Instagram Facebook Twitter YouTube Flickr Spotify
15/07/2016

Defensoria Pública – a proteção do um contra todos – Por Amilton Bueno de Carvalho

Fonte: Emporio do Direito

Introdução

Ao receber convite do precioso amigo David Sanches Rubio para fazer parte de livro em homenagem ao professor Jesús Antonio, de imediato respondi afirmativamente – sequer pensei: há situações na vida que não merecem ser questionadas pela espetacular obviedade que contém.

Homenagear Jesús Antonio é dever de todo aquele que pensa e milita na direção de um direito libertário: sua vida de doutrinador é referência para todos nós democratas radicalizados, comprometidos com a máxima “vida digna para todos”, absolutamente todos – principalmente para aqueles que professam verdades diferentes daquelas que professamos: em outras palavras, sejam eles quem for.

A minha relação com o querido professor de Aguas Calientes (e de todas as Américas), ultrapassa o campo da intelectualidade – alcança o momento dos afetos: local de onde emerge toda a exegese no olhar nietzschiano. A admiração e o respeito que tenho por ele e seu povo (os débeis) é agressivo – uma irmandade de utopias, de lutas, de parceria.

A história de Jesús Antonio é a da igualdade (fundada na desigualdade como norte igualizador). Uma opção agressiva pelo crescimento de todos, tal como Nietzsche define no “Humano Demasiado Humano”[1]:

Dois tipos de igualdade.- A ânsia de igualdade pode se expressar tanto pelo desejo de rebaixar os outros até seu próprio nível (diminuindo, segregando, derrubando) como pelo desejo de subir juntamente com os outros (reconhecendo, ajudando, alegrando-se com seu êxito)” – aforismo 300.

Fácil perceber de que lado da margem do rio da vida Jesús Antonio se faz presente: sua felicidade com as conquistas superadoras da dor, do ódio, do desamor, é contagiante.

Amar o querido professor é tarefa que explode desde que se o conheça minimamente – uma generosidade, um dar-se à frente carinhoso e humano, muito humano, demasiado humano, absurdamente humano.

Por que tal amor a ele? Nietzsche me ajuda: “Amo as almas pródigas: não devolvem e não querem nenhuma gratidão, pois presenteiam sempre” (Fragmentos do Espólio, 4 (210) e 5 (7), p. 159 e 203[2]).

Ama-se-o por ser homem superior. Volto a Nietzsche que, numa espécie de eterno-retorno-do-mesmo, o descreve:

“Um outro caráter, que prontamente partilha da alegria alheia, que conquista amizades em toda parte, que tem afeição pelo que cresce e vem a ser, que tem prazer com as honras e sucessos de outros e não reivindica o privilégio de sozinho conhecer a verdade, mas é pleno de uma modesta desconfiança – este é um homem antecipador, que se move rumo a uma superior cultura humana” – aforismo 614 (1).

E como professor, Jesús Antonio carrega a qualidade maior do mestre: aquela que ajuda a aprender a caminhar; mas não apenas caminhar, mas caminhar sozinho; mas não apenas caminhar sozinho, mas caminhar sozinho por caminhos-nunca-antes-caminhados. Ou seja, tem sem-si:

A glória dos grandes. – Que importa o gênio, se ele não transmite a quem o observa e admira uma tal liberdade e altura do sentimento, que ele não mais necessita do gênio? – Fazer-se supérfluo – eis a glória de todos os grandes” (Humano Demasiado Humano II, Opiniões e Sentenças Diversas, aforismo 407), [3]).

Quem é, para mim, Jesús Antonio?

Homens superiores

“Este se eleva – é preciso louvá-lo!
“Mas aquele sempre vem de cima!
“E ele vive alheio ao louvor mesmo.
“Ele é de cima!” (Nietzsche, A Gaia Ciência, [24] p. 47).

Início

A realidade prisional brasileira é assustadora (aliás, o é em toda a América, mas pretendo discutir neste artigo aquilo que se passa por aqui), animalesca, asquerosa, assustadora.  E não só pelo que ocorre no cárcere, mas também pelo que se vive (ou não-se-vive) no ambiente das agências responsáveis pelo massivo encarceramento.

Através de dados do Ministério da Justiça, coletados no site UOL, Brasília, no dia 23 de junho de 2015, via-se que o Brasil tinha a quarta população carcerária do mundo (referentes ao primeiro semestre do ano de 2014), com 607.700 pessoas aprisionadas, cujo percentual (quarto lugar) é idêntico quando se trata de comparar o número de presos com o total da população, segundo a mesma fonte, ao continuar no mesmo ritmo, em 2075, dez por cento do povo brasileiro estará encarcerado.

Entre os anos de 2004 a 2014, o aumento da população prisional foi de 61,8% (em 2004 eram 185,2 presos para cada grupo de 100 mil habitantes; em 2014, era 299,7 para cada 100 mil habitantes).

No meu Estado (Rio Grande do Sul), entre 2000 e 2010, o aumento carcerário foi de 117%, enquanto a população em geral, em tal período, sofreu acréscimo de 7%, com déficit de 10.880 vagas no sistema (jornal Zero Hora, Polícia, 29-05-2010).

A face mais visível e afirmadora do caos prisional (e das agências de segurança) talvez seja o número de presos provisoriamente no país.  Aqui a irracionalidade e a maldade do sistema espetacularmente seletivo (mesmo que não o fosse o alarme seria igualmente insuportável) descaradamente se faz sentir.

Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional, Ministério da Justiça, via levantamento nacional de informações penitenciárias, de junho de 2014 (base das informações do UOL acima referido), 41% das pessoas privadas de liberdade eram presos sem condenação, ou seja, algo em torno de 150.000 pessoas encarceradas na espera de julgamento.

