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11/07/2008

A Conta! (Vidas Paralelas) - Editorial de Fernando Calmon

Fonte: ANADEP
Estado: DF

Prezado(as) colegas,

Essa semana (07/07/08) foi votado e aprovado o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados da denominada CPI do Sistema Carcerário. Foram oito meses de investigação parlamentar em mais de 60 estabelecimentos prisionais de 18 Estados, que produziu muitas oitivas, documentos, fotos e filmes. A CPI que começou desacreditada terminou os trabalhos com grande repercussão na mídia e interesse da opinião pública.

O que se viu e se ouviu foi de fato impressionante. Quando se quer realmente ver não é difícil constatar o óbvio. Os parlamentares integrantes da CPI procuraram, e sem muita dificuldade, encontraram a única constatação possível: vivemos há anos junto ao caos; junto a vidas paralelas, esquecidas e escondidas debaixo do tapete que oportunamente usamos para ocultar toda essa podridão.

A CPI produziu um documentário que traduz a lógica do absurdo, de como a nossa sociedade perdeu a noção do razoável, permitindo a existência de seres humanos vivendo em condições degradantes, muitas vezes indescritíveis, como se bastassem muros para suprimir a nossa possibilidade de se indignar, de fingir indiferença, de negar a realidade.

Somos uma sociedade permissiva, por isso é contundente saber da existência de vidas paralelas. É um choque de realidade que optamos por ignorar durante anos. O que os olhos não vêem é mais fácil não sentirmos, não assimilarmos. Talvez seja um recurso de sobrevivência, para continuar convivendo com as nossas limitações, produzidas por um mundo idealizado e perfeito.

Tudo o que foi apurado, no entanto, não é novidade. Em termos de investigação parlamentar, em 1975, uma outra CPI – relatada pelo Deputado Ibrahim Abi Ackel – concluiu em linhas gerais as mesmas obviedades. Ou seja, a nossa sociedade teve a oportunidade, há mais de trinta anos, de iniciar um debate e amadurecer uma solução, sem a utilização do contumaz recurso do tapete. Optamos, entretanto, pela indiferença, como se os problemas fossem ser resolvidos por si só atrás de muros.

Qual seria então a novidade trazida nessa nova investigação? A conta! A CPI responsabilizou criminalmente pelo descaso, pela permissividade, pela omissão e desídia, 31 autoridades, dentre as quais 06 Defensores Públicos. Assim, agora e oficialmente, também somos autoridades responsáveis por todo o caos e mazelas do sistema, o qual temos o dever funcional de combater, utilizando todos os recursos existentes, inclusive a denúncia do Estado violador ao sistema interamericano de Direitos Humanos.

Em outras palavras, a responsabilização dos 06 colegas significa a conta que a sociedade está nos apresentando por não termos sido – no entender do que foi aprovado pela CPI – diligentes com as nossas funções institucionais, especialmente a de assegurarmos assistência jurídica integral aqueles que não tem mais o direito de ir e vir, porquanto prisioneiros do falido sistema carcerário.

A conta apresentada também significa que para a sociedade não faz mais diferença se somos menos estruturados, menos numerosos ou menos pagos que os juízes e promotores. Para a sociedade, conforme expresso no Relatório aprovado, o que temos, quantos somos e quanto ganhamos já é o suficiente para pagarmos também a conta da desídia, a que foi relegado há anos o sistema prisional.

Isso é grave e inusitado. Revela uma tendência há pouco identificada de estender essa conta para todas as nossas áreas de atuação institucional.  Talvez a execução penal seja apenas a nossa face mais visível no momento, o que nos obriga a meditar e nos preocupar com os nossos passos no futuro.

É muito importante um direcionamento político institucional do CONDEGE - como órgão responsável por determinar a política de atendimento da Instituição em nível nacional - para que possamos, com urgência, abraçar essa prioridade, resgatando o nosso débito com a sociedade, evitando-se que mais colegas, no futuro, possam ser novamente responsabilizados.

