Antonio Vitor Barbosa de Almeida, coordenador da Comissão da População em Situação de Rua da ANADEP;
Fernanda Penteado Balera, coordenadora-adjunta;
Samuel Rodrigues, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua
Pessoas vivendo em situação de rua em condições de extrema vulnerabilidade nas grandes cidades brasileiras não é uma novidade da história recente do País. Desde os primeiros anos do século do “descobrimento”, constata-se o envio para a então colônia portuguesa de pessoas consideradas vadias, “mendigas” e degredadas por D. João III.
Não obstante representassem – e ainda representem – um dos retratos mais violento das desigualdades e do autoritarismo da injusta estrutura social brasileira, não havia, em nível federal, até os anos 2000, lei que assegurasse expressamente o atendimento e a promoção de direito das pessoas em situação de rua.
Ao contrário, o que sempre houve foi normativa e administrativa criminalizante voltada a esse segmento populacional. Condutas associadas à vida nas ruas, tais como a vadiagem, mendicância e ausência de trabalho eram criminalizadas e punidas. Isso ocorreu desde as Ordenações Afonsinas (1447-1521), passando pelas Ordenações Manuelinas (1521), Ordenações Filipinas (1603-1830), Código Penal do Império (1830), Código Penal de 1890 e pela Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688/1941). Ainda hoje é prevista como conduta criminal, por exemplo, permitir que alguém menor de 18 anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância, “mendigue ou sirva a mendigo” para excitar a comiseração pública (art. 247, IV, do Código Penal). Essa disciplina penal é semelhante à do então Código Penal de 1890.
Apenas em 2005 houve em nível nacional a previsão expressa de atendimento das pessoas em situação de rua junto aos programas socioassistenciais de proteção, por meio da Lei nº 11.258/2005, que alterou a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/1993), culminando-se, posteriormente, em 2009, com a criação da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto federal nº 7.053/2009).
E tal inclusão normativa não se deu da noite para o dia, tampouco sem uma mobilização social articulada das próprias pessoas em situação de rua e da sociedade civil.
O contexto do surgimento dessas primeiras previsões normativas protetivas remonta aos desdobramentos da “Chacina da Praça da Sé”, episódio em que, entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, 15 pessoas que se encontravam dormindo nas ruas do centro de São Paulo (SP), próximo à Praça da Sé, foram brutal, covarde e violentamente agredidas, culminando no óbito de sete delas. Desde então, o dia 19 de agosto é considerado o Dia de Luta das Pessoas em Situação de Rua.
Segundo apurações iniciais, a arma empregada nas execuções era similar a uma tonfa, objeto utilizado por agentes de segurança e guardas-civis metropolitanos, suspeitando-se do envolvimento de agentes estatais no ocorrido.
Infelizmente, o episódio não é algo superado, tampouco reparado, negando-se às vítimas e à coletividade o direito à verdade, memória e reparação. Até hoje os responsáveis não foram identificados nem julgados.
Os sentimentos de indignação e revolta contra a chacina impulsionaram a articulação política das pessoas em situação de rua, que já vinha ocorrendo desde anos anteriores, culminando com a criação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), oficialmente lançado no ano de 2005, durante o 4º Festival Lixo e Cidadania, encontro realizado por catadores de materiais recicláveis, na cidade de Belo Horizonte (BH).
Assim, diante da adversidade, da dor, da negação máxima do direito à vida, surge um novo movimento social, com amplitude nacional, que pretende visibilizar e defender os direitos da população em situação de rua, buscando a superação dessa situação de vulnerabilidade social, conquistando importante espaços de representação institucional.
No entanto, a luta do MNPR é árdua frente à exclusão sistemática dessa população.
A chacina da Praça da Sé não foi algo isolado. Ela ainda continua, seja no esquecimento, na indiferença e até mesmo nos extermínios físicos praticados no cotidiano frio das calçadas e marquises dos centros urbanos. Ela persiste quando há a chancela das violações a direitos por parte da institucionalidade do Poder Público, do Sistema de Justiça e da sociedade civil (é preciso avocar responsabilidades!).
Até hoje essa população permanece seletivamente invisível para os dados demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que não realiza sua contagem, uma vez que essas pessoas não contam com uma base domiciliar para participação no censo demográfico. O que se tem hoje são estimativas do número dessas pessoas no País, a partir de estudos realizados na base de dados do Sistema Único de Assistências Social (SUAS) e do Cadastro Único dos Programas Sociais (Cad-Único). Em dezembro de 2022, estimava-se um contingente de 281.472 pessoas em situação de rua no Brasil.
A ausência de dados demográficos sobre o perfil das pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade nas ruas das cidades brasileiras é grave entrave para a análise mais acurada deste fenômeno populacional, dificultando a construção de políticas públicas locais, regionais e nacionais.
