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19/07/2019

CE: Série Mundo de Direitos Cap. 6: liberdade restringida sem quebra de nenhum direito humano

Fonte: ASCOM/DPE-CE
Estado: CE
“O sistema de Justiça e segurança pública no Brasil tem sido historicamente marcado por uma distribuição seletiva da Justiça e da impunidade”. A afirmação é do diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque, que refletiu o encarceramento em massa e desproporcional: o País tem a terceira maior população carcerária do mundo – 812 mil presos. No Ceará, a realidade espelha a situação nacional: em maio de 2019, a população carcerária efetivamente recolhida era de 24.814 custodiados, conforme relatório da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Ceará (SAP). Diante desta realidade, como assegurar direitos a partir do fenômeno da superpopulação carcerária brasileira? Onde encontrar direitos humanos nas celas das unidades prisionais?
 
Em seu artigo 11, a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz preceitos básicos relativos às pessoas que, porventura, cometeram alguma infração: Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. Isso significa que o direito à pena justa, à ampla defesa e à presunção de inocência devem ser respeitados, sobretudo em países que têm legislação inspirada no tratado internacional da Organização das Nações Unidas (ONU), como é o caso da Constituição Brasileira. “Os direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal, continuam válidos para todos, inclusive os privados de liberdade por acusações de um delito ou cumprimento de pena, portanto, o acesso à saúde, à educação, ao trabalho e a convivência social (recebimento de visitas), por exemplo, precisam ser assegurados pelo Estado. É a efetivação dessas garantias onde reside a essência dos direitos humanos e o princípio da igualdade para todos”, afirma Patrícia Sá Leitão, supervisora das Defensorias Criminais.
 
Em Aquiraz, o Centro de Detenção Provisória (CDP) foi inaugurado em junho de 2018, com intuito de esvaziar as carceragens das delegacias de Fortaleza. Apesar das tentativas de ser um contraponto – uma unidade mais nova, com tecnologia mais avançada e humanizada – o CDP registra os mesmos problemas que atingem o sistema prisional cearense como um todo: a superlotação. São 1.022 presos – 90% deles são provisórios – em espaço que foi construído para comportar 568 detentos. “A superlotação é algo que impede os direitos fundamentais. O espaço físico é fundamental para o aspecto psicológico da pessoa. Você não consegue aguentar uma superlotação, em um espaço físico convivendo com até 30 homens. Humanamente, isso vai destruindo o indivíduo, que precisa de espaço físico para fazer atividades, pensar, refletir”, pontua o defensor público Emerson Castelo Branco, titular do Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência (Nuapp).
 
O cenário cearense repete-se nas grandes unidades da Região Metropolitana e Cariri, todas em média com 150% acima da capacidade máxima. Os defensores apontam que essa situação foi agravada por decisões da Secretaria da Administração Penitenciária sobre a gestão das unidades prisionais no Estado. Em janeiro e fevereiro deste ano, uma série de cadeias públicas que funcionavam de forma precária foram fechadas e os presos remanejados para as grandes unidades prisionais da Região Metropolitana de Fortaleza, a Penitenciária de Sobral e a Penitenciária do Cariri, causando um hiperencarceramento e atraso processual visto que presos foram transferidos e os seus atos processuais ainda não.
 
“Todos foram pegos de surpresa, os internos, os agentes, as famílias e até mesmo os órgãos que atuam na execução penal foram obrigados a se adaptar, sem nenhum diálogo ou disposição no sentido de preservar os direitos fundamentais das pessoas encarceradas ou mesmo o andamento processual e direito a defesa”, destacou Ação Civil Pública assinada pelo defensor público Igor Barreto, titular da Execução Penal em Sobral. Na ACP, que aguarda movimentação da Justiça, a Defensoria pede reparação de danos e a interdição parcial das unidades para que estabeleça um limite na capacidade. “Precisamos estabelecer um limite para essas irregularidades, não se trata somente de fechar a unidade, a intenção é que sejam reconhecidas as ilegalidades das transferências para que coloque um limite na superlotação”, reforça o defensor público.
 
