Rogerio Schietti M. Cruz é Procurador de Justiça (DF), mestre e doutorando em Processo Penal (USP
A recente entrada em vigor da Lei nº 11.449/07 — que alterou o artigo 306 do CPP — supre antiga omissão do legislador brasileiro em prover a grande clientela da justiça criminal de assistência judiciária em momento de completa sujeição ao poder punitivo e cautelar do Estado.A mudança é positiva, sobretudo porque abranda a seletividade do sistema punitivo brasileiro, o qual, mais do que em outras terras, exala forte “cheiro de Direito Penal de classe”,(1) como parece resultar claro da leitura de duas dissertações de mestrado defendidas recentemente na Universidade de Brasília, ambas fruto de notável pesquisa. Na primeira delas, de autoria de Marina Grosner, analisaram-se 3.249 HCs e RHCs julgados pelo STJ, de 1989 até 2004, envolvendo “trancamento” de inquérito policial e de ação penal. Em uma das dezenas de conclusões constatou-se que, perante aquela corte, houve um número bem maior de writs impetrados por advogados constituídos do que por defensores públicos. No outro estudo, realizado por Fabiana Oliveira a partir de dados coletados na Justiça Criminal de algumas capitais brasileiras, entre os anos de 2000 e 2004, demonstrou-se que os réus representados por advogado particular saíram mais cedo da prisão se comparados aos que foram patrocinados pela defesa pública,(2) o que parece confirmar a boutade existente no foro criminal, de que “o advogado do réu pobre é o juiz”.No tocante ao tema da assistência jurídica ao preso, vale lembrar que até bem pouco tempo chegava-se a admitir a realização de interrogatório judicial sem a presença de advogado. “E isso porque — como ironicamente mencionado por Adauto Suannes — a Constituição diz que o advogado é indispensável. Imagine-se se ela dissesse ser ele dispensável!”.(3) A despeito do mérito da nova lei, continua-se a admitir o interrogatório do preso, em Delegacia de Polícia, sem a presença de um profissional do Direito.Daí porque se mostra elogiável a intenção, manifesta na Justificativa do PL que deu origem à nova lei, de “conferir maior celeridade à defesa do preso, assegurando-lhe, destarte, o regular exercício dos direitos subjetivos constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
A rápida atuação da Defensoria, nos casos de réu preso, possibilitará ao acusado, logo na fase investigatória, ter conhecimento claro da imputação, poder apresentar alegações contra a acusação, poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova, ter defesa técnica elaborada por advogado, cuja função, aliás, é essencial à Administração da Justiça e poder recorrer da decisão que decretou a prisão.”Com esse norte, reproduz-se na nova cabeça do artigo 306 do CPP a letra do artigo 5º, LXII, da Constituição da República, determinando-se a comunicação da prisão e do local em que a pessoa presa se encontre ao juiz competente e à família ou a pessoa por ela indicada. Saliente-se que a comunicação — que pode, a meu juízo, ser efetivada por diversos meios (telefone, fax, e-mail ou qualquer outra forma idônea a dar notícia do ato) — deve ser imediata, a fim de que todos tenham notícia do paradeiro de determinada pessoa e sob que condição ela se encontra em uma delegacia. A novidade mais importante está na parte final da redação dada ao § 1º do mesmo dispositivo, onde se determina o encaminhamento — até 24 horas contadas da prisão — do auto de prisão em flagrante não só ao juiz competente (e ao Ministério Público, ex vi art. 10 da LC nº 75/93), como também à Defensoria Pública, “caso o autuado não informe o nome de seu advogado”.Sem embargo, a novel legislação, embora mostrando inaudita preocupação com o preso economicamente desfavorecido, poderia ter avançado um pouco mais e exigir duas outras providências por ocasião desse momento de substancial importância para o desenvolvimento da persecução penal e para o destino da pessoa presa.Primeiramente, para efetivamente cumprir a Constituição — quando assegura ao preso “a assistência da família e de advogado” (art. 5º, LXIII) — seria mister não apenas o encaminhamento do auto de prisão em flagrante ao defensor público, mas a obrigatoriedade de manterem-se profissionais do Direito disponíveis para prestar assistência jurídica ao preso antes mesmo da lavratura do auto de prisão em flagrante e, principalmente, antes de ser formalmente interrogado. A medida permitiria ao indivíduo privado de sua liberdade contar com a indispensável orientação sobre seus direitos e deveres, bem assim lhe protegeria a integridade física e moral, servindo como instrumento de controle da legalidade e da correção policial, no trato do encarcerado.
Outra providência correlata que poderia ter sido albergada pelo legislador diz respeito ao direito do preso de ser “conduzido sem demora à presença de um juiz”, conforme já incorporado ao sistema normativo brasileiro (Decreto nº 678/92, o qual reproduz a Convenção Americana sobre Direitos Humanos), circunstância que, todavia, não torna írrita norma similar mais explícita e detalhada, constante de diploma legal com maior carga de aceitação, o Código de Processo Penal. A relevância da medida é manifesta, visto que o indivíduo preso permanece nessa condição por vários dias — quase sempre sem contar com a assistência de um profissional do Direito — até que se conclua o inquérito policial, se ofereça denúncia e seja ele judicialmente interrogado. Na hipótese de prisão temporária, a situação é muito pior, porquanto a Lei nº 7.960/89 prevê a possibilidade de perdurar a custódia por até 60 dias, sem prejuízo da substituição do título da prisão ante tempus. Além do prejuízo que essa longa demora em ter a assistência de um advogado ou defensor público acarreta para a defesa do futuro acusado, a longa demora de ser conduzido à presença do juiz faz desaparecer eventuais vestígios de outra grande chaga nacional, a tortura, que certamente é inibida se o policial sabe que o preso, horas após a prisão, vai avistar-se com um juiz de Direito. Essas duas providências — (1) assistência efetiva de advogado, em regime de plantão, nas delegacias de polícia e (2) condução, sem demora, do preso à presença do magistrado (o próprio juiz plantonista) — foram sugeridas, por ofício da Procuradoria-Geral de Justiça do MPDFT à Presidência do Tribunal de Justiça, à OAB e à Defensoria Pública do Distrito Federal, em novembro de 2004, e, posteriormente, aos órgãos congêneres de outras unidades federativas, na expectativa de que, mesmo sem a edição de nova lei, sejam tais medidas implementadas, por meio dos instrumentos legais já disponíveis e suficientes, otimizando a racionalidade e a dignidade da justiça criminal. Afinal, “se boas são as leis, melhor o bom uso delas” (Antônio Ferreira).
Notas(1) Lênio Streck. “A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico”, Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 97, março/2005, p. 180.(2) Outras conclusões a que chegaram ambas as pesquisas são referidas em Rogerio Schietti M. Cruz (Prisão Cautelar: Dramas, Princípios e Alternativas, RJ: Lumen Juris, 2006). (3) Aduato Suannes. “O ativismo judicial”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 7, nº 27, jul-set 1999, p. 349.Rogerio Schietti M. CruzProcurador de Justiça (DF), mestre e doutorando em Processo Penal (USP)