Instagram Facebook Twitter YouTube Flickr Spotify
11/12/2018

CE: Moradias irregulares recortam a cidade

Fonte: ASCOM/DPE-CE
Estado: CE
A letra do compositor Peninha retrata bem a questão da moradia: nove entre dez brasileiros sonham ou sonharam com casa própria, em algum momento da vida. Ao mesmo tempo, a realidade bate a porta: em todo lugar, nos quatro cantos das cidades, há uma casa sem documento, uma comunidade em briga por espaço para habitar ou um cidadão aflito pela falta de moradia. Ter uma moradia digna está de modo íntimo relacionado ao progresso na vida. Mesmo quando se trata de um simples modelo de alvenaria sem revestimento, a casa própria é motivo de alegria, sensação de segurança e de conquista. Reconhecido e implantado como pressuposto para a dignidade da pessoa, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo XXV, apregoa: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação …”
 
A moradia é um direito fundamental, expresso também na Constituição Federal. Não há uma definição clara de como ela deve ser, mas pressupõe-se que ela permita habitar com dignidade neste lar.  “O conceito de moradia é muito amplo, pode ser desde uma tenda armada numa calçada a uma mansão sofisticada, mas aquilo que está na Constituição trata expressamente da moradia digna. Que tenha um mínimo de condições para garantir a dignidade do ser humano. É um direito social e, sendo assim, o Estado tem obrigação de prover isso para a população carente, e a Defensoria entra exatamente nesse ponto”, explica o defensor público Eliton Meneses. Ele pontua ainda a existência do Estatuto da Cidade, como outra ferramenta reconhecedora do Direito à Moradia, “especialmente no tocante à questão urbana e ao reconhecimento das mais diversas formas do usucapião”.
 
Nos sonhos da  recepcionista Neiara Peixoto de Sousa, de 33 anos, a casa ideal teria três quartos, um para cada filha e os outros cômodos bem divididos. “Uma sala, a cozinha, uma área pra eu colocar as flores, tudo divididinho”. Assim como na música, a casa dos sonhos da Neiara ainda não foi concretizada. Ela e as três filhas moram em uma casa de dois cômodos construída no terreno do ex-sogro. O primeiro cômodo é onde a família dorme, duas camas, o berço da filha caçula de 11 meses e o guarda roupa dividem o pequeno espaço. No segundo cômodo ficam os móveis da cozinha e uma parede que separa para o banheiro. A pia para lavar o que precisar fica na parte de fora da casa. No terreno, localizado na comunidade Galiléia, no bairro Luciano Cavalcante, outros sete membros da mesma família também construíram casas semelhantes. “Tenho o sonho de realmente sair daqui, porque é muito apertado. As meninas estão crescendo e cada uma quer o seu cantinho, mas hoje vivemos assim. Tenho certeza que vamos conseguir realizar esse sonho”, almeja Neiara que nunca procurou os órgãos públicos para cadastrar-se em programas sociais de habitação. “Nem sabia que eu tinha esse direito. Tenho mesmo?”, questionou incrédula.
 
Na comunidade em que ela vive, existem ainda 150 famílias que travam na justiça uma ação de reintegração de posse pelo proprietário do terreno. Algumas estão ali há mais de 40 anos. Construíram suas casas em terreno que, à época, não tinha nada. “Aqui era tudo um sítio, tinham plantações de frutas. As famílias foram chegando e se instalando. Eu tinha nove anos de idade quando meus pais construíram a casa. Hoje já estou com 50 anos. Como vão dizer que a gente não tem direito?”, questiona Conceição Soares, que tem uma escolinha de karatê e dá aula para os meninos da comunidade.
 
Responsável pelo Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria Pública do Ceará, José Lino Fonteles, explica que a ação da comunidade Galiléia corre desde 2003, mas já está transitado e julgado e a qualquer momento pode chegar uma ordem de despejo para tirar todo mundo. A Defensoria Pública entrou com uma ação de desapropriação judicial indireta, e explica: “Se eles saírem daqui vão ficar sem moradia e engrossar uma fila que já não tem fim. Para onde esse povo for, amanhã ou depois, o governo vai ter que gastar com novas moradias, equipamentos de saúde e uma infraestrutura mínima nessa nova área para receber toda essa população. Além disso, vem atrelado a essa reintegração de posse todos os abalos psicológicos que uma ação de retirada de famílias traz com todas as violações de direito, contumazes. Qual seria a solução para essas pessoas? Desapropriar o terreno para eles morarem. O Governo pagaria ao dono do terreno, regularizaria a documentação dessas casas e pronto. Não precisaria de mais nada, mas isso não é feito por por força política dos donos dessas terras e porque o Governo tem medo de ser taxado como comunista, porque nos dias de hoje esse título assusta, mesmo o povo nem sabendo que é direito”, esclarece Fonteles.
 
