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05/01/2022

Direito a ter direitos na velhice - capacidade jurídica e tomada de decisões

Fonte: Revista Justiça&Cidadania
“E, se assinasse algum documento, mesmo com Alzheimer, checava cinco vezes. Se não concordasse, não assinava. Checava cada decisão que as advogadas tomavam, para ver se estavam fazendo certo. Sabia como seria o seu futuro. Sabia que a demência era um caso não só para a medicina, mas também para o Judiciário. Sabia que havia leis que a protegiam e preservavam o bem (e os bens) familiar(es). Acreditava na Justiça.”[1]
 
(PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. 1ª edição – Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. 2ª reimp. 2016, p. 23.)
 
Introdução
 
A obra de Marcelo Rubens Paiva “Ainda Estou Aqui”, publicada pela primeira vez no mesmo ano em que foi assinada pelo Brasil a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos, retrata a história da mãe do autor, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, ou Eunice Paiva, advogada que, tendo ela mesma ajuizado ações de interdição, aos 77 anos viu-se sujeita a este rito, pelo qual se objetiva declarar a incapacidade de uma pessoa, restringindo, assim, o seu protagonismo no exercício de direitos civis.
 
Eunice Paiva, advogada militante e dedicada a enfrentar a violação de direitos humanos no Brasil, que muito lutou pela democracia, foi diagnosticada com Alzheimer, o que levou ao questionamento de sua capacidade, debate versado nos processos de interdição e internação não desejada.
 
A interdição e a internação compulsória ou involuntária atingem as pessoas idosas cuja capacidade jurídica é questionada em razão da habilidade para tomar decisões, e se inserem na lógica da institucionalização, seja sob o argumento da proteção à integridade e aos bens pela via da interdição, seja sob o argumento da necessidade de cuidados específicos que seriam prestados em uma instituição hospitalar ou congênere, afastando, assim, o idoso de uma situação de risco.
 
Ao contrário de muitas pessoas, a personagem central do livro consentiu com o pleito de interdição e pôde escolher aquele que viria a ser seu curador, a quem incumbiria, a partir de então, a adoção de providências visando o seu bem-estar e a proteção de seus direitos civis. E mais do que consentir com o pleito de interdição, em razão do diagnóstico precoce do Alzheimer e de um acervo patrimonial confortável, ela pôde decidir se, de fato, queria e precisava da medida de interdição, e não deixou de ser respeitada em suas preferências e vontades.
 
Essa situação, contudo, não se verifica com regularidade no Sistema de Justiça. As ações de interdição e de internação não desejada são iniciadas por terceiros que não a própria pessoa em situação de progressiva ou atual necessidade de apoio para as mais diversas atividades da vida que podem incluir a tomada de decisões.
 
Na prática, a análise jurídica da capacidade baseia-se em questionário e modelo que desconsideram a abordagem correta da habilidade para tomar decisões, não realizam uma análise funcional e relacional para além das dificuldades da pessoa e adotam conceitos exclusivamente jurídicos ou sem fundamentação científica (faculdades mentais, discernimento e incapacidade para os atos da vida civil).
 
Não é incomum que faltem pessoas legitimadas para o exercício da curatela ou que as pessoas inicialmente autorizadas a exercerem tal função sejam substituídas ou removidas ao longo dos anos em que a curatela é judicialmente (e indefinidamente) mantida.
 
A temática da capacidade jurídica, contudo, impacta diretamente a essência da condição humana, qual seja, a possibilidade de autorrealização, de definir um plano de vida de acordo com nossas vontades e preferências, ainda quando de forma apoiada. Hoje está regulada segundo o modelo social, novo paradigma estruturado a partir de normas constitucionais e positivadas na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, que por sua vez informam e conformam a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a qual, entre outras disposições, promoveu algumas alterações nos modelos, ainda pouco avançados, do Código Civil e do Código de Processo Civil.
 