Aqui o perverso do sistema, mesmo no momento do processo de conhecimento, onde a presença do Ministério Público, do Advogado e do Juiz (leia-se: presença de nós, os juristas), a agressão à legalidade rasteira (tempo razoável para fundamento dos processos com réus encarcerados antes do tempo prisional hábil – sentença condenatória definitiva) é assustadora (note-se: uma das hipócritas alegações diz que o não respeito aos direitos do humano nos cárceres se dá porque lá a responsabilidade seria do poder executivo e não do judiciário – um ridículo e covarde lavar de mãos).

A constatação é inevitável: há espetacular banalização do encarceramento e profunda adoração divina do direito penal como hipótese superadora da dita violência – seja real ou imaginária. É assustador: desde muito se sabe e se o sabe através da dor “do outro” e não da nossa dor, como se alegra o pequeno burguês perfumado, que prisão não supera a criminalidade, não é resposta sadia para se tentar o além-do-crime.

Os dados demonstram; o olhar criminológico grita; a vida suspira ante o suplício gótico dos encarcerados; o minimamente humano não suporta os gritos que vêm das más-morras. Mas, de nada adianta: o senso-comum vence, o espírito de rebanho derruba a racionalidade humanista, e a grande maioria, a espetacular maioria, clama pelo encarceramento: acreditam que o resultado prisão inibe e inibirá o “crime” – embora se saiba que todos são criminosos, todos já cometeram e cometem delitos, mas o “bom” homem, o cidadão de “bem” apenas considera delinquente aquele da outra classe: “Os canalhas não devem ser procurados apenas entre quem quebra a lei, mas entre aqueles que nada “quebram”” (Fragmentos do Espólio, [2] aforismo 67, verão 1883) .

Mas, se tudo ficasse por conta do senso comum, talvez a “vida” fosse suportável. Todavia, o escândalo explode quando ocorre infantil simplificação de fenômeno complexo (prisão como superação da violência) alcança a academia e, máxime, invade o imaginário do operador do direito penal. Simplificação que carrega espetacular vantagem ao rebanho: “… a utilidade de que só quando vemos as coisas de modo simplificado é que elas se tornam previsíveis e manipuláveis para nós…” (Nietzsche, [11] 14(152), p. 96).

Um exemplo talvez demonstre a paixão psicótico-persecutória (certo de que o exemplo nada prova além do próprio exemplo): o jornal Zero Hora do dia 20 de outubro de 2010 noticiou que o Ministério Público da cidade gaúcha de São Valentim, tomou medida criminal contra um cidadão por ter atropelado, na direção de um caminhão, duas galinhas…

Quer me parecer que ocorre uma espécie de fé, de crença, no direito penal e na prisão, como resposta sadia ao fenômeno violência. E fé, todos sabem, independe de prova: basta por-si-só. Não adianta os fatos (e a vida) demonstrarem o contrário, ela está acima-de-tudo e de todos. A verdade que emerge do senso comum (o saber-por-ouvir-dizer, forma mais baixa de captação conceitual) simplificadora da complexidade (não sabemos o que fazer com a dita violência – repito: real ou presumida, não temos ainda resposta porque as respostas à violência são de tal forma difusas e ainda hoje inalcançáveis, fugidias: não conseguimos dar conta dela), é mágica: punir, punir e punir cada vez mais. E todos sabem: nunca se puniu tanto!

A dificuldade de derrubar as “verdades” consolidadas pelo senso-comum é imensa, por vezes tarefa do impossível: “Aquilo que um dia a plebe aprendeu a acreditar sem razões, quem poderia derrubá-la com razões?” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, IV, Do Homem Superior, 9, [4]).

A crença penal-prisional é agressiva, mas isso apenas prova a sua vitória enquanto hipótese: “a crença forte prova apenas a sua força, mas não a verdade daquilo em que se crê” (Nietzsche, aforismo 15, [1].  Aliás, em outro local Nietzsche indica o caminho destinado ao “crente”: “Um certo grau de crença nos basta hoje como objeção contra aquilo que se acredita, ainda mais como questionamento da saúde mental do crente: “o lugar das “convicções arraigadas” é quase sempre o hospício” (Fragmentos Finais,[11] Crítica do martírio, p. 207, 14(160)).

Na mesma obra, agora no aforismo 226, ele esclarece o que é a fé, no sentido aqui utilizado: “Habituar-se a princípios intelectuais sem razões é algo que chamamos de fé”.

Não creio no direito penal como resposta à “maldade” humana (aliás, o grande problema do direito penal é que ele sempre chega tarde: quando ele vem o delito já aconteceu) e muito menos acredito em prisão (mesmo as ditas “boas” são um mal-em-si). Mas, por outro lado, também não se sabe o que fazer com o dito criminoso – apenas se tem algum indício de como-não-fazer.

No entanto, o rebanho precisa de respostas, não lhe é possível conviver com dúvida, delas necessita mesmo quando não existem – o salto, então, para soluções mágicas, próprias da fé é imediato: “é preciso ser muito humano para dizer “eu não sei”, para se permitir ignorâncias” (Nietsche, Fragmentos Póstumos, 19887-1889, vol. VII, 14(179) – [5]).

Estão eles absolutamente convictos: não há espaço para outras hipóteses: “Convicção é a crença de estar, em algum ponto do conhecimento, de posse da verdade absoluta” … “ele se encontra na idade da inocência teórica e é uma criança, por mais adulto que seja em outros aspectos” (aforisma 630 [1]).

N’outro local, Nietzsche faz apologia à dúvida: “A verdade não quer deuses a seu lado.- A fé na verdade começa com a dúvida em relação a todas as “verdades” até então acreditadas” (aforisma 20, Opiniões e Sentenças Diversas, [3]).

Eis o momento de ousar ir contra a corrente com todas as agressões que se sofre (“ora, defensor de bandidos”, “gostaria de saber se tu fosses vítima ou fosse o teu filho”, “adote um bandido, ó defensor dos direitos humanos”): “É preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitos” (Nietzsche, Além do Bem e do Mal, aforismo, 43, [6]).

Eis o momento de dizer não ao direito penal cuja finalidade é selecionar os indesejados para os destruir – jamais nele há bondade: mau por essência.