“Viver com essa angústia é horrível porque a gente quer fazer algumas melhorias nas residências dentro do poder aquisitivo de cada família, mas temos medo porque essa ordem pode chegar a qualquer momento. Estamos lutando com a Defensoria Pública, correndo pelos lados legais, porque como é que vamos sair de um lugar que chegamos quando éramos criança? Só porque aparece um dizendo que é dono, que tem dinheiro, e fica por isso?”, questiona Conceição.
 
 
Em números
 
Chegar aos números reais da falta de moradia e das pessoas que estão morando em situação irregular na cidade é difícil. Pesquisa referência na área, data de 2015, e apontava que a Região Metropolitana de Fortaleza com um déficit habitacional de 147.111 moradias. O dado da Fundação João Pinheiro (FJP) trabalha com dois segmentos distintos: o déficit habitacional, que é a necessidade real de construção de novas moradias, e a inadequação de moradias, com as políticas voltadas para a melhoria dos domicílios. Em todo o Ceará, esse número saltaria para 302.623 moradias.
 
Já o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) , elaborado pela  Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), em 2010, mapeou 856 assentamentos precários na cidade, onde vivem 271.539 famílias, alcançando mais de um milhão de pessoas. Isso representaria cerca de 40% da população da cidade e geograficamente 12% da área de Fortaleza. Neste universo de assentamentos precários, 74% das moradias são consideradas favelas, 15% casas construídas em mutirões, 6% em conjuntos habitacionais, 3% são cortiços e 2% são loteamentos irregulares, distribuídos no território. As áreas mais precárias no quesito moradia estão concentradas nas Regionais I, IV, V e VI, sendo mais escassas nas Regionais II e III.
 
O defensor do Nuham, José Lino Fonteles, aponta o problema a falta de protagonismo do Estado e dos municípios na construção de uma política habitacional forte e independente do programa federal Minha Casa, Minha Vida (MCMV). “O MCMV é insuficiente, apesar da publicidade feita pelo Governo. A maioria das moradias entregues em Fortaleza vai para famílias que já tinham casas próprias e foram retiradas dos seus locais por obras públicas, como os reassentamentos feitos devido às obras de implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e de famílias removidas do Rio Maranguapinho, do Rio Cocó e da Comunidade do Dendê. Como ficam a situação de quem está em situação de rua? Daquelas pessoas que estão nas ocupações ou que construíram há anos casas em terrenos de particulares?”, questiona do defensor.
 
A Defensoria ainda lembra que a falta de habitação pode inclusive ser causada pela violência urbana, caso dos refugiados urbanos, pessoas que estão sendo expulsas pela facções criminosas. “O que percebemos com o nosso dia a dia é que falta uma política pública adequada para promover o direito à moradia. Todos os dias batem à porta da Defensoria, pessoas lutando por um direito essencial do ser humano, que é ter um lugar pra viver”, expõe.
 
Outro problema vem da qualidade dos conjuntos habitacionais do ponto de vista global. Quando o Programa Minha Casa Minha Vida foi instituído, em 2009, não se previa que as casas fossem construídas em áreas urbanizadas com equipamentos sociais. Os primeiros conjuntos foram instalados em áreas distantes dos centros urbanos e sem qualquer infraestrutura, apenas o imóvel. Em 2012, o Ministério das Cidades baixou uma portaria exigindo que 6% do orçamento do conjunto habitacional fossem destinados para equipamentos sociais. “Ficava a cargo do município fazer um levantamento das condições do entorno para saber a necessidade de transporte, de equipamento de saúde, segurança, educação. Mas aí vieram os cortes de verbas por parte do Governo Federal e esses conjuntos ficaram mais uma vez sem essa infraestrutura. Mais frustrante ainda é o fato de que a comemoração pela conquista de uma moradia é somente o início de outra luta para não continuar vivendo à margem da sociedade e sem acesso a serviços públicos básicos”, lamenta Fonteles.
 