À semelhança da legislação sobre os direitos humanos das pessoas com deficiência, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos, assinada pelo Estado brasileiro e aprovada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 15 de junho de 2015, introduziu a concepção social da velhice, sendo certo que neste modelo todos os idosos gozam de capacidade jurídica para viver de acordo com suas escolhas (vontades e preferências), as boas e as ruins, e não podem ser considerados “objetos” de proteção pelo Estado ou por terceiros.
 
O contexto normativo atual já não permite a adoção de expressões e institutos ainda recorrentes no Sistema de Justiça pátrio, sobretudo os referenciais da pessoa incapaz e da interdição civil, que devem – ou deveriam – causar arrepio aos juristas. Por uma razão simples: A necessidade de apoios para a tomada de decisões, ou a diversidade funcional na forma de expressar as próprias vontades, não anula a condição de pessoa nem tampouco suprime o direito desta ao igual reconhecimento perante a lei. Não se admitindo, em razão disso, modelos substitutivos das vontades dos sujeitos, exceto quando, destaca ALBUQUERQUE (p. 184), a pessoa está em coma, estado vegetativo persistente ou com demência grave e em estágio avançado, hipóteses nas quais “não possui capacidade mental para decidir naquele momento da sua vida”, embora permaneça como titular do direito à capacidade jurídica.
 
Mas a nossa sociedade precisa avançar, com urgência, no enfrentamento da discriminação institucional, disseminada pela interpretação e aplicação do direito em desconformidade com o sistema constitucional e de direitos humanos. A presente reflexão, portanto, propõe uma leitura do direito do idoso a tomar decisões, ainda quando questionada ou restringida sua capacidade pela via da interdição ou fixação da curatela, à luz da legislação mais atualizada que direciona a interpretação das demais normas sobre a matéria, inclusive a interpretação do Estatuto do Idoso e da Política Nacional do Idoso, quando fazem menção específica ao presente tema sem se atentar à superação do modelo saúde-doença.
 
O problema: violação de direitos pela via da ação judicial
 
O caso de José, nome fictício, é emblemático. Assim como muitas outras pessoas submetidas a um processo de interdição e internação não desejada, era proprietário de diminuto acervo patrimonial. Morava em sua casa e recebia a quantia de um salário advindo do benefício da prestação continuada. Pessoa idosa e com deficiência, em razão de impedimento visual e do uso problemático de álcool durante alguns anos de sua vida, viu-se em situação de risco, pois necessitava de apoio para atividades da vida diária, tais como, cozinhar, limpar a casa, quitar tributos e serviços essenciais, e reduzir o uso de álcool para não lhe prejudicar tanto. Não tinha vínculos familiares; apenas poucos vizinhos com quem, bem ou mal, convivia.
 
Ao contrário de Eunice Paiva, o caso de José é frequente no Sistema Justiça. Ele não consentiu com a ação de interdição, cuja curatela foi fixada indefinidamente; não consentiu com sua internação em comunidade terapêutica, a qual perdura há muitos anos; nunca mais usufruiu de seu patrimônio, nem sequer foi consultado ou orientado sobre como administrá-lo. Embora a minoria tenha sido bem-intencionada, houve sucessivos curadores que não consultaram nem orientaram José sobre a administração de seu patrimônio, não evitaram que fosse despojado de sua casa e internado contra sua vontade, e não lhe asseguraram apoios e atendimentos especializados a que teria direito. Não recebeu atenção especializada para superar barreiras em razão da deficiência, como, por exemplo, orientação e recursos de acessibilidade para mobilizar-se com independência em sua casa e em outros espaços.
 
Conquanto tivesse uma casa própria e direito ao benefício da prestação continuada ou outra forma de assistência social e cuidado em saúde, o Poder Público jamais lhe disponibilizou meios efetivos de existência em liberdade e respeitadas as suas vontades, antes ou durante o processo de interdição.
 