Eis o momento de colocar em pauta e tentar superar o mal prisão: destruidor de toda possível humanidade, instituição que nos aproxima do primata, ranço de vingança que nos afasta cada vez mais do humano: monumento ao ódio e demonstração de que estamos a falir como sociedade humana.

Eis o momento de se procurar, no mínimo, reduzir os danos causados pelo mal penal, a procura de afastar cada vez mais o cidadão das agências penais persecutórias, seja ele quem for, seja qual o crime que se lhe impute (aliás, sabe-se muito bem quais são os eleitos pelo sistema penal…).

Ora, se o olhar “rebanhesco” crê com todas suas forças na possibilidade penal e na consequente via prisional como superação da violência (repito: real ou imaginária), gerador do refrão “impunidade como causa da criminalidade”, se há este acreditar honesto, qual é a consequência? Cada vez mais novas condutas são tipificadas como crime, cada vez mais as penas são aumentadas, a possibilidade de prisões provisórias é alargada, as garantias do cidadão são relativizadas, os benefícios do apenado são diminuídos; cada vez mais pessoas encarceradas. Os tentáculos do leviatã não têm freios: o simples viver é controlado, todos se transformam em delinquentes!

Quando se acredita na mentira – aqui está o doloroso – termina-se por morar lá, na mentira, nela se vive: “venera-se de todo coração – se se permite uma expressão jocosa em assunto tão sério – o princípio da maior tolice possível” (Nietzsche, A Vontade de Poder, aforismo 618, [7]).

A panpenalização gerada termina por desaguar no Poder Judiciário (alguém sofrerá perseguição estatal por “atropelamento de galinhas”) – local que a modernidade encontrou para a realização da punição penal. O judiciário sofre, então, uma demanda penal assustadora, invencível. E cresce cada vez mais.

Restamos por criminalizar a vida e como consequência a vida vai encontrar resposta no local onde menos se entende a vida, menos se entende do viver, menos se entende do humano, lá onde a vida passa longe, enfim onde a vida não vive: o Judiciário. Maffesoli assim ensina: “A verdadeira vida está por toda parte, exceto nas instituições” (O Instante Eterno, pág.14, [8]).

Ou seja, a nossa falência como sociedade, a nossa incompetência, termina por entregar a vida aos cuidados da burocracia do poder: “A valorização da autoridade cresce na proporção da diminuição das forças criativas” (Nietzsche, primavera-verão de 1883, 7(128), [2]): entregamos a vida nas mãos de um pai cruel!

Evidente que se pode mirar as causas possíveis e as perversas consequências da alarmante criminalização-presídio dos mais diversos locais (repito: a complexidade do fenômeno é fantástica: “Pois sempre precisamos perguntar junto a todo “útil” e “nocivo” 100 “para quês” diversos” – [5], 1887-1889, 11(61)); todavia, estou a escolher um momento apenas para debater: o da nossa responsabilidade, como juristas, para a concretização do escândalo prisional.

As pessoas estão presas e nas condições desumanas que todos sabemos, cansativamente sabemos, porque alguém as mandou para lá; o aprisionamento não cai dos céus: alguma pessoa historicamente localizada os denunciou; alguma pessoa historicamente localizada os defendeu; alguma pessoa de carne-e-osso (possivelmente não se creia de carne-e-osso, mas num além do carne-e-osso) determinou o encarceramento.

Quem são tais pessoas? Nós os ditos juristas. Apesar de todo o discurso justificador, fomos nós que mandamos as pessoas para o suplício gótico. É princípio: quem pode o sim, pode o não. Nós optamos pelo sim.

O que quero dizer com isso?  Nós somos responsáveis éticos pela vida prisional – é-nos possível dizer o não, ou ao menos a de dizer um não menor, menos agressivo, como resposta a alguma pendência penal que atuamos. Todavia, optamos pelo encarceramento massivo.

Estou convencido (provisoriamente: como o é todo convencimento) de que: quando alguém vai ao presídio, leva junto um pouco (ou muito) de nós que atuamos no processo. Algo de nós é aprisionado: não podemos nos des-responsabilizar pelo nosso atuar: “As consequências do que fizemos nos alcançam, indiferentes a que tenhamos “melhorado” neste meio-tempo” (aforismo 179, [6]).

Não sei se temos consciência disso, mas em algum momento o nosso inconsciente gritará, sairá de dentro de nós e agitará a nossa vida: para o bem ou para o mal. Talvez estejamos a fugir de nós mesmos ao atuar burocraticamente como se dentro de processos não estivessem pessoas de carne-e-osso: “Talvez você saiba de pessoas, à sua volta, que devem olhar para si mesmas apenas de alguma distância, a fim de se achar suportáveis, ou atraentes e animadoras. O autoconhecimento não lhes é aconselhável” (Nietzsche, Aurora, Livro I, aforismo 15, [9]).

Nietzsche, embora trate especificamente dos juízes, ensina o alcance da dor:

Execuções.- O que faz com que toda execução nos ofenda mais que um assassinato? A frieza dos juízes, a penosa preparação, a percepção de que um homem é ali utilizado como meio para amedrontar outros. Pois a culpa não é punida, mesmo que houvesse uma; esta se acha nos educadores, nos pais, no ambiente, em nós, não no assassino – refiro às circunstâncias determinantes” (aforismo 70, [1]).

Parece, no olhar nietzschiano, que precisamos do espetáculo doloroso prisional, daí porque não mais matamos o condenado, precisamos dele vivo a sofrer, necessitamos do inimigo – aliás, quem necessita do direito penal é aquele que necessita de inimigo: “A vida do inimigo.- Aquele que vive de combater um inimigo tem interesse em que ele continue vivo” (aforismo 531, [1]), ou ”Quem quiser matar o seu adversário deveria aventar se, justamente com isso, não o estaria eternizando em si mesmo”(Fragmento do Espólio,[2] aforismo77).

