uma história triste, ela revive aquele momento de dor. Então, elas precisam de um equipamento forte, capaz de dar todo o suporte necessário para que ela consiga sair desse ciclo de violência e aqui temos uma escuta qualificada, individual e com respeito a sua intimidade e privacidade”, explica a defensora.
Em quatro anos seguidos do levantamento, realizado de 2016 a 2019 pelo setor psicossocial da Defensoria Pública, a violência psicológica segue sendo a mais presente. De acordo com a psicóloga da Defensoria, que acompanha os casos, este talvez seja um dos fatores pelo qual as mulheres vivem tantos anos no relacionamento abusivo e demorem para fazer a denunciar. “Foram 163 mulheres que, no ato do atendimento, revelaram ter passado mais de dez anos em situação de violência e só depois buscaram ajuda. Em outros 155 casos, elas passaram até cinco anos para buscar ajuda. Não é preciso ser agredida fisicamente para estar em um relacionamento abusivo e violento. Por ser de difícil identificação, a violência psicológica, na maioria dos casos, é negligenciada até por quem sofre – por não conseguir perceber que ela vem mascarada pelo ciúme, controle, humilhações, ironias e xingamentos”, explica a psicóloga Úrsula Goes.
“Percebemos que elas já passaram por todo o contexto agressivo de uma violência psicológica e moral, estão cansadas de seguir com o relacionamento, e tomam a decisão pela separação. Mas aí, o homem não entende isso, porque sempre se viu como dono da sua companheira, em uma relação de posse. E isso é preocupante, porque em muitos casos de feminicídio divulgados pela imprensa, você escuta dos familiares da vítima ou das autoridades que a violência ocorreu porque o companheiro não se conformava com a separação”, alerta a psicologoa Úrsula Goes.
Dados do Nudem Cariri – O Nudem Cariri é uma conquista da sociedade civil, solicitado no Orçamento Participativo e instalado em 2018, atendendo demandas de mulheres vítimas de violência nas cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. A pesquisa foi realizada com 686 mulheres que buscaram assistência ao longo deste ano e mostrou que em 49,2% dos casos o agressor, geralmente o ex-companheiro, já responde por crimes previstos na Lei Maria da Penha e em 98,9% este homem encontra-se em liberdade.
Em sua maioria, as mulheres com idades entre 21 a 30 anos (38,6%), que possuem uma renda mensal de até um salário mínimo (40,5%), afirmaram que em 84,7% dos casos os filhos presenciaram as diversas faces da violência doméstica, seja ela psicológica (96,8%), física (73,7%), moral (67,4%), patrimonial (53,2%) e sexual (23,7%). Mesmo diante do contexto violento, 61% das mulheres ouvidas pelo nudem Cariri revelam que não têm interesse de denunciar criminalmente o agressor, que, em 35,8% dos casos também conviveu com a violência doméstica enquanto criança.
“Isso é um dado muito significativo para nós, porque mostra que aquele homem foi uma vítima de violência doméstica enquanto criança e que hoje representa o mesmo comportamento na frente dos filhos. É por isso que precisamos trabalhar cada vez mais com ações de educação em direitos para que a situação não seja reincidente e para que essas mulheres possam sair desse ciclo violento”, destaca o defensor público Rafael Vilar, supervisor do Nudem Cariri.
Exemplo de superação - A mulher que passou 17 anos ao lado de um marido ciumento e controlador, hoje busca um novo começo. Com o passar dos anos, os xingamentos e as ameaças evoluíram para as agressões físicas e sexuais até ela ser ameaçada de morte. “Era uma situação de posse, ele queria ter controle de tudo, rastreava o carro, o celular, me controlava em todos os lugares onde eu ia até ele ultrapassar todos os limites e chegar a me bater mesmo. Foi quando eu dei um basta. Nós temos dois filhos e eu sabia que se eu não buscasse ajuda eu poderia morrer. Quando busquei a Defensoria, me foi amparado não só na questão da violência doméstica, mas em tudo que envolve ela, como na questão da guarda e da pensão das crianças”, revelou a mulher que hoje consegue enxergar um novo futuro sem medo.
Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (Nudem) – O Nudem recebe demandas diárias que envolvem mulheres. A atuação nesta área envolve a defesa dos direitos das mulheres que se encontram em situação de violência doméstica e familiar, prestando toda a assistência, como educação em direitos, orientação jurídica, ajuizamento de ações necessárias de acordo com o caso, requerimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha e encaminhamento para a rede de proteção existente no Estado e no Município. São comuns casos de ações cíveis, tais como divórcio, pensão alimentícia, guarda e reconhecimento de paternidade. Já no âmbito de questões criminais a incidência maior é de pedido de medidas protetivas contra agressores.
Ao longo de 2019, a Defensoria Pública divulgou a campanha Em Defesa Delas, que buscou a conscientização e combate à violência contra as mulheres. A partir dos dados compilados pelo Nudem, durante os meses de janeiro a novembro deste ano, Elza foi criada. Uma personagem que não é real, mas que é reflexo de todas as violências vividas por essas 1259 mulheres atendidas pelo Núcleo e que buscaram na Defensoria Pública um amparo para seguir em frente. Confira.
Onde buscar por atendimento
Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher – Nudem
Rua Tabuleiro do Norte, S/N, Couto Fernandes (Casa da Mulher Brasileira).
(85) 3108-2986
Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher – Nudem Cariri
Travessa Iguatu, 304, CEP 63122045, Santa Luzia, Crato Ceará.