O dia 1º de fevereiro marca a ratificação, pelo Brasil, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também conhecida como CEDAW/ONU. Aprovada pela Assembleia Geral da ONU desde dezembro de 1979, o importante documento garantidor de direitos humanos de meninas e mulheres passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro em 1984.
A convenção CEDAW abarca duas frentes de promoção e defesa dos direitos das mulheres. De uma parte, propõe aos Estados-parte a adoção de políticas de promoção de igualdade, determinando que seus signatários se obrigam a fomentar práticas tendentes à modificação de uma cultura que persiste em subalternizar e invisibilizar as mulheres, com o fito de construção de novas práticas sociais mais emancipatórias, libertando as mulheres de papeis/estereótipos de gênero que limitem o exercício de seus direitos enquanto cidadãs plenas.
De outra parte, a convenção CEDAW trata ainda da repressão/coibição de políticas discriminatórias, que promovam a exclusão das mulheres na sociedade, privando-as do livre gozo de seus direitos tanto no âmbito da convivência pública quanto na sua vida privada.
No Brasil, quando se fala em direitos das mulheres, ainda pensamos muito no enfrentamento à violência, notadamente à violência doméstica e familiar, dados os números alarmantes desta realidade no País. Porém, é relevante reconhecer que a violência no âmbito doméstico é fruto de uma cultura patriarcal/machista, que ainda cultiva a ideia de que as mulheres são seres sociais à disposição do lar e das estruturas familiares, que sua autonomia deve ser exercida dentro de papeis sociais pré-definidos. A convenção CEDAW vem nos rememorar que a raiz da violência contra mulheres está na cultura e nas estruturas sociais, de modo que a emancipação feminina ocorrerá quando todas as frentes de enfrentamento à discriminação estiverem em adequado andamento.
Ciente da relevância do tema e da importância da educação em direitos para promoção de desconstruções sociais, em busca de uma nova cultura no que tange às relações de gênero, a Anadep escolheu tratar do assunto em sua campanha nacional, “Em Defesa Delas”. Nossa entidade, para além do árduo trabalho na representação classista de defensoras e defensores públicos estaduais, compreende sua função social e sua responsabilidade política enquanto associação das pessoas constitucionalmente designadas para a promoção de direitos humanos no Brasil. Por isso, atuamos na incidência legislativa e judiciária em prol da população vulnerável, além de realizar campanhas educativas para que o público em geral conheça melhor seus direitos e o trabalho da Defensoria Pública.
Assim é que, entre maio de 2019 e maio de 2020 a associação promoveu eventos, divulgou cards, formulou uma cartilha e publicou uma sequência de artigos tratando de diversos espectros relacionados aos direitos das mulheres, divulgado o trabalho realizado pelas defensoras e pelos defensores públicos na promoção e defesa das mulheres brasileiras.
O início da pandemia causada pelo coronavírus trouxe, porém, novos desafios ao trabalho de defesa dos direitos das mulheres. A necessidade de confinamento, o lema “fique em casa”, que parecia tão protetivo e assegurador da saúde da população em geral, impôs, de outro lado, a contínua convivência de várias meninas e mulheres com seus agressores. Além disso, os serviços de acolhimento e denúncia de violências tiveram o atendimento presencial interrompidos ou reduzidos drasticamente, dificultando ainda mais as vias de acesso aos equipamentos públicos pelas mulheres. Romper com o ciclo de violência passou a ser cada vez mais desafiador, particularmente para mulheres de baixa renda e com pouco ou nenhum acesso às tecnologias, para quem fazer uma “denúncia on-line” é muitas vezes impossível.
Em alguns estados, observamos, inicialmente, o declínio do registro de boletins de ocorrência envolvendo a aplicação da Lei Maria da Penha, do que se seguiu um aumento das taxas de feminicídio. Há uma correlação lógica: se à mulher impõe-se mais dificuldade na denúncia de seu agressor, os meios de prevenção de novos episódios de violência (a concessão de medidas protetivas de urgência, por exemplo) não funcionarão, expondo-a a maior risco de feminicídio.