Ou ainda: “Quem tem ele mesmo a vontade de sofrer se posiciona de outro modo em relação à crueldade: ao fazer sofrer, ele não considera o fazer sofrer como algo em si e por si prejudicial e ruim” (Fragmentos do Espólio, [2] 1(25), julho-agosto de 1882).

Mais: “sempre que o ser humano é usado e sacrificado como um meio para os fins da sociedade, toda a humanidade superior se entristece” (O Andarilho e Sua Sombra, [3] aforismo 186)

Ainda mais: “¡Cuán poca imaginación tenemos para el dolor que causamos a otro!” (Aforismos [10], p. 97).

Doloroso é constatar que nesta guerrilha que se trava – talvez seja mesmo a luta pela vida digna que tanto Jesús Antonio refere –, ao menos por ora, a derrota é previsível como ensina o filósofo da suspeita: “… os mais fortes e mais bem formados são fracos quando têm contra si a maioria constituída pelos instintos de rebanho organizado, a covardia e a baixaria dos fracos” (p. 80, [11], 14(123)).

Mas, os punitivistas de plantão não se sintam confortáveis:

Há mais dinamite entre o céu e a terra do que conseguem sonhar esses idiotas empurpurinhados…”  (p. 44, [11] grifo meu).

Meio

(ou: O Defensor do um contra todos)

É neste doloroso e irracional contexto que procuro debater o papel da advocacia penal, em especial o papel da Defensoria Pública no âmbito penal, na realidade brasileira. E o faço a partir do referencial teórico nietzschiano procurando utilizá-lo a partir do viés francês, tendo-o como instrumento, ferramenta de trabalho. Em outras palavras, busco apropriar o que é possível, dentro da filosofia de Nietzsche, aquilo que pode ser útil na perspectiva do compromisso radical com aqueles que sofrem a desumanização de um Estado punitivo perverso: uma mirada libertária.

É o reconhecimento do asco que desperta o Direito Penal (e suas agências): estancador do devir que possibilite a dignidade da pessoa humana. Em outras palavras: o Direito Penal com inibidor da vida – seu pacto é com tanatos porquanto inexiste nele bondade alguma.

Em outro local (Direito Penal a Marteladas – Algo sobre Nietzsche e o Direito [12], p. 21-22) assim defini o Defensor Penal:

“… no momento penal, a vida tem demonstrado que o ator principal na cena judiciária é o advogado ou o defensor público criminal: o defensor do um contra todos. Todos sabem: no momento em que há notícia de um crime, contra o cidadão-suspeito, tem-se toda a estrutura do Estado-administração, via polícia, que necessita encontrar culpado, que necessita encontrar culpado (é sua função); contra ele, tem-se toda a estrutura do Estado-acusador que, em tempos de populismo punitivo, necessita fazer presente, seja do jeito que for, a perseguição penal; contra ele, tem-se toda a estrutura da grande maioria dos integrantes do Poder Judiciário que entendem que o judiciário faz parte integrante do aparato repressivo do Estado: contra ele, tem-se a imprensa sensacionalista que necessita do espetáculo infantilizante da busca do “mau”; contra ele, tem-se toda a sociedade que sonha se vingar.”

“Em seu favor, um, apenas um: o defensor. E este, por ousar defender o um contra todos, está a sofrer preconceito na sociedade, inclusive, de pasmar, entre os próprios operadores jurídicos. Uma luta inglória, onde se ingressa já derrotado. Como pode, se perguntam, ser defensor do um contra todos?”.

Na nossa realidade, aproximadamente nos últimos vinte anos, está se organizando, dentro do Estado, a Defensoria Pública, cuja destinação, no âmbito penal, é a defesa do débil – basicamente aqueles que não têm condições de suportar as despesas com advogado. São profissionais que assumem mediante sério concurso público, com status funcional e vencimentos praticamente idênticos aos dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, com dedicação exclusiva.

Antes da instituição, como regra, os pobres – a grande maioria dos eleitos como clientes pelo direito penal – eram defendidos por serviços de assistência jurídica de universidades – cobaias do saber de estudantes, por advogados dativos que nada recebiam a título de honorários, normalmente advogados iniciantes (outra vez: “cobaias”) ou advogados escolhidos pelo próprio julgador (prestavam mero favor em defender a população vulnerável). Evidente que se pode imaginar o grau de eficiência defensiva que os acusados recebiam.

A partir do momento em que a Defensoria se organizou, o nível de profissionalismo e de competência das defesas se alterou espetacularmente – agora são defendidos como devem ser defendidas todas as pessoas, tenham ou não condições financeiras para contratar profissional. No particular, sou testemunha de tudo porquanto fui juiz nos dois momentos: antes e depois da criação oficial da Defensoria Pública: a diferença é assustadora: agora, na maioria dos Estados há defesa efetiva dos acusados. Antes, lamento constatar, eram mal defendidos: a maioria dos defensores sequer tinha independência- o grau de sujeição ao Estado perseguidor era agressivo.

Assim, na estrutura penal brasileira, a Defensoria representa o novo anunciador de um tempo onde a proteção do débil começa a se efetivar com toda a dignidade que o humano, pelo simples fato de ser humano, merece! Em outras palavras, dentro do Direito que é recheado pelo velho, pelo antigo, pelo medieval (sabe-se muito bem para que não-serve o Estado-acusação, sabe-se muito bem para o que não-serve o Estado-Julgador), surge uma nova possibilidade.

E por representar o novo que pode tentar ajudar superar a bolorante estrutura punitiva, recheada de desumanidade, é que ouso tentar contribuir para com ela (e, por extensão, à advocacia criminal sua irmã siamesa): eis a razão deste artigo. Espero ser útil.

(a) “A justiça apresentou-se diante de mim: daí quebrei os meus ídolos e me envergonhei. Submeti-me a uma penitência e obriguei o meu olho a olhar para onde ele não gostaria de olhar: e levar amor para lá” (Verão de 1883, 13, p. 298, [2])

O olhar burocrático se caracteriza por “olhar e não ver”: as coisas são o que são por uma ordem repetitiva e igualizadora dos não iguais. Não suportam olhar onde o olho não gosta de ver, não suporta ver.