 
Ocupar é resistir
 
Gregório Lourenço Bezerra (1900-1983), pernambucano de nascença da região agreste, carrega em sua história a vivência de migrante sem-teto. Aos nove anos, já era órfão de pai e mãe. Migrou para o Recife na intenção de viver com uma família de fazendeiros e iniciar os estudos como lhe foi prometido e não ocorreu. Até os 25 anos de idade, permaneceu analfabeto. Durante muito tempo, viveu como a maioria dos miseráveis e sem-teto da cidade de Recife e despertou seu interesse pelo ativismo político.
 
No Centro de Fortaleza há uma estrutura danificada, deteriorada e irregular. É a antiga Escola Nossa Senhora de Aparecida e Jesus, Maria e José, abandonada há cerca de 15 anos e que hoje abriga 15 famílias da Ocupação Gregório Bezerra (OGB). O nome do pernambucano foi escolhido para resgatar sua história. “Gregório foi um grande militante, muito mais no campesinato, mas também na cidade. É uma referência da militância. Por isso, aderimos a esse nome, também porque já existe um coletivo voltado à questão da discussão do campo”, afirma o coordenador da ocupação, Jefferson Ferreira.
 
O lugar não é o adequado para moradia digna, principalmente para a saúde e o desenvolvimento das crianças que ali vivem com seus parentes, mas a resistência persiste em palavras e expressões pintadas nas paredes: “Ocupar e resistir”, “Resistência OGB”, “União”, “Liberdade”, “Direito à Moradia”, “Respeito”, “Luta”. Segundo Jefferson Ferreira, desde 2016, algumas famílias que não tinham para onde ir se organizaram e passaram a ocupar espaços vazios na cidade e se fixaram no Centro de Fortaleza. “Mapeamos alguns prédios e visitamos essa escola no dia 25 de janeiro. No dia seguinte, alugamos um caminhão e 78 famílias ocuparam esse espaço”, relembra Jefferson, do Movimento das Ocupações em Fortaleza.
 
O movimento não só impulsiona a luta por condições de uma moradia digna, como também reivindica o funcionamento de instituições que tiveram suas atividades paralisadas. Foi assim como aconteceu com uma das escolas ocupadas por eles no bairro Conjunto Ceará. Até o ano passado, 90 famílias ocupavam o prédio que estava abandonado há cerca de quatro anos. No dia 23 de janeiro de 2018, a Prefeitura de Fortaleza informou que iria retomar as obras para o funcionamento da escola. “Ocupamos com duas propostas: uma era abrir o debate para que as obras da escola fossem retomadas e a outra era  colocar em pauta a questão da luta pela moradia”. Jefferson acredita que essa foi a primeira conquista do movimento: “saímos daquela comunidade, com um legado. Além de termos ocupado a terra, deixamos uma escola funcionando”, complementa.
 
 
Sem ter para onde ir
 
Por estar no centro da cidade, a Ocupação recebe também moradores de rua. “São famílias que vão chegando e a gente, como tem espaço, vai recebendo, mas sempre dialogando com elas no sentido de esclarecer sobre a luta por uma moradia mais digna”, esclarece.
 
É o caso de Marciana Leandro Arruda, de 42 anos, natural de Redenção. Ela vivia nas ruas do Centro de Fortaleza há 11 meses e hoje mora na Ocupação. “Uma certa noite eu fui na Praça do Ferreira atrás de comida com o rapaz que vive comigo, porque lá é onde o pessoal distribui comida, roupa, essas coisas para as pessoas de rua. Nesse dia conheci uma senhora que trouxe a gente pra cá. Foi assim que saímos da rua. Morar na rua é sofrido e perigoso. Você ganha uma quentinha, mas se você se afastar um pouco não tem mais. Se ganha uma roupa e desvia a vista, não tem mais. São levadas. Fora aquelas pessoas que bebem e gostam de confusão. Às vezes, você passa a noite sem poder dormir”, vai contando sobre o dia a dia de abandono na cidade grande.
 