O contexto da pandemia também impactou o enfrentamento à violência sexual entre meninas e mulheres, em especial porque os poucos serviços de saúde que prestavam assistência especializada para casos tais sofreram forte impacto, com a necessidade de realocação de profissionais da saúde para atender à pandemia. Serviços que já funcionavam precariamente no País ficaram ainda mais prejudicados com a perda de profissionais, dificultando o acesso das vítimas de violência sexual a tratamento preventivo para doenças, assim como ao direito à interrupção legal da gravidez.
A crise econômica vivida pelo Brasil também impacta frontalmente os direitos das mulheres, em especial se considerarmos a intersecção entre gênero, raça e classe. O empobrecimento populacional impactou muito mais fortemente mulheres negras, expondo-as a novos fatores de vulnerabilidade social, aqui compreendida como a fragilização do acesso das mulheres a seus direitos e políticas públicas que os assegurem.
O País, lamentavelmente, tem outros marcadores que evidenciam as desigualdades de gênero que atravessam a vida das mulheres. No âmbito da produção acadêmica, por exemplo, observou-se a redução de publicações e conclusões de cursos de pós-graduação por mulheres durante a pandemia, ao passo em que a produção acadêmica entre os homens apresentou aumento, evidenciando que a imposição de isolamento social sobrecarrega mulheres com o trabalho reprodutivo (cuidado com o lar e com as pessoas da família, colocando-as em último lugar na ordem de prioridades de suas próprias vidas).
É relevante ainda destacar a baixa representatividade das mulheres na política brasileira, outro cenário que indica as barreiras sociais enfrentadas por mulheres que optam por ocupar espaços decisórios e/ou de poder. Se meninas são criadas com a crença de que os espaços de liderança, protagonismo e decisão coletiva devem ser ocupados por homens, sentem-se desestimuladas a lançar-se na vida política. Quando mulheres corajosamente o fazem, com frequência são alvo de violências e invisibilidade no exercício de seus cargos. Inúmeros são os exemplos no País de congressistas que sofrem ofensas baseadas no gênero, constrangimento ao exercício de seus cargos ou mesmo ameaças de morte/estupro e violências sexuais por seus pares.
Por fim, mas não menos relevante, deve-se levar em conta que as dinâmicas de gênero patriarcais impõem também profunda discriminação contra mulheres trans. Muito embora haja o reconhecimento jurídico de sua condição de mulher pelo sistema brasileiro, mulheres trans continuam sendo alvo de gravíssimas violências. Performar e viver a feminilidade no Brasil é suficiente para colocar em risco a vida de uma mulher trans, alvo de diversas formas de violência, discriminação e exclusão pelo simples fato de se reconhecer enquanto mulher.
Observado isso, parece-nos evidente que o Brasil tem muito a caminhar no sentido da implementação da convenção CEDAW. É necessário compreender o amplo espectro deste importante documento garantidor de direitos humanos das mulheres. É necessário expandir o olhar das pessoas responsáveis pelo enfrentamento às diversas formas de discriminação contra a mulher, compreendendo que tratamos de questões imbricadas na edificação de nosso tecido social, articuladas com o racismo, pedra fundamental da formação da cultura e do Estado brasileiro.
Enfrentar a discriminação sofrida pelas mulheres, de forma eficaz e potente, implica no reconhecimento da não universalidade da vivência destas e na necessidade da adoção de um olhar interseccional para a construção de políticas públicas. Implica no reconhecimento de que a violência doméstica e familiar contra as mulheres não é a única forma de violação dos direitos desse grupo, na medida em que violências simbólica, institucional, política, epistemológica, dentre outras, contribuem fortemente para a reificação de estereótipos de gênero e exclusão da mulher enquanto cidadã no pleno exercício de seus direitos.
Com o marco de 38 anos de ratificação da convenção CEDAW pelo Estado brasileiro, é preciso manter a esperança de que é possível caminhar rumo à emancipação das meninas e mulheres no Brasil e a ANADEP seguirá com seu compromisso de persistir incidindo em prol desses direitos.
Rita Lima, vice-presidenta institucional da ANADEP