O querer ver, o suportar ver a justiça penal que se apresenta diante de nós é assustador:  fazemos parte de um espetáculo ridículo onde as regras do jogo estão marcadas:  destina-se a pessoas já escolhidas previamente (quando se estabelece um tipo penal já se sabe quem se busca perseguir) – são eles, os de outra classe social que não a dos “fazedores” de lei.

Penso que, por dever ético, a vergonha tem que nos alcançar: impossível dizer sim ao que se apresenta. Olhar e ver parece ser a ordem. Olhar e ver quem se encontra na teia penal, quem habita o suplício prisional.

Mas, a vergonha explode porque se constata que nós somos (também) responsáveis pelo que lá ocorre, muitas vezes como consequência da nossa própria cegueira – até incompetência técnica e descompromisso com a dor do outro.

O filósofo da dúvida chama atenção para isso em outro aforismo:  “É terrível como as coisas são injustas. Mas aí está o consolo de que nós somos os criadores da justiça e que nós sofremos em nós mesmos” (p. 149, [2] 4(150)): nós criamos a dor, nós parimos a justiça que aí está!

Nietzsche, no aforismo em destaque, parece contaminado pelo cristianismo – que ele tanto combateu como religião e não o Cristo pessoa. O constatar da dor que alcança aqueles perseguidos pelo direito penal é apenas condição para o agir: lá levar o amor – resgatar a dignidade da pessoa, com a quebra dos ídolos dogmáticos que nos impossibilitam de criar novas possibilidades superadores da dor.

Mas de qual justiça ele fala?

“A: O que significa a justiça? B: Minha justiça é amor com olhos que veem. A: Mas considera o que tu dizes; essa justiça deixa qualquer um solto, exceto o que julga! Esse amor suporta não só toda pena, mas também toda culpa! B:  Assim deve ser!” ( p. 70, [2] n. 1).

Mesmo porque o discurso da injustiça de que tratam os perseguidores de plantão, os inquisidores que buscam manter o sistema de dominação inalterado, é destruído por mais um aforismo nietzschiano: “Não se deve falar de uma injustiça em casos nos quais não estão de maneira alguma presentes as condições prévias para a justiça e a injustiça” (p. 61, [5] 11 (156)).

Diz ele em outro momento: “A criminalidade é a maior possível, lá onde o esgotamento é extremo, isto é, lá onde se trabalha de maneira mais sem sentido possível, na esfera do comércio e da indústria” (p. 386, [2] 15(37)). Ou seja, exatamente onde não estão as bases que permitam vida digna para todos: fundamento de toda justiça possível.

Talvez por isso ele assim conclua nos “Fragmentos Finais”, [11] p. 233, 20 (136):

“o que não se tem,
mas se necessita,
tem-se o direito de tomar:
assim tomei para mim a boa consciência”. 

(b) “Um código como o de Manu surge como todo bom código: ele resume a experiência, a prudência e a moral experimental de longos séculos; ele encerra, não cria mais nada” (O Anticristo, n 57 [13]).

“Quero saber se és um fazedor criativo ou um aplicador em qualquer sentido: como ser criativo, tu pertences aos livres; como um aplicador, és escravo e instrumento deles” (p. 176, n.9, [2] nov. 1882 a fev. 1883).

“Nosso destino dispõe de nós, mesmo quando ainda não o conhecemos; é o futuro que dita as regras do nosso hoje” (aforismo 7, [1]).

O direito que se codifica diz com o passado, parece que o olhar de Nietzsche é definitivo: “ele encerra e não cria mais nada”. A experiência do que já foi, mas o que já foi jamais será: o permanente e inocente devir, na expressão nietzschiana, forte no pensamento heraclitiano: “mas até mesmo a correnteza, na qual pondes vossos pés pela segunda vez, não é a mesma que na primeira vez” (A Filosofia na Era Trágica dos Gregos,[14] p. 56)

O labor defensivo está dirigido ao futuro, à construção de uma práxis que corresponda nova possibilidade libertária num permanente devir na busca da sempre inalcançável vida digna para todos, absolutamente todos: “A partir daqui, a história decompõe-se em dois tempos: no da culpa e no da generosidade. Enquanto a primeira pensa sempre em expiação e pagamento, a outra interessa-se apenas em doar para frente” (grifo meu; Peter Sloterdjik, [15] p. 74-75)

O olhar libertário impõe compromisso com a redução das dores daquele que sofre a perseguição: o passado oprime, a luta impõe que o futuro liberte: compreender as normas com a possibilidade protetora e não castradora de direitos.

A lei que encerra o passado deve ser superada pelo novo libertador ou ao menos que represente menor sofrimento. Nietzsche define bem: ou seremos escravos (burocráticos), meros instrumentos do poder de plantão (poder que sempre e sempre tende ao abuso), servis e dóceis (“O animal de rebanho desempenha um papel que lhe é ordenado” – p. 89,[15] ou seremos criativos, com todos os riscos (“É-se punido também por suas qualidades” – p. 71, [2] n. 25)) que a criatividade encerra – inclusive quanto a incerteza no que diz com os resultados.

O direito, enquanto possibilidade ético-libertária (o saudoso Lyra Filho dizia que o direito é a positivação da liberdade conquistada e conscientizada) só se faz presente na luta que ocorre entre os segmentos sociais. Se nosso compromisso é com o débil – aquele que sofre a perseguição do Estado – aqui está nosso campo de luta: num momento, uma guerrilha para que as leis que presentem conquistas sejam aplicadas – estancando o retrocesso (“Uma “conquista” e, em seu emprego da linguagem, algo que se “conquistou” “penosamente” e, sob certas circunstâncias, “com suprema ousadia”, e por isso não se quer “abrir mão de novo”, porém, “conservar” e também, segundo Nietzsche, deve-se fazê-lo” (Werner Stegmaier, As Linhas Fundamentais do Pensamento de Nietzsche, [18]  p. 186) , e, n’outro, na superação da legalidade na busca de novas conquistas. Ou seja, o direito nasce da luta e é conquista: para Nietzsche ou se é criativo, pertencendo aos livres, ou se é mero aplicador: o escravo daquele que criou.