Ajuizada a ação judicial de interdição, pela qual, ademais, determinou-se a internação não desejada, José deixou de ter voz. Participaram do processo o juízo de direito do foro de domicílio do idoso (já não mais existente), a promotoria de justiça como autora (substituta processual), os sucessivos curadores materiais e a advocacia na defesa processual de José (curadoria especial), uma vez que na comarca não havia defensoria pública. Também participaram do processo a instituição na qual fora internado e a Administração Pública, apresentando relatórios e informações sobre vagas em serviços, custeios destes e a saúde de José. Todos, em tese, legítimos representantes de seus interesses e preocupados com a proteção de seus direitos.
 
Quando do ajuizamento da ação e durante a sua tramitação, não houve a participação de uma equipe interdisciplinar especializada (e realmente qualificada), isenta de interesse e que estivesse focada, apenas, no bem-estar de José e em realizar uma análise funcional da sua habilidade de tomar decisões.
 
Contrariando a propalada lógica do instituto, o processo de interdição, cumulado com a internação de José por tempo indefinido, acentuou a sua dependência e não preservou direitos: foi internado em uma comunidade terapêutica longe de seu território de referência, onde estava sua casa; a comunidade terapêutica estava em local afastado e de difícil acesso; deixou de comprar bens que tinha vontade, pois não administrava o seu benefício; seu benefício passou a ser utilizado para quitar o serviço prestado pela instituição, onde foi internado contra a sua vontade; recebia pronta as refeições preparadas por funcionários da comunidade terapêutica; foi obrigado a se adaptar a todos os horários e à agenda da instituição; passou a conviver somente com as pessoas internadas; aprendeu a se deslocar apenas no espaço institucional, apoiando-se nos braços de um amigo que fez ali, e sem receber recursos de acessibilidade; deixou de ir ao mercado, à farmácia, ao banco e, obviamente, a qualquer equipamento de lazer ou cultura fora da instituição. Teve que se conformar com as atividades impostas pela instituição, pouco pensadas para atender às singularidades dos sujeitos que ali se encontram. E nunca mais retornou para sua casa, que se deteriorou.
 
José viu-se aprisionado a um plano de vida que não havia escolhido. O seu desejo manifestado muito tempo depois para nós da defensoria pública? Retornar para sua casa e ali viver, com apoio, inclusive de um amigo que fez na instituição. A sua vontade era clara e inequívoca; a decisão estava tomada. A dificuldade de comunicação de José, desencadeada por uma série de efeitos advindos da longa institucionalização, foi notada. Mas, segundo avaliação interdisciplinar especializada, promovida na atuação da defensoria pública, seria possível atendê-la. Por óbvio, mostrou-se imprescindível a iniciativa estatal no sentido de apoiar a decisão tomada por José.
 
É um caso difícil, sem dúvida.
 
Sem dúvida, a injustiça social no País, agravada pela Emenda Constitucional nº 95, que impactou o Sistema Único de Assistência Social, e a resistência em se investir no Sistema Único de Saúde, inclusive na Rede de Atenção Psicossocial, reflete diretamente no(s) programa(s) e na(s) política(s) de atenção especializada ao idoso vulnerabilizado por múltiplos fatores.
 
No caso, acentuou as barreiras a serem enfrentadas para se respeitar a decisão de José. Isto porque a não adoção de medidas efetivas pelo Estado reflete na ausência ou precariedade dos serviços domiciliares para idosos que necessitam de apoio no lar. Na ausência ou precariedade de serviços públicos que assegurem diagnóstico precoce e tratamento de situações mais presentes na velhice, como o Alzheimer, artrose e a catarata, ou de situações que também fazem parte da velhice, como o uso abusivo de álcool. Reflete, também, na ausência ou precariedade dos serviços de reabilitação à pessoa idosa com deficiência. E, por fim, na ausência ou precariedade dos serviços da política de redução de danos, destinados a reduzir prejuízos e assegurar direitos nos casos de uso problemático de álcool, e na política de moradia independente e assistida àqueles submetidos a longos períodos de institucionalização.
 
