O Estado-Defensor e sua missão enquanto Custos Vulnerabilis Constitucional: Um convite para reflexões
Maurílio Maia Casas Maia é defensor público no Amazonas
Maurilio Casas Maia
Defensor Público (DPE/AM) e Professor Universitário (UFAM). Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB). Pós-graduado em “Direito Público: Constitucional e Administrativo” e “Direitos Civil e Processual Civil”. Autor de diversos artigos publicados em periódicos e magazines jurídicos.
O Estado-Defensor – cuja missão constitucional laconicamente é estampada no artigo 134 e artigo 5º, LXXIV, da Constituição –, é ainda um poder público descoberto a cada dia pela população e pelos juristas. Os juristas de hoje – sejam eles professores, julgadores e membros de outras carreiras –, receberam formação desconhecedora das potencialidades do Estado-Defensor nos moldes propostos pela Constituição de 1988 e, sem dúvida, é esse elemento causador de polêmicos debates ainda carentes de resolução junto ao Supremo Tribunal Federal (legitimidade defensorial para ações coletivas e a necessidade de inscrição na OAB, por exemplo).
Os esforços pela compreensão da verdadeira natureza constitucional do Estado-Defensor são grandes e nem sempre contam com a boa vontade necessária para implementação da Carta Maior. Maio de 2014, aliás, foi um exemplo desse cenário.
O dia de 19 de maio – no qual se comemora o dia de Santo Ivo, advogado dos pobres –, é considerado o dia do Defensor Público, mas foi sucedido por notícia de decisão do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1192577), na qual se afastou a legitimidade do Estado-Defensor para defender consumidores de plano de saúde, pois – explicou o relator do julgado veiculado pelo STJ –, “[a]o optar por contratar plano particular de saúde, parece intuitivo que não se está diante de consumidor que possa ser considerado necessitado, a ponto de ser patrocinado, de forma coletiva, pela Defensoria Pública”. A decisão causa supresa na medida em que ignora os avanços doutrinários referentes ao conceito de vulnerabilidade como fonte de necessidades sociais e tratamentos diferenciados em nome da isonomia, também por olvidar a tendência de ampliação da legitimação ativa na 2ª onda de acesso à Justiça de Cappelletti e Garth (Justiça Transindividual) e a “cláusula legal de potencial benefício dos hipossuficientes” (LC n. 80/1994, art. 4º, VII) e ainda porque não “se lembrou” que centenas de brasileiros investem mais do que poderiam em planos de saúde a fim de fugir do Sistema Único de Saúde (SUS).
Já nas proximidades do fim do dia 20 de maio de 2014, veio então a notícia da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 4/2014, a qual mais tarde se tornou a Emenda Constitucional (EC) n. 80, de 4 de junho de 2014. Vitória do povo brasileiro e do Estado-Defensor, porquanto a referida emenda acentua tendência cada vez mais reforçada: Os agentes defensoriais são guardiões dos vulneráveis na sociedade ou, dito de outra forma, o Estado-Defensor é oCustos Vulnerabilis(“guardião dos vulneráveis” ou “fiscal da efetivação dos direitos dos vulneráveis”) na Constituição.
A doutrina e a jurisprudência brasileira ainda precisam descobrir o potencial constitucional do Estado-Defensor, enquanto Custos Vulnerabilis. Certo é que se no aspecto individual os termos “insuficência de recursos” e “necessitados” devem assumir conotação predominantemente (mas não exclusiva) econômica a fim de não sufocar a advocacia privada, no aspecto coletivo a amplitude das vulnerabilidades acarretadas pela insuficiência de recursos e necessidades humanas devem ser potencializada a fim de garantir acesso à Justiça transindividual de modo efetivo. A medida proposta evita fracionar a Justiça Coletiva em classes econômicas, distribuindo as coletividades a partir de classes entre o Ministério Público e o Estado-Defensor, situação essa potencialmente nociva para a legítima justiça em processos de conotação transindividual.
O Estado-Defensor e seus órgãos de atuação – os agentes defensoriais –, são indubitavelmente defensores dos vulneráveis na sociedade brasileira, de modo a tornar a Defensoria Pública brasileira única entre os países que possuem assistência jurídica ou judiciária gratuita. A Defensoria brasileira se destaca, principalmente após a EC n. 80/2014, por seu viés de atuação transindividual, atribuição defensorial ainda desconhecida em muitos países.
Em síntese, o Estado-Defensor é o guardião constitucional dos vulneráveis e dos direitos humanos, seja no plano individual ou no coletivo. A condição de Custos Vulnerabilis, todavia, ainda está sendo descoberta e merece estudo mais detido pela doutrina e avaliação respeitosa à Constituição pela jurisprudência. A vulnerabilidade decorrente das mais variadas necessidades humanas e da insuficiência de diversos tipos de recursos deve ser relida pelos juristas pátrios e, somente assim, será descoberto o verdadeiro potencial constitucional do Custos Vulnerabilis, conforme quis a Constituição da República Federativa do Brasil.
Referências
BARBOSA, Rafael V. M.; MAIA, Maurilio Casas. Isonomia dinâmica e vulnerabilidade no Direito Processual Civil.Revista de Processo. São Paulo, v. 230, 2014, p. 349-365.
CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
MAIA, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis Constitucional: O Estado Defensor entre o REsp 1.192.577-RS e a PEC 4/14. Revista Jurídica Consulex, n. 417, Brasília, p. 55-57, jun. 2014.
______. Quem defende as minorias vulneráveis? Perspectiva defensoriais, ministeriais e jurisdicionais à luz da tutela dos vulneráveis e das minorias. Seleções Jurídicas. Rio de Janeiro, mar. 2014, p. 17-19.
TARTUCE, Fernanda.Igualdade e vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.