“Eis por que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, tudo o que é duradouro e definitivo, eis por que sempre torna a romper, dolorosamente, a rede em torno de si” (pp. 209, [16] af. 427, Humano Demasiado Humano).

Assim ele ensina: “Não acreditamos em um direito que não repouse sobre o poder de impor-se, sentimos todos os direitos como conquistas” (n. 120, [7]  p.85).

O que exige, então, do Defensor?

“Pensamento fundamental: precisamos tomar o futuro como critério para todas as nossas estimações – e não buscar atrás de nós as leis de nossa ação” (n. 1000, [7] p. 483).

(C) “Conceito do ser humano superior: aquele que sofre com o humano e não apenas com si mesmo, aquele que não pode agir de outro modo senão recriando o “ser humano” em si mesmo (Fragmentos do Espólio, [16] p. 288, 29(8).

Não é necessário muito esforço intelecto-afetivo para dimensionar o sofrimento da pessoa que tem contra si a perseguição estatal durante o processo penal, e, máxime, a daquele que se encontra enjaulado nas más-morras que ridiculamente fazem de conta ser local humano para segregar aquele que foi condenado: ser condenado não quer dizer que houve a prática criminosa por parte do agente, mas apenas diz o que diz – houve condenação – e nada mais, ou seja, não se pode inferir que isso seja prova irretorquível de que aquele agente praticou o delito que se lhe imputa – o número de pessoas condenadas injustamente é grande, mesmo entre aqueles que confessaram (confessar também quer dizer confessar e não que tenha efetivamente cometido o delito – quem atua no processo penal sabe muito bem do que estou a falar).

A dor é indescritível e o discurso dogmático de que a pena não deve ultrapassar o condenado é mera retórica. A pena sim alcança muitas pessoas além do acusado: seus ascendentes, seus descendentes, seus amigos, seus vizinhos, sua comunidade. A vida sofre, a humanidade sofre, os deuses sofrem.

Aliás, os estudos realizados pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (jornal Zero Hora, 22 de abril de 2016), destinado a formar convencimento dos deputados para aprovação de projeto de lei que prevê assistência a filhos de apenados, dão conta que jovens filhos de presos têm cinco vezes mais chances de tornarem-se criminosos.

Repito: a vida sofre, a humanidade sofre, os deuses sofrem: humanos transformados em pasto, inclusive sexual…

E tal pessoa é marcada definitivamente com a pecha de presidiário – tanto pelos outros, como por si mesmo.- simplesmente porque não se pode desfazer do passado. “O tornar-se arrasta atrás de si o haver sido” (Aurora, [9] aforismo 49, p. 44).  O sofrimento é para sempre, a desconfiança é eterna, o medo jamais é superado: “-um desgarrado, que passou longo tempo na prisão, com medo do bastão de um carcereiro: agora segue temeroso o seu caminho, a sombra de um cajado já o faz tropeçar”(Fragmentos Póstumos, [5] 11(42), p. 12, 1887-1889).

Gilles Deleuze (Nietzsche, [17] p. 92), ao debater o eterno retorno, cita passagem do Zaratustra: “Oh! Ninguém poderá fazer rolar, alguma vez, a rocha do “facto consumado”; todas as penas, necessariamente, são eternas. Assim pregava a loucura. Nenhuma acção pode ser apagada. Como é que o castigo a poderia abolir?”.

O processo que ele responde é o tudo para a sua vida.  E todos estão contra ele. Em seu favor, já o disse, apenas um, o defensor! A história desta pessoa, a história da família desta pessoa, a história da humanidade, está colocada em pauta e um só o defende e um só o defenderá. Os outros? Ah, os outros querem vingança, apenas vingança: “Agora estou justiçado – significa em muitos casos “agora estou vingado”” (Fragmentos do Espólio, [2] 4(64), p. 125) ou “Por toda parte onde se buscaram responsabilidades, era o instinto de vingança que então as procurava” (aforismo 765, [7]).

Desde meu olhar, só há defesa efetiva se o defensor se contaminar pela dor do acusado: é condição primeira, deve incorporar a dor daquele que sofre, que nada mais é que a dor que a própria humanidade sofre quando um dos seus integrantes é animalizado. Neste momento, nesse embate, exige-se, inclusive desrespeito à autoridade violadora dos direitos do cidadão – seja quem for, seja qual o delito cometido.

Na verdade, aqui a eticidade explode, o “outro” é quem vai sofrer as consequências do atuar do defensor, daí porque se impõe entrega quase supra-humana no seu agir a impor a recriação do “ser humano em si mesmo” (para muitos isso é insuportável, daí porque a maioria segue na direção burocrático-servil: não consegue se colocar no lugar do outro, no máximo fica ao lado do outro).

“Respeito e obediência à autoridade, mesmo à autoridade torta! Assim pede o bom sono. Que fazer, se o poder gosta de caminhar sobre pernas tortas?” (p. 30, [5] “Das Cátedras da Virtude”): o defensor tem o dever de enfrentar a autoridade torta, não pode ter o bom sono: deve lutar para endireitar as pernas tortas do poder. Talvez isso explique porque o poder busca desacreditar a advocacia criminal, buscando inclusive reduzir suas garantias.

A defesa do débil sempre impõe luta incessante contra os donos do poder que gera a dor, daí porque a defesa sempre corre em direção da guilhotina – é a sina dos insatisfeitos, então o tempo da defensoria impõe a geração de um saber que represente perigo ao poder: não pode carregar a tranquilidade de um conhecimento adocicado, gentil, submisso, dócil: “as pessoas me contaram ao som de flautas sobre a tranquila felicidade do conhecimento – mas eu não a encontrei, sim, eu a desprezo agora. Eu não quero mais nenhum conhecimento sem qualquer perigo” (grifo meu – [19], Karl Jaspers, Introdução à Filosofia de Friedrich Nietzsche, p. 483).