Do mesmo modo, a resolução do caso mostrou-se mais difícil porque não havia, à época do ajuizamento da ação de interdição, curador(es) de confiança da pessoa – cujas vontades e preferências sequer foram mencionadas ou registradas nos atos oficialmente expedidos. A constatação de que inexistem curadores, seja no ajuizamento ou na tramitação da ação judicial, demandaria – pensando na melhor terminologia – uma estrutura de apoiadores profissionalizados.
 
Era mais fácil e menos oneroso ao Estado interditar os direitos civis de José e interná-lo, indefinidamente, ao invés de enfrentar a questão estrutural e promover alternativas consentâneas à dignidade humana e ao modelo social que alimenta o pleno exercício da capacidade jurídica. Esta é realidade que orienta a atuação do sistema de justiça nesses casos.
 
Mas o plano de vida determinado por terceiros, em detrimento do consentimento e vontades de José, significou, sem dúvida, flagrante violação de direitos humanos. É preciso reconhecer isto para avançar no sentido do modelo ideal e normativo, em que o protagonismo pertence à pessoa idosa e ao Estado cabe prover condições neste sentido, através da implementação de ações, programas e políticas. É preciso garantir direitos no Sistema de Justiça.
 
Em que sociedade vivemos?
 
Como determinam as 100 Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, aprovadas pela XIV Conferência Judicial Ibero-americana, durante os dias 4 a 6 de março de 2008, é preciso defender os direitos das pessoas em condição de vulnerabilidade e, portanto, configurar o Sistema de Justiça segundo esta premissa. Isto porque, destaca DABOVE, nenhuma utilidade tem o Estado que reconhece a titularidade de um direito se, vulnerabilizada por fatores biopsicossociais, culturais e econômicos, a pessoa não puder efetivamente acessar tais direitos.
 
É imprescindível destacar a lição de DABOVE, quando menciona o julgamento realizado em 17 de agosto de 2011 pela Suprema Corte da província de Buenos Aires, no caso concreto em que a saúde mental de uma idosa, a sua lucidez, estava em debate. Referindo-se à decisão da Suprema Corte, diz a autora que o direito das pessoas idosas, para além de uma perspectiva técnica, possui uma dimensão muito humana: “El derecho de las personas vulnerables es la cara oculta de una sociedad humana compleja, no es unicamente de las personas que gozan de buena salud. Es un signo de humanidad. Es bien conocido el dicho: dis-mois comment la société protège la personne vulnerable, et je te dirai dans quelle société tu vis”.
 
Sob a perspectiva normativa, a nossa sociedade reconhece à pessoa idosa o pleno exercício de sua capacidade jurídica, assegurando-lhe o direito a tomar decisões e ter suas vontades respeitadas, contando, quando necessário, com uma rede de apoios formais e informais, judiciais e extrajudiciais.
 
Tais atributos são essenciais à concretização do princípio da autorrealização previsto desde a Resolução 46/1991, aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas, que reúne os Princípios das Nações Unidas para o Idoso.
 
A premissa constitucional está no art. 230 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Este artigo diz que temos o dever de amparar o idoso. Segundo o texto da norma, amparar o idoso é assegurar sua participação na comunidade; é defender sua dignidade e bem-estar; é garantir o seu direito à vida. Diz, também, que os programas de amparo serão executados preferencialmente em seus lares. O dever de amparar é ramificado, e nesta ramificação caberá a cada um de nós – Estado, família e sociedade, segundo o seu papel e competência legalmente prevista, respeitar e/ou adotar medidas.
 
A Política Nacional do Idoso (Lei Federal nº 8.842/1994), no seu art. 3º, inciso I, repetiu a norma constitucional, acrescentando que nós devemos assegurar às pessoas idosas todos os direitos da cidadania.
 