Vida partida: aqui dentro e lá fora – Aguardando atendimento jurídico na unidade prisional, o interno P.L.J. busca informações sobre o seu processo, que tramita no interior do Estado. Ele conta fazer parte de uma facção criminosa e que, por conta da rivalidade entre os grupos, têm receio pela própria vida. “Mataram minha esposa quando me procuraram em casa, inclusive não consigo dormir lembrando dela diariamente. Se eu voltar para cumprir pena lá vão me matar também”. Ele pediu para ser atendido pela psicóloga da unidade. Sabe que o ato criminoso que cometeu transformou muitas vidas e, não se engane, os efeitos da criminalidade repercutem em consequências emocionais, físicas, financeiras e psicológicas para ele e todo seu núcleo familiar. No entanto, as penas a serem impostas pela infração são as estabelecidas pelas legislações competentes, jamais punições como castigo, tortura ou vingança.
 
P.L.J. é um preso provisório. Um entre os 16 mil provisórios que somam 64% do total da população carcerária do Ceará, um dos maiores índices do País. A angústia dele é legítima: ele foi acusado de um delito e não sabe nada sobre o tempo. Nem quantos dias, nem se será considerado culpado e muito menos o tempo que terá que cumprir a pena até sair. “São pessoas angustiadas para saber como ficará sua situação. Em média, em 90 dias deveria sair uma decisão final, o que não acontece. Os problemas decorrentes disso são diversos e complexos. Nós precisamos garantir estrutura dentro da máquina do sistema penal de justiça que possa garantir celeridade dos processos”, defende Emerson Castelo Branco.
 
Em uma sala da Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto (CPPL 3), em Itaitinga, o defensor público Delano Benevides atua prestando atendimento aos internos. “Quando as pessoas estão respondendo a um processo, elas são presumidamente inocentes. Partimos do princípio que toda pessoa que esteja presa, mesmo por crime grave, tem que ser julgada em um prazo razoável, pois o tempo é uma medida de justiça: ou é condenado ou é absolvido. O problema é que esse tempo é relativizado, porque o Judiciário não consegue dar uma resposta positiva nos prazos legais. Isso provoca a explosão da população carcerária. Aqui nós temos situações aberrantes de pessoas que estão esperando julgamento há dois anos, o que não é aceitável e, nestes casos, a prisão se torna ilegal”.
 
O interno F.H.L. é o próximo na fila para o atendimento. Estava preso desde julho de 2018, após ser pego com três gramas de maconha. “É um perfil comum aqui, a pessoa estar presa por ter portado uma pequena quantidade de droga”, enumera o defensor, que aponta o porte ilegal de arma de fogo e de drogas para mais de 90% dos casos atendidos na unidade prisional. Durante o atendimento, ele adverte o preso: “Aconselho, do ponto de vista jurídico, que você não porte mais droga. A pena para tráfico de drogas é de 5 a 15 anos de reclusão. A minha função não é só falar de como está o seu processo, mas orientar daqui pra frente”. Rapidamente, F.H.L. rebate: “Dr., eu tenho filho, não quero mais saber disso, não”, lamenta.
 
Para o defensor Delano Benevides é preciso ver alternativas ao que chamou de cultura do encarceramento. “Já acompanhei caso de preso por furto de lata de leite. Fiz audiência de custódia de uma pessoa presa por furto de pneu de bicicleta. O problema não é só jurídico, é também filosófico e cultural, gerando uma cultura de encarceramento”, aponta. A todos os presos do atendimento, o defensor pede um contato de alguém da família. “Entramos em contato com a família para pedir certidão de antecedentes, documentos pessoais, carteira de trabalho, comprovante de endereço, para provar que ele tem residência fixa e não vai fugir. Demonstrar em juízo, através dos documentos, que ele pode responder em liberdade”. Na maioria das vezes, os presos fornecem o contato das mães, evidenciando o contexto social e familiar.
 
Apesar da superlotação, a unidade dispõe de outros espaços que tentam assegurar os direitos de quem teve apenas a liberdade interrompida. Salas de aula, com aulas em dois turnos, e uma biblioteca estão abertas para quem quer encontrar oportunidade na educação. A participação em cursos e hábitos de leitura também implicam em remissão de pena. Além disso, segundo a direção, os presos também contam com assistência médica. Acompanhamos a entrega de certificados a detentos que haviam participado de um curso de pintura dentro da unidade. Para L.D.S., preso condenado que cumpre pena há quatro anos, a experiência deu nova perspectiva. “Foi interessante, independente da origem da pessoa. Hoje estamos aqui, amanhã tentaremos reconstruir nossas vidas fora. Querendo ou não foi uma ressocialização”, diz.
 
Perguntado sobre estão os direitos humanos nas prisões, o defensor é taxativo. “Na verdade, há um desconhecimento por parte do Estado e até de alguns setores da sociedade. Veem direitos humanos como uma coisa pejorativa, quando na verdade são direitos que são garantias à espécie humana. O desconhecimento gera a dificuldade de efetivar esses direitos”, alerta.
 