O trabalho da defensoria no momento penal contém o “mau cheiro” da humanidade, muito daquilo que carrega mal estar, asco, muito temor e muito tremor, agressividade que ainda sequer conseguimos entender, mas é exatamente aí que se necessita do homem superior, o homem incomum, o homem do amanhã e do depois-do-amanhã (para usar expressão nietzschiana): “Onde tudo ainda está revirado e sem forma, aí está o nosso campo de trabalho para o futuro da humano” (p. 241, [16] verão-outono de 1884, 27(35)).

“Também heroico. – Realizar coisas de muito mau cheiro, das quais não se ousa falar, mas que são úteis e necessárias – isso também é heroico. Os gregos não se envergonharam de incluir entre os maiores trabalhos de Hércules a limpeza de um estábulo” (Aforismo 430, [9], Aurora) ou ainda: “Há muita sujeira no mundo: isso é verdade! Mas nem por isso o próprio mundo é uma monstruosa imundície”!” (p. 195, n. 14,[4]).

Todavia, isso não implica, por óbvio, que o defensor deva se contaminar pela “sujeira”: “É preciso já ser um mar para receber em si uma torrente suja sem ficar sujo” (p. 152, [2]).

(D)- “Não temos nenhum direito de viver hoje se não formos militantes, militantes que preparam um século vindouro, do qual podemos adivinhar alguma coisa em nós através de nossos melhores instantes: pois esses instantes afastam-nos do espírito de nosso tempo; em tais instantes sentimos algo dos tempos que virão”-(Nietzsche, Wagner em Bayereuth, p.27, [20] carta a Gersdorff).

Penso que o defensor penal deva ser um profissional da entrega plena: pelas consequências que explodem do seu atuar, está se exigir dele, sempre e sempre, o máximo possível, o seu limite extremo, a presença sempre no topo: o profissional que incorpore as dores do que for injusto, o eterno descontente, o sem-poder na proteção do sem-poder que sofre a perseguição do poder: o que resiste.

“A tais homens, que me importam de algum modo, não tenho nenhuma compaixão por eles, porque lhes desejo a única coisa que pode demonstrar hoje se alguém possui valor ou não – que ele resista …” (Fragmentos Póstumos, [21] vol. VI, p.423).

Uma militância, uma resistência, de tal forma agressiva que logre incorporar “verdades” que não “as verdades” do seu local de origem, ou seja, para além-de-si-mesmo, que permita sair de si e perceber que a sua luta, a luta por um valor justiça que negue o valor justiça da “sua casa”, que alcance a justiça daquele que sofre as consequências da justiça geradora de injustiça ao débil, pois a “A diferença entre o justo e o injusto é muito simples para aqueles que sofrem, mas ela é muito difícil para aqueles que cometem uma injustiça; o conceito do justo surge exatamente naquele que sofre” (Escritos Sobre Direito, em Nietzsche, [22] p. 69).

A militância do espírito livre nietzschiano: “É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo” (Humano, Demasiado Humano, [1] aforismo 225).

A militância interna (ou seja, atuação criativa dentro do processo penal) está a exigir a destruição do velho modelo que busca igualizar os desiguais, levando a se mirar o litígio desde o ponto de vista do poder, com a lógica da justiça do poder: o fazer presente uma fria legalidade com o custo  da especificidade do caso concreto, que é único e irrepetível na história da humanidade, merecendo, em consequência, julgamento também único e irrepetível, com aplicação da lei também de forma única e irrepetível: invenção interpretativa destinada a este caso único e irrepetível – “pois se é algo único e só se faz algo único”(A Vontade de Poder, [7] aforismo 926).

“Para ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la, aprová-la, confirmar seu valor, por um ato de interpretação restaurador, como se a lei não existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso. Cada exercício da justiça, como direito só pode ser justo se for um “julgamento novamente fresco”, por assim dizer” …”Cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codificada pode nem deve absolutamente garantir” (Derrida, A Força de Lei, [23] p. 44) .

Ou seja, há necessidade de agitar o debate judicial que faça com que o julgador se obrigue fugir do atuar meramente burocrático subsunçor, simplificador da complexidade, e isso de tal forma que até a obviedade deva ser colocada em pauta:

Não basta! – Não basta provar uma coisa, é preciso também mover ou elevar as pessoas até ela. Por isso, aquele que sabe deve aprender a dizer sua sabedoria: e, com frequência, de modo que ela soe como uma tolice!”. (Aurora, [9] aforismo 330).

Militância que encerre a coragem para denunciar publicamente os sofrimentos causados pelo poder, tanto no cumprimento, quanto no descumprimento da legalidade rasteira, buscando constranger os agentes do Estado descomprometidos com a dignidade da pessoa – repito: seja quem for, seja qual for o delito cometido – , negadores da sua própria razão de ser: “Falemos disso, ó sábios entre todos, embora seja desagradável. Silenciar é pior; todas as verdades silenciadas tornam-se venenosas” (Assim Falou Zaratustra, II, Da Superação de Si Mesmo, [4], p. 111).

Militância que jamais recuse a defesa, que não se omita, que não seja conivente com o poder – sempre disposto a cooptar aqueles que o criticam -, que lute enquanto houver possibilidade de luta: “É-lhe odioso, e até mesmo nojento, quem jamais quer se defender, quem engole escarros venenosos e olhares maus, o ser demasiado paciente, com tudo tolerante, com tudo satisfeito: pois isso é maneira de servo” (Assim Falou Zaratustra III”, [4] p. 182, Dos Três Males, n. 2).

Militância que escape galhardamente da bajulação ao poder, que preserve a dignidade e a independência a todo custo: “Ainda mais repugnantes me são os puxa-sacos; e o mais repugnante animal que encontrei entre os homens denominei parasita: esse não queria amar e, e no entanto, queria viver de amor” (Assim Falou Zaratustra III, [4] p. 185, do Espírito de Gravidade, 2).