O Estatuto do Idoso (Lei Federal nº 10.741/2003), no seu art. 10, que dispõe sobre os direitos da pessoa idosa à liberdade, ao respeito e à dignidade, assegura os direitos civis, políticos, individuais e sociais das pessoas com 60 anos ou mais (caput). Entre as definições do direito à liberdade, estabelece não só a liberdade de ir e vir, mas, também, a de se expressar e participar da vida familiar, comunitária e política, dentre outros (art. 10, incisos I a VII). No âmbito do direito ao respeito, assegurou a preservação da autonomia e a inviolabilidade à integridade física, psíquica e moral (art. 10, §2º).
 
Todos esses direitos devem ser assegurados a todos os idosos, pois são inerentes à sua condição de pessoa. O questionamento sobre a habilidade de um determinado idoso para decidir sozinho sobre algo que lhe diga respeito não autoriza, nem mesmo pela via da ação judicial, que tais direitos sejam suprimidos e suas vontades sejam ignoradas ou flagrantemente violadas. Isto atenta contra a dignidade humana.
 
Se havia alguma dúvida sobre isso, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos (CIPDHI), vigente no plano internacional desde 13 de janeiro de 2017, e cujo procedimento de ratificação ainda está pendente no Congresso Nacional, definitivamente assegurou o direito do idoso à capacidade jurídica. Referiu-se, expressamente, aos direitos da pessoa idosa ao igual reconhecimento perante a lei, a tomar decisões sobre sua vida, inclusive como e onde morar, e a consentir com atendimentos ou tratamentos de saúde.
 
Os direitos a tomar decisões e a definir o seu plano de vida estão expressamente contemplados no direito à autonomia e à independência previsto no art. 7º do texto. Quanto a isso, a Convenção Interamericana determinou, inclusive, que o idoso “tenha acesso progressivamente a uma variedade de serviços de assistência domiciliar, residencial e outros serviços de apoio da comunidade, inclusive a assistência pessoal que seja necessária para facilitar sua existência e sua inclusão na comunidade e para evitar seu isolamento ou separação desta.”
 
No seu art. 11, a Convenção Interamericana previu a irrenunciabilidade do direito ao consentimento livre e informado no âmbito da saúde, registrando que o não reconhecimento deste direito atenta contra direitos humanos do idoso. Para o cumprimento de tal finalidade, a Convenção atribuiu ao Estado o dever de adotar mecanismos que viabilizem a orientação e informação dos idosos de forma acessível, considerando-se múltiplos fatores, como, por exemplo, necessidades específicas de comunicação.
 
Nesse mesmo âmbito do direito à saúde, a Convenção vedou expressamente qualquer forma não consentida de tratamento em saúde e pesquisa científica. Excepcionou, tão somente, a hipótese de emergência em saúde somada ao risco de morte e à impossibilidade de se obter o consentimento no momento da intervenção. Neste ponto, a Convenção reforça a vedação de tratamento forçado, não consentido, previsto no art. 13 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que admite, apenas em caráter excepcional, a dispensa do consentimento quando presentes os requisitos cumulativos do risco de morte e emergência em saúde, que impeçam a obtenção do consentimento da pessoa em situação de socorro.
 
No tocante à capacidade jurídica da pessoa idosa, a CIPDHI adotou normativa similar à da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que lhe é anterior e, junto com seu Protocolo Facultativo, foi ratificada pelo Brasil com status de norma constitucional por meio do Decreto Legislativo nº 186/2008, e promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009.
 
A CIPDHI assegurou a toda pessoa idosa o igual reconhecimento perante a lei. No seu art. 30, dispôs que “Os Estados Partes assegurarão que, em todas as medidas relativas ao exercício da capacidade jurídica, se proporcionem salvaguardas adequadas e efetivas para impedir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade jurídica respeitem os direitos, a vontade e as preferências do idoso, sejam isentas de conflito de interesses ou de influência indevida, sejam proporcionais e adequadas às circunstâncias do idoso, se apliquem no prazo mais curto possível e estejam sujeitas a exames periódicos por parte de uma autoridade ou um órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que essas medidas afetem os direitos e interesses do idoso.”
 