Onde falta defesa, sobra injustiça – Atualmente, a Defensoria Pública está presente em 45 municípios do território cearense, e a falta de defensor público prejudica o amplo acesso à defesa. Atualmente, há 148 cargas vagos aguardando convocação de defensores aprovados em concurso no Estado. Segundo a defensora pública  Patrícia de Sá Leitão, a importância da defesa está nesta possibilidade de olhar a situação de forma singular e individual e evitar injustiças. “Assim como existem pessoas que são culpadas e devem ser responsabilizadas criminalmente, dentro dos limites da lei, existem pessoas que são injustamente acusadas. O exercício do direito de defesa é a oportunidade para trazer essa verdade aos autos, assegurando que seja feita a justiça. A defesa técnica, por parte da Defensoria Pública, assegura que os culpados sejam punidos de forma justa, e os inocentes seja absolvidos da acusação indevida”, afirma.
 
De acordo com o Diagnóstico do Ministério da Justiça de 2015, o ideal para o cenário brasileiro seria a existência de um defensor público para cada grupo de 15 mil pessoas. Nacionalmente, o déficit atual é de pelo menos 6 mil defensores. De acordo com a defensora geral do Estado, Mariana Lobo, garantir o acesso à justiça de forma ampla e igualitária é um grande desafio. “Precisamos legitimar o acesso à justiça para as pessoas mais pobres e isso só é possível com a ampliação da capilaridade de atuação da Defensoria. A Constituição determina, através da Emenda Constitucional 80, que o País precisa ter defensores públicos em todas os municípios. No Ceará, só estamos em 25% do território, e isso é sentido no dia a dia dos que mais precisam”. O Ceará tem hoje 314 defensores públicos, que usam o conhecimento das leis, dos instrumentos extrajudiciais e a vocação para ouvir para levar garantias e direitos aos menos favorecidos.
 
A situação do interior cearense contraria o que estabelece a Emenda Constitucional 80/2014, que diz que o Estado deve prover, até 2022, defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais (art. 98, §1º, CF/88). “Quando não há defensor público na comarca, o contraditório fica prejudicado para as pessoas pobres. Assim, há grande risco da pessoa acusada ser justamente condenada ou passar preso mais tempo do que a lei determina, trazendo grande prejuízo para a vida dessas pessoas e ônus também ao Estado. A Defensoria Pública é um elo fundamental entre a sociedade e o Estado na promoção do acesso à justiça”, afirma Patrícia Sá Leitão.
 
Encarceramento feminino – A busca pela efetivação do direito à pena justa também é uma realidade entre presas mulheres. Em Aquiraz, está o Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa (IPF), única penitenciária para o gênero no estado. O local tem capacidade para 374 detentas, mas em maio demonstrava o pior excedente entre todas as unidades: 1.082 mulheres presas, quase 200% a mais que a capacidade.
 
Por lá, além do acompanhamento dos processos, a Defensoria Pública enfrenta ainda outra situação envolvendo presas gestantes ou com filhos. Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, através do Habeas Corpus Coletivo n. 143.641, que detentas grávidas ou mães de crianças de até 12 anos ou com algum tipo de deficiência e que respondam por crimes sem violência ou grave ameaça têm direito a cumprir prisão domiciliar até que ocorra o julgamento. Apesar do entendimento da Corte Superior, muitas mulheres aguardam no cárcere e muitos filhos esperam suas mães. No IPF, cerca de 30% das presas provisórias estão neste perfil do HC Coletivo. “Isso ocorre especialmente em razão de três empecilhos: falta de documentos que comprovem a maternidade; demora, por parte dos juízes, em analisar os pedidos de prisão domiciliar feitos pela defesa; e aplicação de excepcionalidades pelos juízes para justificar a manutenção do encarceramento”, explica a defensora pública Noêmia Landim. E a demora na concessão de habeas corpus também traz reflexos para a vida dos filhos. “Na medida em que se nega o direito a um benefício reconhecido pelo STF, prejudicam-se crianças que deixam de estar sob os cuidados da mãe e ficam abandonadas à própria sorte, na companhia de vizinhos, em abrigos ou nas ruas, fato que lhes prejudica o pleno desenvolvimento físico e mental”, pontua.
 