Militância digna daqueles insatisfeitos, insuportavelmente insatisfeitos: sempre e sempre a exigir mais na direção da utópica vida digna para todos, absolutamente todos; que assumem o novo como ato de paixão; homens do amanhã e do depois-de-amanhã: “Nós, filhos do futuro, como poderíamos nos sentir em casa neste presente? Somos avessos a todos os ideais que poderiam levar alguém a sentir-se à vontade mesmo neste frágil e fraco tempo de transição; no que toca a suas realidades, porém, não acreditamos que tenham duração” (A Gaia Ciência, [24] aforismo 377).

Militância perigosa, mas que carrega toda a nobreza do homem superior, “Sim, conheço teu perigo. Por meu amor e por minha esperança, porém eu te suplico: não jogues fora teu amor e tua esperança! Ainda te sentes nobre, e nobre ainda te sentem os outros também, os que te guardam antipatia e te lançam olhares maus. Aprende que um nobre é um obstáculo no caminho de todos”.

“Mas por meu amor e minha esperança eu te suplico: não lances fora o herói que há em tua alma! Mantém sagrada a tua mais alta esperança!” (Assim Falou Zaratustra I, [4] . Da Árvore da Montanha, p. 43-44).

Fim 

“Aos mais fortes. – A vocês, espíritos mais fortes e orgulhosos, pede-se apenas uma coisa: não lancem um novo fardo sobre nós, mas tomem algo do nosso fardo para si, já que são os mais fortes! Vocês gostam de fazer o contrário, no entanto: pois vocês querem voar, e por isso devemos nós carregar o seu fardo, além do nosso: ou seja, devemos rastejar” (Aurora, [9] , aforismo 514). 

Fim? Nada a finalizar! Porém,

“- Esta nova tábua, ó meus irmãos, ponho acima de vós: tornai-vos duros!”, ensinou o filósofo do “Assim, Falou Zaratustra” ([4], p. 205), em torno do ano de 1884.

Porém, apenas em meados do século passado o aforismo logrou ser completado com galhardia por um revolucionário argentino que acrescentou ao “tornai-vos duros”, a expressão: “pero sin perder la ternura jamás”.

.

Amilton Bueno de Carvalho – abril de 2016.


Notas e Referências:

[1] Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, Companhia de Bolso, São Paulo, 2006.

[2] Nietzsche, Fragmentos do Espólio, Editora UNB, Brasília, 2002.

[3] Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, II, Companhia das Letras, São Paulo, 2008.

[4] Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Companhia das Letras, São Paulo, 2011.

[5] Nietzsche, Fragmentos Póstumos VII, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2012.

[6] Nietzsche, Além do Bem e do Mal, Companhia de Bolso, São Paulo, 2007.

[7] Nietzsche, A Vontade de Poder, Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2008.

[8] Mafessoli, Michel, O Instante Eterno, Editora Zouk, São Paulo, 2003.

[9] Nietzsche, Aurora, Companhia das Letras, São Paulo, 2004.

[10] Nietzsche, Aforismos, seleção Luis B. Pietrafesa, A la Mínima Renacimiento, Sevilla, 2013.

[11] Nietzsche, Fragmentos Finais, Editora UNB, Brasília, 2002.

[12] Carvalho, Amilton Bueno de, Direito Penal a Marteladas (Algo Sobre Nietzsche e o Direito), Editora Lumen Juris, Rio de janeiro, 2013.

[13] Nietzsche, O Anticristo, L&PM Editores, Porto Alegre, 2008.

[14] Nietzsche, A Filosofia na Era Trágica dos Gregos, L&PM Editores, Porto Alegre, 2011.

[15] Sloterdijk, Peter, O Quinto Evangelho de Nietzsche, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 2004.

[16] Nietzsche, Fragmentos do Espólio (primavera de 1884 a outono de 1885), Editora UNB, Brasília, 2008.

[17] Deleuze, Gilles, Nietzsche, Edições 70, Lisboa, 2009.

[18] Stegmaier, Werner, As Linhas Fundamentais do Pensamento de Nietzsche, Editora Vozes, Petrópolis, 2013.

[19] Jaspers, Karl, Introdução à Filosofia de Friedrich Nietzsche, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2015.

[20] Nietzsche, Wagner em Bayreuth, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2009.

[21] Nietzsche, Fragmentos Póstumos, VI, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro,2013.

[22] Nietzsche, Escritos Sobre Direito, seleção Noéli Correia de Melo Sobrinho, Edições Loyola, São Paulo, 2009.

[23] Derrida, Jacques, Força de Lei, Martins Fontes, São Paulo, 2007.

[24] Nietzsche, A Gaia Ciência, Companhia das Letras, São Paulo, 2009

 

Amilton Bueno de Carvalho é Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis (CESUSC). Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, da Associação dos Juízes para a Democracia e do Conselho Científico do Instituto Latinoamericano de Altos Estudos Colômbia. Professor Visitante em cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal. Autor e co-autor de diversos livros.

Compartilhar no Facebook Tweet Enviar por e-mail Imprimir
AGENDA
10 de julho (Brasília)
AGE
11 de julho (Senado)
Sessão Solene - 40 anos da ANADEP
13 de agosto (Brasília)
AGE
3 de setembro (Brasília)
AGE
1º de outubro (Brasília)
AGE
11 de novembro (Maranhão)
AGE
12 de novembro (Maranhão)
Reuniões das Comissões Temáticas e abertura do XVI CONADEP
12 a 15 de novembro (Maranhão)
XVI CONADEP
12 de dezembro (Brasília)
AGE
 
 
 
 
COMISSÕES
TEMÁTICAS
NOTAS
TÉCNICAS
Acompanhe o nosso trabalho legislativo
NOTAS
PÚBLICAS
ANADEP
EXPRESS
HISTÓRIAS DE
DEFENSOR (A)