Reproduziu, assim, o disposto pelo art. 12 da CDPD: “Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.”
 
Neste sentido, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos adotou o modelo social que rechaça a substituição ou supressão da vontade e supera o modelo saúde-doença, baseado na discriminação entre pessoas capazes e pessoas incapazes, para instituir, como direito do idoso, um sistema de apoios ao exercício da capacidade jurídica e, em última análise, garantir a autonomia.
 
A ideia principal a conduzir a interpretação das normas que dialogam diretamente com a capacidade jurídica na velhice, segundo BUDASSI, é a de que os idosos são titulares de direitos que asseguram um espaço no qual podem desenvolver potencialidades e uma rede de apoios para, mesmo diante de restrições ao exercício de sua capacidade, tomarem decisões e acessarem recursos para autorrealização.
 
No âmbito da legislação sobre direitos humanos das pessoas com deficiência que rege a mesma matéria, ALBUQUERQUE desenvolveu sua linha de pesquisa a partir dos documentos do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, instituído pela Convenção e Protocolo Facultativo incorporados na legislação brasileira, e do QualityRights do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da Organização da Mundial da Saúde (OMS). Ainda, solicitou informações ao Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho Nacional do Ministério Público, ao Supremo Tribunal Federal, ao Superior Tribunal de Justiça, aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Ministérios Públicos dos Estados sobre as ações de interdição.
 
A despeito da carência de informações e falta de sistematização, apurou a pesquisadora não só a “magnitude do problema da interdição no Brasil” em termos quantitativos, como constatou “um grave quadro de violação de direitos humanos”, chamando a atenção para o fato de que até mesmo a revogação da interdição total, que seria apenas um pequeno avanço no sentido de concretizar a legislação sobre a matéria, não tem sido observada.
 
Com base em sua ampla e fundamentada pesquisa, ALBUQUERQUE (p. 231) propõe e detalha a Abordagem da Tomada de Decisão Apoiada como modelo de capacidade jurídica mais eficaz. Anota que “Essa Abordagem parte da concepção de que as habilidades decisionais podem ser promovidas e construídas, assim, com o adequado suporte, mesmo pessoas com graves deficiências ou transtornos mentais podem realizar escolhas e conduzir a própria vida”.
 
Tal raciocínio deve permear o instituto da interdição, que, se ainda é utilizada, será sempre parcial e afetará somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, além de configurar medida extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e pelo menor tempo possível (artigos 84, 85 e 114 da Lei Brasileira de Inclusão, e alteração dos artigos 3º e 4º do Código Civil).
 
O mesmo raciocínio deve permear a tomada de decisão apoiada, instituída pela Lei Brasileira de Inclusão e incluída no Código Civil (art. 1783-A); a institucionalização para atendimento socioassistencial ou cuidado em saúde, sobretudo quando fundada na Política Nacional do Idoso, Estatuto do Idoso e na Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei Federal nº 10.216/2001); e a formulação e oficialização das diretivas antecipadas de cuidados em saúde (ou testamento vital), que, atualmente, carece de legislação e é referida apenas pela Resolução nº 1.1195/2012 do Conselho Federal de Medicina.
 
Nesse sentido, é não só possível como imperioso assegurar que antes e durante o processo de interdição, fixação de curatela e internação não desejada, a pessoa idosa se manifeste e seja ouvida, quer mediante o seu comparecimento a um determinado serviço, quer mediante o comparecimento de agentes do serviço no local onde se encontra.
 
O ato de escuta da pessoa idosa vulnerabilizada e cuja capacidade está sendo questionada, e consequente consideração de suas vontades e preferências, deve assumir contornos de direito e ser respeitado na prática do sistema de justiça, sobretudo quando se adota a via da ação judicial para restringir direitos assegurados a todas as demais pessoas.
 
