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14/04/2015

Audiência de custódia: necessário controle de convencionalidade

Estado: TO

Manuzy Amorim Goffi é analista jurídica da Defensoria Pública do Estado do Tocantins. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Palmas. Pós-Graduanda em Direito e Processo Constitucional pela Universidade Federal do Tocantins.

Primeiramente, antes de adentrar ao tema, é importante realizar algumas digressões. A Constituição Federal de 1988 (CF) não é uma simples folha de papel (sentido sociológico de Ferdinand Lassale) ou conjunto de normas que limita o poder político e delimita competências (sentido político de Carl Shimitt), ela tem força normativa, ou seja, não trata-se de promessas políticas, mas de normas que exigem concretude, efetivação.
 
Essa força normativa, fruto do neoconstitucionalismo, se irradia sobre as demais normas do ordenamento jurídico submetendo-as a uma filtragem constitucional. Nesse sentido, adentrando ao tema, o princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da CF, pressupõe sentença condenatória transitada em julgado para o reconhecimento da autoria de uma infração penal.
 
Desse modo, qualquer antecipação de juízo condenatório fere substancialmente o referido princípio, por isso, a prisão em flagrante e sua manutenção em preventiva deve ser tratada como exceção e não regra, conforme o art. 5º, inciso LXI, CF.
 
No intuito de proteção da liberdade das pessoas, a audiência de custódia representa instrumento eficaz no combate às prisões arbitrárias e ilegais, sendo ela a apresentação pessoal do cidadão preso em flagrante à presença de um juiz, sem demora, para análise da legalidade e necessidade da prisão, bem como verificação de maus tratos ou tortura a fim de cessá-los.
 
A previsão normativa desse instituto encontra-se em vários diplomas internacionais de direitos humanos (art. 9º, item 5, do Pacto Internacional de Direito Civis e Político e art. 5º, item 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), mas destaca-se o art. 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que dispõe:
 
“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
 
A propósito, desde 2011 tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado nº. 554, dando a seguinte redação ao art. 306 do CPP:
 
(...)§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310. § 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.
 
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) foi inserida formalmente no ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, sendo atribuído a tal diploma caráter de supralegalidade no controle judicial de convencionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343/SP.
 
O caráter supralegal significa acima da lei e abaixo da Constituição, ou seja, a CADH apesar de ser norma de direito humano não possui estatura constitucional, segundo o referido precedente do STF na interpretação do art. 5º, §1º, §2º e §3º, da CF.
 
A título de registro, uma vez que o assunto é complexo e seria necessário um artigo específico sobre o tema da hierarquia constitucional dos tratados internacionais, há teses, por exemplo, defendida por Flavia Piovesan, que os tratados internacionais de direitos humanos são de nível constitucional, tese essa encampada pelo Ministro Celso de Mello no julgamento do precedente em alusão.
 
Apesar da divergência, a conclusão que se pode extrair é que cabe ao intérprete observar a convencionalidade do Código de Processo Penal (CPP), lei ordinária, aos tratados ou convenções de direitos humanos e não apenas observar a conformidade constitucional.
 
Sendo o CPP lei ordinária e a CADH de caráter supralegal, prevalece a CADH, uma vez que está acima da lei e deve ser aplicada imediatamente, sendo insuficiente a comunicação ao juiz sobre a prisão (art. 306 do CPP).
 
A mera comunicação da prisão ao juiz não satisfaz a garantia de apresentação pessoal do preso para valorar a legalidade da prisão, nesse sentido diversos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30/10/2008. Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez Vs. Equador. Sentença de 21/11/2007; Caso Garcia Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25/11/2005; Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22/11/2005.
 
Contudo, a ausência de lei interna tem sido utilizada como obstáculo para a implementação desse instituto, desconsiderando, assim, o controle de convencionalidade e a força normativa dos tratados internacionais de direitos humanos.
 
Buscando superar essa deficiência, o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Ministério da Justiça lançaram no dia 06 de fevereiro do corrente ano o “Projeto Audiência de Custódia” para garantir que presos em flagrante sejam apresentados a um juiz num prazo máximo de 24 horas para analisar a legalidade da prisão e avaliar a sua manutenção ou aplicação medidas cautelares diversas. A iniciativa já mostrou resultado, em um mês depois de implantada, dos 428 presos em flagrante apresentados aos juízes designados para esse mister, houve a soltura de 40%.
 
Os demais Tribunais Estaduais estão analisando o projeto-piloto para a sua implantação, inclusive, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, desembargador Ronaldo Eurípedes, determinou a criação de uma comissão para estudar a implementação da audiência de custódia em Palmas.
 
Impende destacar, que a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) ingressou no Supremo Tribunal Federal com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240, em face da implantação das audiências de custódia pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em virtude da ausência de legislação específica (princípio da reserva legal), invasão de competência do Poder Legislativo da União para editar normas processuais e afronta ao princípio da separação de poderes.
 
Contudo, frise-se, há uma “supra-lei” (CADH) que autoriza a audiência de custódia, não havendo, assim, afronta ao princípio da reserva legal.
 
O Brasil é um país de modernidade tardia, percebe-se um enclausuramento normativo e a dificuldade de mudança cultural. Mas, a mudança é necessária, o controle de convencionalidade deve ser aplicado para atender a exigência da audiência de custódia prevista na CADH. O processo penal brasileiro precisa desse ajuste para assegurar o julgamento em um prazo razoável, garantir a defesa pessoal e técnica e do próprio contraditório (art. 5º, incisos LV e LXXVIII, da CF).
 
Como garantia do contraditório a audiência de custódia possibilita que o juiz aplique medida cautelar diversa mais adequada ao caso (art. 289, §3º e art. 319 do CPP) em consonância com a presunção de inocência, bem como proteção da liberdade e integridade física do preso.
 
Tal instituto deve se torna presente nas postulações da laboriosa Defensoria Pública (HC 0006708-76.2015.4.01.0000, TRF-1) e o Judiciário não deve se esquivar com o argumento da ausência de previsão normativa no ordenamento jurídico pátrio.
 
O controle de convencionalidade é o caminho a ser seguido, pois diante de um contexto social de relativização de direitos fundamentais, como a PEC da redução da maioridade penal, não dá para esperar a atuação legiferante. A luta continua contra a evolução reacionária.
 
Referências:
 
“Audiência de Custódia e a Imediata Apresentação do Preso ao Juiz: Rumo a Evolução Civilizatória do Processo Penal”, Aury Lopes Jr e Caio Paiva. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, v. 1, p. 161-182, 2014.
 
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
 
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://corteidh.or.cr
 
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
 
http://www.conjur.com.br/2015-fev-13/limite-penal-afinal-quem-medo-audiencia-custodia-parte
 
http://www.conjur.com.br/2015-fev-20/limite-penal-afinal-quem-continua-medo-audiencia-custodia-parte2
 
http://www.conjur.com.br/2015-fev-27/limite-penal-afinal-quem-medo-audiencia-custodia-parte
 
http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/audiencias-custodia-libertam-40-presos-flagrante-mes
 
http://www.conjur.com.br/2015-mar-10/trf-manda-juiz-promover-audiencia-custodia-ouvir-presos
 
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62433-presidente-do-cnj-participa-de-lancamento-do-projeto-audiencia-de-custodia
 
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/78898-tjto-criara-comissao-para-estudar-implantacao-de-audiencias-de-custodia-na-capital
 
http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/03/18/valadares-pede-aprovacao-de-projeto-de-sua-autoria-que-institui-a-audiencia-de-custodia
 
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=285800&caixaBusca=N
 
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=284925&caixaBusca=N
 
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