Quem espera o filho no ventre ou já o tem nos braços é transferida para a creche Irmã Marta, uma extensão do presídio feminino, em um prédio anexo às vivências comuns. Quatro agentes penitenciárias vistoriam a entrada. Na parte de dentro, estão vários quartos onde mães e filhos aguardam decisões judiciais. As paredes, portas e janelas têm cor suave, leve como o ambiente, que tem um pequeno parque de diversões para crianças. Segundo a direção, a mudança para Creche pode acontecer a partir do sexto mês de gestação até o nono mês, dependendo da disponibilidade, para dar assistência ao parto. Com a superlotação, a direção admite prejuízo na garantia de direitos das presas. “Nós procuramos dar o máximo possível de assistência. Dentro da nossa possibilidade e disponibilidade, temos o médico clínico geral, a psicóloga, a ginecologista que faz acompanhamento das internas e gestantes”, argumenta.
 
Ao lado do filho de oito meses, C.S.T., de 38 anos, veio do interior. Lamenta estar naquela condição: “o mundo do crime é uma ilusão. Só quero sair daqui e que meu filho seja uma pessoa de bem”, projeta.  Questionada se conhece a as palavras direitos humanos, C.S.T diz, encabulada, que “não exatamente”, mas arrisca o palpite. “É ajeitar tudo e colocar no seu devido lugar, para todas as pessoas”.
 
Dia de visita - Às margens da BR-116, logo de longe era possível perceber centenas de pessoas vestidas de forma semelhante. Eram mulheres, homens e algumas crianças usando calça cinza, blusa e chinelos brancos. Eles aguardavam o horário para visitar os parentes que estão presos na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto (CPPL II), em Itaitinga. No último 16 de junho, a Defensoria Pública do Estado do Ceará acompanhou uma manhã de visitas de parentes aos internos, após a emissão de portarias da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) regulamentando o acesso aos presídios do Estado. Participaram da atividade os defensores públicos Eduardo Villaça, Elizabeth Chagas, Gina Kerly Moura e Mayara Mendes, com o objetivo de dialogar com mães, mulheres e filhas de internos do sistema prisional da RMF.
 
As portarias de números 9, 141, 142 e 154 estabeleceram novas regras para entrada de alimentos, material de higiene pessoal e a divisão de grupos de visitas a cada 15 dias. A padronização das roupas para entrar nas unidades prisionais não consta em nenhuma dessas portarias, e , de acordo com os defensores públicos que acompanharam a ação, é uma medida  desproporcional e foi alvo de muitas reclamações. “Estamos sendo padronizados pelo sistema. Todo mundo que vê a gente saindo de casa vestido assim já sabe que é para visitar parente no presídio. Corremos até risco de vida, porque tudo agora é dividido por facção. Aí fica difícil a gente passar por outros bairros da cidade. Eu venho com outra roupa por cima dessa pra evitar qualquer tipo de violência”, desabafou uma cuidadora de idosos, que visitava o filho preso.
 
A situação de violação de vários direitos fundamentais vem sendo apontada pelos defensores públicos estaduais durante as inspeções e atendimentos realizados e são compilados em relatórios temáticos por unidade que são encaminhados à administração penitenciária. A SAP tem recebido individualmente o diagnóstico de cada unidade prisional e as recomendações para providências de irregularidades ou correção de possíveis violações de direitos. “Desde o começo do ano, o sistema carcerário cearense vem passando por mudanças estruturais com a desativação de carceragens do interior, por exemplo, e a Defensoria Pública, ao longo deste primeiro semestre, participou de vários momentos com os familiares, recebendo denúncias e tentando sanar os problemas apresentados que estariam acontecendo nas unidades. Além dessas reuniões, os núcleos especializados têm realizado atendimentos individuais, promovendo mutirões de análise processual e inspeções nas unidades prisionais. A Defensoria tem protocolado ações no judiciário, apontado diagnósticos ao Governo do Estado e ao poder judiciário, solicitando medidas e providências”, explicou o defensor público Eduardo Villaça, assessor de Relacionamento Institucional.
 
Para a defensora pública Mayara Mendes, titular de Baturité, a presença da Defensoria no dia a dia do sistema prisional é importante para garantir os direitos da população mais vulnerável. “Como houve uma mudança estrutural no sistema, é muito importante ações que mostrem que a Defensoria Pública está perto dessas pessoas. Estávamos recebendo de forma difusa várias reclamações no que tange às visitas, como essa questão da farda, ocasionando uma forma de estigmatização social, e que as visitas íntimas estavam suspensas há seis meses. Esses depoimentos foram importantes para ajudarmos a buscar resgatar o direito dessa população”, destaca Mayara Mendes.
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