Mas, manifestar-se sobre o quê? Sobre as dificuldades que a colocam em situação de risco, sobre os serviços públicos que já buscou para evitar a situação de risco, sobre os atendimentos em saúde que gostaria e poderia receber, sobre como e onde moraria e sobre a situação atual dos seus vínculos familiares e comunitários, se possui vínculos com pessoas a quem confiaria determinados cuidados e de quem receberia apoio, respeitando suas preferências.
 
É preciso orientar a pessoa idosa sobre a situação de risco em que se encontra, informá-la sobre os serviços que existem e consultá-la se deseja apoio, avaliando quais seriam necessários para afastar a situação de risco e assegurar, acrescer, viabilizar o exercício de direitos. Respeitar as suas escolhas, sem prejuízo de orientação acessível, oferta de cuidado e diálogos contínuos.
 
Tais encaminhamentos devem, igualmente, direcionar o interrogatório judicial e a perícia judicial no processo de interdição ou de fixação de curatela – muitas vezes dispensados pelo magistrado. O questionário, teste ou instrumental aplicado no curso do processo judicial deve avaliar a habilidade do idoso de tomar decisões e ser formulado segundo um padrão aceito cientificamente e que melhor observe o sistema constitucional e de direitos humanos.
 
Como bem destaca ALBUQUERQUE (p. 238), “enquanto o tratamento da avaliação da capacidade decisional for assemelhado a qualquer outra perícia e o ordenamento jurídico brasileiro não incorporar a concepção vigente de que os processos de guardianship ou curatela não podem ser mais regidos pela lógica paternalista e de coisificação da pessoa avaliada, essa situação despropositada irá se manter”.
 
Transparece cristalina, portanto, a clara violação de direitos humanos, com absoluta restrição de direitos civis, a que o idoso José esteve sujeito em decorrência da ação judicial de interdição.
 
Conclusão
 
A toda pessoa idosa é reconhecido o direito à capacidade jurídica e, na impossibilidade de sozinha tomar decisões, terá direito a um sistema de apoios formais e informais que oferte mecanismos efetivos para realizar escolhas e definir seu plano de vida.
 
O questionamento sobre a habilidade de um determinado idoso para decidir, sozinho e naquele momento, sobre algo que lhe diga respeito não autoriza, nem mesmo pela via da ação judicial, que seus direitos civis, sobretudo os existenciais, sejam suprimidos e suas vontades sejam ignoradas ou flagrantemente violadas. Isto atenta contra a dignidade humana.
 
Assim é que está configurado o direito à capacidade jurídica contemplado no modelo social, novo paradigma estruturado a partir de normas constitucionais previstas na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, que por sua vez informam e conformam o Estatuto do Idoso e a Política Nacional do Idoso, assim como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a qual, entre outras disposições, promoveu algumas alterações nos modelos, ainda desajustados, do Código Civil e do Código de Processo Civil.
 
A Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos (CIPDHI), assinada pelo Brasil, vigente no plano internacional desde 13 de janeiro de 2017, e cujo procedimento de ratificação ainda está pendente no Congresso Nacional, adotou esse mesmo modelo e definitivamente assegurou o direito do idoso à capacidade jurídica.
 
Referiu-se, expressamente, aos direitos da pessoa idosa ao igual reconhecimento perante a lei, a tomar decisões sobre sua vida, boas e ruins, inclusive como e onde morar, e a consentir com atendimentos ou tratamentos de saúde, em diversas passagens do texto aprovado na OEA em 15 de junho de 2015.
 
Assegurar tais direitos, porém, não é tarefa fácil. Depende da adoção, por parte do Estado, de ações, programas e políticas que identifiquem as pessoas idosas vulnerabilizadas por fatores biopsicossociais e de déficit decisional, em situação de violação de direitos fundamentais que a coloque em risco. E, uma vez visíveis aos olhos dos agentes políticos, que o Estado estruture um sistema de apoios destinados a afastar a situação de risco, sem que isto implique ou agrave a violação de direitos humanos.
 