O prédio da Escola, mesmo precário, proporcionou a Marciana uma morada. “A vista da rua aqui é muito melhor. É um lugar tranquilo e tem pouca gente. Ninguém vive com briga, nem discussão. Não existe bebedeira. São pessoas humildes e que precisam de tanta coisa, principalmente comida e roupa. Todos nós que vivemos assim almejamos um cantinho da gente. É difícil? É, mas não é impossível. Todo ser humano tem o direito de ter um teto, uma moradia, por mais simples que seja. Mas que você possa dizer: estou no que é meu’”, completa cheia de sonho.
 
Rita Maria Barros, 50 anos, morou na ocupação no Conjunto Ceará durante seis meses, em setembro de 2016. Foi quando conseguiu um espaço no prédio da Escola Jesus, Maria e José, do Centro. “Eu morava de aluguel, mas deixei de trabalhar e atrasei. Fui ameaçada de despejo e tive que entregar a casa”. O drama do despejo também aflige quem não tem uma moradia. “Quando eu tiver meu apartamento, ter a minha moradia, eu vou ajudar outras pessoas. Ensinar o que eu aprendi aqui dentro”.
 
Além das ocupações, há um fenômeno novo na questão das moradias, que foi bastante discutido após o aparecimento de organizações criminosas nas periferias que dizem respeito ao domínio de territórios. Algumas famílias de Fortaleza sentiram na pele a dor de ser expulsos de sua morada. São os chamados refugiados urbanos – pessoas que ficaram sem ter para onde ir. Algumas destas famílias – 133 , segundo último levantamento divulgado pelo Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Ceará – buscaram apoio da instituição para auxiliá-las neste drama, que teve picos entre o segundo semestre de 2017 e primeiro semestre de 2018.
 
“Você tem uma casa, forma uma família e constrói um lar. Passei vinte anos morando naquele mesmo bairro. Meus filhos cresceram correndo pela ruas calmas, as calçadas viraram uma continuação da nossa sala e toda noite a gente se reunia pra conversar. Os filhos cresceram, os netos estudaram na escola do bairro, o supermercado era feito no mercantil da rua de trás. Mas aí, um dia, tudo mudou. Homens armados, alguns eram jovens que eu vi crescer, invadiram todas as nossas casas”, dizia uma das denunciantes que buscou ajuda na Defensoria.
 
Apesar da gravidade, município e Estado ainda não dispõem de uma política pública específica para esse tipo de situação. É diante deste desamparo que a Defensoria vem dialogando na busca por soluções. “No momento em que elas são expulsas das suas residências e se tornam refugiadas urbanos, têm uma série de direitos que também lhes são negados, como o acesso à saúde e à educação. A Defensoria tem buscado assegurar o acesso à educação para as crianças, abrigo temporário para as famílias, a devolução dos apartamentos aos bancos financiadores, a troca do imóvel por outro, indenizações, além de aluguéis sociais, variando caso a caso”, explica Mariana Lobo, defensora pública geral do Ceará.
 
Os motivos que impedem que muitos tenham um teto são inúmeros e a falta de moradia continua sendo uma das mais repetidas violações de direito aos brasileiros. De acordo com o defensor público Lino Fonteles, qualquer projeto para acabar com o déficit habitacional deve ser discutido com os movimentos sociais, que têm longa trajetória e experiência na luta pela moradia. “Não adianta focar apenas na política habitacional federal – no programa Minha Casa, Minha Vida – porque já vimos que essa solução está distante de responder ao déficit habitacional da cidade e, inclusive, do país. As políticas que estão sendo feitas não dialogam com os problemas de moradia e nem levam em consideração os imóveis vazios na área central, que precisam ser notificados para induzir seu uso. A luta por moradia mostra qual é o caminho para se conquistar uma vida digna e é preciso envolvimento das comunidades locais para atingir uma solução de longo prazo para essa crise”, destaca Lino.
Compartilhar no Facebook Tweet Enviar por e-mail Imprimir
 
 
COMISSÕES
TEMÁTICAS
NOTAS
TÉCNICAS
Acompanhe o nosso trabalho legislativo
NOTAS
PÚBLICAS
ANADEP
EXPRESS
HISTÓRIAS DE
DEFENSOR (A)