Mal começamos a viver a nossa maioridade institucional. Somos recém chegados no mundo da autonomia administrativa – isto é, quando já chegamos (o que não demonstra a realidade experimentada ainda, infelizmente, em vários Estados), e, taxativamente, já nos foi apresentada uma conta!

Institucionalmente temos que iniciar um grande debate nacional e fortalecer o direcionamento de nossa atuação, de forma objetiva, para produzirmos resultados com qualidade, eficiência e compromisso teleológico.

Não há como não nos solidarizarmos com os colegas responsabilizados. Se a conta a todos nós é imposta institucionalmente, somente a eles recaem o ônus pessoal. São os primeiros a sentir o golpe. Podem não ser os únicos. Não podemos perder a nossa capacidade nos indignar diante de tantas mazelas. Necessitamos assumir de vez, que conseqüências como essas poderão, novamente, recair sobre qualquer um.

Por certo que há muito exagero diante alegações inusitadas e insustentáveis que embasaram as imputações típicas no Relatório. Imputações, inclusive, que na ausência de embasamento jurídico mais apurado, se revela como de responsabilidade objetiva, fato, obviamente, inaceitável no campo penal. A precipitação, devido à ausência do sagrado contraditório, expõe fragilidade na acusação, no mais amparada, muitas vezes, por suposições e desconhecimento do nosso trabalho diuturno.

No entanto, diante do óbvio, alguém precisava prestar conta à sociedade.

Nós lutamos para sermos reconhecidos como agentes políticos do Estado. Nessa perspectiva, poderíamos de alguma forma ter contribuído mais para minorar o sofrimento dos habitantes dessa vida paralela.

Há que se ressaltar a grande qualidade e o reconhecimento do trabalho de diversos colegas que diariamente se engajam nas transformações sociais que somos protagonistas no sistema de execução penal. Apesar disso, o conjunto de nossa obra ainda não se mostrou suficientemente reconhecido pela sociedade, para que, diante do caos apurado, pudéssemos ser mais compreendidos.

A solução, mais uma vez, não é negar o que deixamos de fazer, mas assumir uma postura crítica e pró-ativa, encontrando a resposta de que até que ponto estamos realmente atendendo os anseios da sociedade.

Só para exemplificar a gravidade do momento que atravessamos, foi juntado à CPI cerca de 700 ações propostas pela Defensoria Pública responsabilizando o Estado pelo caos verificado no seu sistema prisional. Todavia, apesar da reação da Instituição, esse fato não foi suficiente para afastar a responsabilização de colegas que oficiavam no Núcleo de Execução Penal.

Foi a primeira vez que vimos autoridades de um Estado se vangloriar que a Defensoria Pública trabalha muito bem na defesa do cidadão hipossuficiente, propondo ações em desfavor do próprio Estado, para provar uma atitude que teria tomado para minorar os graves efeitos da situação carcerária encontrada.

Ou seja, o próprio Estado, através de seus agentes, se defendeu na CPI dizendo que foi diligente, por meio da Defensoria Pública – ao propor 700 ações – justificando sua desídia com as verdadeiras vítimas do sistema. Não se trata desse ou daquele Governo, mas do Estado regularmente constituído. Exagero ou contradição à parte, esse fato fala por si.

Em resumo, não mais podemos negar que a conta decorrente do cenário político-institucional que a Defensoria Pública ocupa hoje junto à sociedade. É muito sintomático constatar que ao se verificar a responsabilidade do juiz ou do promotor, agora existe a patente responsabilidade do defensor público.

Pode-se de tudo o que ocorreu fazer várias leituras, inclusive pedagógica. O certo, no entanto, é que a cada dia que crescemos institucionalmente renovam-se e ampliam-se nossas responsabilidades. Avançando muito, ocupamos corretamente espaços políticos dos quais resultaram a assunção de novos meios que nos permitem agir, como no caso das ações civis públicas. Neste contexto, não haverá mais escusas para omissões.

Depois de tudo isso não poderemos mais nos esconder do sol que revela a chocante realidade dessas vidas paralelas, mesmo quando distanciadas por muros. A conta já nos foi apresentada. A reflexão é inevitável.

Um abraço, 

Fernando Calmon
Presidente da ANADEP

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