Rochester Araújo, diretor de Articulação Social da ANADEP
A Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) possui, na sua organização estrutural, um conjunto de comissões temáticas que entre as diversas funções elaboram parecer sobre propostas legislativas, estudos e promovem a discussão de estratégias e atuações das Defensorias Públicas do Brasil em assuntos especializados, de acordo com a temática de cada comissão. A título e exemplo, a Anadep conta com comissões que discutem Igualdade Étnico-Racial, Direitos da Mulher, Pessoa com Deficiência, Diversidade Sexual, Saúde entre outras.
Para além das funções manifestas das comissões temáticas, cada agrupamento ainda demonstra um direcionamento institucional da Anadep em possuir núcleos de discussão e debate sobre temas extremamente importantes para as Defensorias Públicas, reunindo defensoras e defensores públicos com interesse naquela temática, muita das vezes conjugando a atuação profissional, investigação acadêmica e identificação pessoal.
Em maio de 2023, um grupo de defensoras e defensores apresentou à Anadep a proposta da criação de nova comissão temática: a Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. Como destacado pelas próprias signatárias da proposta, o respaldo normativo no ordenamento jurídico brasileiro, além das normas de direitos humanos de âmbito regional e global preenchem de validade esse avanço.
Na discussão acerca da criação da referida comissão, ficou claro que apesar das garantias legais existentes, os povos indígenas no Brasil enfrentam resistência de parcela da sociedade em relação ao respeito de seus direitos fundamentais, o que pode ser agravado pelo Poder Público de forma omissiva ou comissiva. Tais agravamentos se revelam em situações como a crise humanitária da terra indígena yanomami. Contudo, o processo de extermínio dos povos indígenas dura mais de 500 anos, ininterruptamente, o que demanda um esforço contínuo no nosso momento histórico pelo recrudescimento desse processo.
Organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), já reconheceram a necessidade de respeito imediato a esses direitos por parte dos Estados. O Comitê de Eliminação da Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas (ONU) também estabeleceu que a falta de observância dos direitos territoriais e do direito à consulta prévia configura discriminação contra os povos indígenas, requerendo políticas adequadas para garantir seus direitos humanos.
É importante destacar que diversas violações dos direitos dos povos indígenas são legitimadas por meio de projetos de lei e propostas de emenda constitucional que, se aprovados, impactarão negativamente a sobrevivência das mais de 300 etnias existentes no Brasil. Essas iniciativas têm como objetivo a exploração de minérios, uso imobiliário dos territórios indígenas e atividades agropecuárias, colocando em risco a cultura, a saúde, o meio ambiente e a continuidade dos povos indígenas, contando com o apoio significativo de parcela da sociedade com grande poder econômico e político.
Nesse aspecto, o estabelecimento de uma Comissão da Anadep que trabalha de forma especializada com essa temática se mostrou oportuna e necessária, sobretudo diante do relevante papel de suporte às matérias legislativas desenvolvidas pelas comissões temáticas da Anadep em favor de uma população em situação de hipervulnerabilidade. Ainda mais quando essa condição é agravada pela baixíssima representatividade nas casas legislativas. O primeiro deputado indígena eleito foi Mário Juruna, que assumiu em 1982, durante a ditadura militar. Mais de 40 anos depois, a Câmara dos Deputados terá cinco cadeiras ocupadas por indígenas, sendo quatro deles integrantes da chamada “bancada do cocar”. Sônia Guajajara (PSOL-SP), Juliana Cardoso (PT- SP), Paulo Guedes (PT-MG) e Célia Xakriabá (PSOL-MG) foram eleitos em outubro de 2022 a partir da organização política da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que criou a “Campanha para aldear a política”, com o objetivo de formar a “bancada do cocar” e fazer frente à bancada ruralista.
Além disso, a hipervulnerabilidade é estampada a partir de relatos e dados alarmantes que demonstram a violação sistemática dos direitos humanos dos povos indígenas, como a separação compulsória de crianças indígenas de suas mães, a violência sexual contra meninas indígenas e o genocídio do povo yanomami. Relatos como esse são trazidos aos órgãos de promoção de direitos humanos, constando nas pautas do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e de Comissões Especiais, destacando a existência da Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais envolvidos em Conflitos Fundiários, que é um núcleo especializado com temática aproximada.
Vale lembrar que a Anadep reúne defensoras e defensores públicos das 27 unidades federativas do Brasil. O pedido de criação da Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas foi subscrito por defensoras e defensores públicos de diversos estados, entre eles Roraima, Pará, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. No momento de criação, oportunizada a sustentação da proposta junto à plenária da Anadep, Aléssia Bertuleza Tuxá, primeira Defensora Pública indígena do Brasil, apresentou de forma sensível e emocionante os diversos fundamentos e a importância da criação da comissão temática.
Não se trata da construção de um espaço de discussão sobre o tema que antes era completamente inexistente, já que a própria Anadep possuía discussões em favor da população indígena na Comissão de Igualdade Étnico-Racial. Mas sim da afirmação e do comprometimento da Anadep em um atenção singularizada à complexidade que envolve a defesa dos povos indígenas brasileiros.
Ainda que alguma Defensoria Pública do Brasil não possua uma atuação especializada em favor da população indígena daquele estado, por ausência de demandas trazidas até a instituição, isso não indica a desnecessidade do fortalecimento de ações com a criação da Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. Ao contrário, isso indica que em alguns cenários podemos estar chegando atrasados, mas não deixamos de perceber a importância da atuação das defensoras e defensores Públicos do Brasil na defesa de uma população que enfrenta um histórico secular de violações de direitos.
Um marco simbólico na história da Anadep em relação ao comprometimento na defesa da população indígena e um marco associativo das defensoras e defensores públicos do Brasil que, a partir da criação, passam a ter um olhar singular para a defesa desta causa. A Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Anadep cria um território indígena na maior Associação de defensoras e defensores públicos do Brasil.