A Defensoria Pública e sua autonomia Constitucional
Ana Cláudia da Silva Alexandre é Defensora Pública-Geral em exercício de Minas Gerais .
A Defensoria Pública, instituição essencial e permanente incumbida de promover os direitos humanos e a defesa, integral e gratuita, dos necessitados, foi concebida com um propósito claro: tornar efetivos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, entre eles a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a ampla defesa, corrigindo uma distorção social histórica que privou de participação política as denominadas minorias (pobres, mulheres, idosos, crianças, portadores de deficiência, consumidores, entre outros).
Inexiste Estado democrático sem fomento estatal de igualdade de oportunidades e o constituinte federal, ciente da relevância da Defensoria no atual contexto de desenvolvimento nacional, a ela atribuiu, pela Emenda Constitucional 45/04, autonomia funcional, administrativa e orçamentária. A instituição, por força de norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, deixou de ser simples órgão auxiliar do governo. Passou à condição de órgão constitucional independente, sem qualquer subordinação ao Poder Executivo.
A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro já ensinava que “autonomia, de autós (próprio) e nómos (lei), significa o poder de editar as próprias leis, sem subordinação a outras normas que não as da própria Constituição; nesse sentido, só existe autonomia onde haja descentralização política”. Há, portanto, a Lei Complementar 80/94, bem como as leis complementares que materializam, no âmbito dos estados-membros, as normas constitucionais e federais inerentes à Defensoria Pública (em Minas Gerais, a LC 65/03, em seu artigo 7º, ratifica o mecanismo de escolha do chefe da instituição previsto na lei federal).
Frisamos que a Constituição mineira, além de reconhecer expressamente a autonomia da instituição (artigo 129), em simetria com a Carta da República de 1988, também prevê, em seu texto original, de 1989, que “o defensor público geral da Defensoria Pública será nomeado pelo governador do Estado, escolhido entre três defensores públicos de classe final, indicados em lista tríplice pelos integrantes da carreira, para mandato de dois anos, permitida uma recondução”.
Tendo a Defensoria Pública papel inequívoco, autonomia constitucional e regramento legal próprio (que a distingue como modelo público de assistência jurídica), tanto na esfera federal quanto na estadual, é natural que o sistema de escolha do chefe da instituição guarde estreita relação com a própria independência prescrita pela Constituição Federal. Caso contrário, a autonomia seria ilusória.
Em artigo publicado recentemente neste caderno, um articulista fez menção ao método de escolha dos procuradores-gerais do estado, tomando-o como modelo aplicável. Ele ignorou um traço distintivo fundamental entre as duas instituições (Defensoria Pública Estadual e Advocacia-Geral do Estado): a subordinação ao Executivo, que não se aplica à Defensoria Estadual. Para ilustrar nosso argumento, basta ler o artigo 128 da Constituição de Minas, que prescreve: “A Advocacia-Geral do Estado, subordinada ao governador do Estado, representa o Estado judicial e extrajudicialmente (...).” Não se concebe, dessa feita, que o Executivo estadual possa escolher o chefe da Defensoria Pública ou definir seu método de escolha em detrimento das normas que regem o funcionamento do órgão independente.
E ainda, defender a tese de que qualquer um do povo pode ocupar o cargo de defensor público geral e porventura participar da sua eleição, soa ainda mais inconsistente. E argumentos não faltam para demonstrar o equívoco: em primeiro lugar, chefiar a Defensoria Pública, assim como o Ministério Público e a magistratura, exige capacidade técnica específica e amplo conhecimento dos meandros institucionais. Em segundo lugar, tal capacidade é aferida mediante concurso público de provas e títulos, obrigatório para que se ocupe o cargo de defensor público (CF/88, artigo 134, §1º). Em terceiro lugar, autarquia tem tão só autonomia administrativa e sofre, ao contrário da Defensoria, controle finalístico pelo respectivo ente federativo (tutela administrativa). Por último, a cláusula constitucional pétrea que prevê o voto direto, secreto, universal e periódico (artigo 60, §4º, II, da CF/88) dispõe sobre o mecanismo de sufrágio para preenchimento dos cargos eletivos, no âmbito do Legislativo e do Executivo. E nenhuma ilegalidade resulta desta opção política do Estado brasileiro.
A questão abordada pelo articulista não é nova. Foi apreciada em 2005 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento da ADI 2.903, restando consignado que “os estados-membros e o Distrito Federal não podem, mediante legislação autônoma, agindo ultra-vires, transgredir a legislação fundamental ou os princípios que a União Federal fez editar no desempenho legítimo de sua competência constitucional e de cujo exercício deriva o poder de fixar, validamente, diretrizes e bases gerais pertinentes a determinada matéria ou a certa instituição, como a organização e a estruturação, no plano local, da Defensoria Pública”. Naquela altura, o ministro Celso de Mello ainda deixou claro que a figura do defensor público geral não equivale à de secretário de Estado, gozando o primeiro de autonomia e estabilidade não extensíveis ao segundo, sendo ambos dotados de perfis jurídico-administrativos rigorosamente distintos.
Ao cabo, lembramos que neste ano, o STF julgou a ADI 4.056 e, na mesma esteira de raciocínio, declarou inconstitucional lei maranhense que equiparava o chefe da instituição a secretário de Estado, sob comando do governador. O relator, ministro Ricardo Lewandowski, além de frisar a autonomia constitucional da Defensoria Pública, fez expressa alusão à impossibilidade jurídica de subordinar o órgão público independente a comando do Executivo estadual. Assim sendo, não se há falar em inconstitucionalidade do artigo 99 da Lei Complementar Federal 80/94.