Não bastasse, essa população é cotidianamente submetida a violências sistemáticas. Segundo informações do Ministério da Saúde, entre os anos de 2015 e 2017 foram registrados 17.386 casos de pessoas vítimas de violência cuja motivação para a sua ocorrência foi estar em situação de rua. As principais notificações foram entre as mulheres (50,8%) e entre as pessoas negras (54,8%). No que diz respeito ao sexo masculino, registrou-se uma maior ocorrência na faixa etária entre 15 e 24 anos (38,1%), sequencialmente da faixa entre 25 e 34 anos (21,9%) e, após, entre 35 e 44 anos (14,7%).
As principais violências se referem a agressões físicas, contando com um número de 16.149 vítimas (92,9%), violência psicológica/moral com 4.025 vítimas (23,2%), seguida de violência sexual com 673 vítimas (3,8%) e, após, negligência e abandono com 460 vítimas (2,7%).
Segundo dados do então Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável (CNDDH), entre 2010 e 2014, a violência contra as pessoas em situação de rua registravam práticas com requintes de crueldade como queimaduras, envenenamento, apedrejamentos, espancamentos, mortes com arma de fogo, estupro seguido de morte, dentre outras, sendo que na maioria dos casos os responsáveis contam com um cenário de impunidade, não havendo a correta identificação e punição dos agentes violadores.
Ainda, são recorrentes as ações por parte do poder público que expulsam as pessoas em situação de rua dos principais centros urbanos e lhes retiram os seus parcos pertences, tudo isso sob a pretensa alegação de limpeza urbana e com o aval da sociedade domiciliada.
É preciso registrar que esse extermínio dos corpos precarizados das pessoas em situação de rua, em sua maioria negros, se dá publicamente (por ação ou omissão), como que para tornar exemplar a eliminação daqueles que, imaginariamente, não se encaixam nos padrões da sociedade neoliberal e que foram (e são) historicamente considerados desviantes (outsiders). Essa prática é o legitimada pela naturalização das nossas desigualdades estruturais em práticas sociais e institucionais.
Não é possível, em um Estado que se pretenda de Direito e Democrático, haver essa convalidação do extermínio de indesejáveis.
Esse breve quadro é passível de ser caracterizado como um estado de coisas inconstitucional, já que representa a violação massiva de direitos fundamentais por ação ou omissão do Poder Público.
Foi esse o quadro apresentado ao Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, na qual o Ministro Alexandre de Moraes, após a realização de audiência pública que contou com ampla oitiva de especialistas, organizações sociais, instituições de ensino superior e das próprias pessoas em situação de rua, que pela primeira vez pisaram na Corte Superior – cobrou uma série de medidas a serem adotadas por municípios, estados, Distrito Federal e União com vistas a mitigar a grave situação de violações dos direitos das pessoas em situação de rua.
Dentre as determinações judiciais, destacam-se: a) ao Poder Executivo federal: a.1) a elaboração de um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua; a.1) desenvolvimento de mecanismos para mapear a população em situação de rua no censo realizado pelo IBGE; a.3) incorporação na Política Nacional de Habitação das demandas da população em situação de rua; a.4) formulação de políticas para fomentar a saída da rua por meio de programas de emprego e de formação para o mercado de trabalho; b) aos poderes executivos municipais e estaduais: b.1) que efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes; b.2) que proíbam o recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua; b.3.) que vedem o emprego de técnicas de arquitetura hostil, dentre outras.
Um importante e imprescindível ponto abarcado pela aludida decisão liminar se refere à incorporação das demandas das pessoas em situação de rua na política nacional de habitação. Isso porque a situação de rua é, em essência, uma consequência da ausência de alternativas habitacionais e de moradia. Algo tão central e óbvio, mas que é completamente desconsiderado pelos gestores públicos.
Há décadas, estudos e experiências efetivadas em países como Estados Unidos, Portugal, Espanha e Finlândia apresentam como solução para a superação da situação de vulnerabilidade nas ruas a oferta imediata de uma moradia digna para a pessoa se abrigar. O modelo mais divulgado, ultimamente, é o housing first (moradia primeiro), desenvolvido no início dos anos 1990 por Sam Tsemberis, psicólogo grego radicado nos EUA, que foi responsável por elaborar uma nova metodologia para auxiliar as pessoas em situação de rua, especialmente as que apresentavam problemas crônicos de drogadição e em sofrimento mental, a superarem esse quadro de vulnerabilidade, priorizando de forma imediata o acesso a uma moradia.
Espera-se que os debates incipientes no País acerca da moradia para a população em situação de rua sejam feitos com seriedade por parte dos órgãos governamentais e não governamentais, ganhem reforços e ecoem nas políticas públicas de todos os entes federativos.
A luta da e com a população em situação de rua está indissociavelmente interligada com a luta por moradia digna, contra o racismo, contra a aporofobia, por distribuição de renda, pelo direito à cidade e a diversidade de gênero.