Porém, enquanto o Estado não se desincumbe satisfatoriamente do seu dever de adotar ações, programas e políticas no sentido do modelo legal, é premente e perfeitamente possível o uso do instrumental previsto na legislação para, em casos como o de José, assegurar o exercício da capacidade jurídica pelo idoso, sem decreto de sua interdição e incapacidade, garantindo-lhe o direito de tomar decisões e ter suas vontades e preferência respeitadas – ainda que, no percurso e ao final, descortine-se a impossibilidade absoluta de expressão da própria vontade em razão de coma, estado vegetativo permanente ou doença degenerativa em estágio avançado.
 
No caso emblemático de José, aqui narrado, por meio da ação judicial de interdição cerceou-se o direito do idoso em questão à capacidade jurídica e à autorrealização. Ele foi impedido de exercer todos os seus direitos civis, para além daqueles de natureza patrimonial e negocial. Foi internado durante muitos anos contra a sua vontade, em uma instituição que apenas lhe assegurou sobrevivência, mas não o atendimento de direitos personalíssimos no sentido da afirmação de sua identidade e desenvolvimento de suas potencialidades. Não lhe foram assegurados recursos de acessibilidade, serviços de reabilitação e inserção em programa de redução de danos em razão da deficiência.
 
Com o decreto de interdição, viu-se sem voz, cerceado na liberdade de ir e vir, e impedido de tomar decisões sobre todos os aspectos de sua vida, sendo privado de, com suporte e apoios, definir o seu plano de vida, que era o de morar em sua casa.
 
A obra de Marcelo Rubens Paiva “Ainda Estou Aqui”, que inspirou e inaugurou a reflexão deste texto, fala do Alzheimer e da interdição vivenciados pela personagem central, a sua mãe Eunice Paiva, advogada que militou na defesa da democracia e dos direitos humanos, abordando o impacto disso também na vida do autor, suas irmãs e demais pessoas que com eles conviviam.
 
A obra vai além e fala também de um mal, que não é o Alzheimer. Discorre sobre o início do golpe em 1961, a ascensão dos fascistas ao poder em 1964 e a ditadura escancarada em 1968. Fala da destruição do ensino nesta época, da perseguição à cultura, das notícias oficiais mentirosas sobre as mortes, desaparecimentos e outras situações, e da expulsão de pobres dos seus territórios. Ao mesmo tempo, a obra fala da interdição de direitos civis por juízes e peritos em tempos de democracia pela via da ação judicial.
 
Segundo o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, o golpe visava proteger o País da “subversão”, das “ideologias contrárias às tradições de nosso povo” e da “corrupção”. A interdição, de seu lado, visa proteger o idoso de más escolhas e enganos que o coloquem em situação de risco, preservando sua integridade e bem-estar. O Ato Institucional nº 5, afirmando que os instrumentos jurídicos outorgados à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar, serviam de meios para combatê-la e destruí-la, autorizou a intervenção do governo golpista nos estados e municípios, suspendeu garantias constitucionais, autorizou a suspensão de direitos políticos de quaisquer cidadãos e a suspensão de quaisquer outros direitos públicos ou privados caso decretada definitivamente a suspensão dos direitos políticos de um determinado cidadão. A ação de interdição, por sua vez, decreta a incapacidade civil de uma pessoa e lhe restringe o exercício de direitos civis, inclusive direitos existenciais, afirmando que o faz porque o idoso está em atual ou potencial situação de risco, sem capacidade de tomar decisões, e deve ser objeto de proteção.
 
O paralelo é pertinente porque os dois contextos tratados na obra falam sobre direitos humanos e a interdição de direitos por duas diferentes vias. E evidencia a urgência em se abolir os referenciais da incapacidade e interdição presentes no sistema de justiça.
 
A todos os idosos é reconhecido o direito à capacidade jurídica e, ainda que usufruindo de um sistema de apoios, lhe é assegurado o direito a tomar decisões sobre sua vida e ter respeitada as suas vontades e preferências.
 
 
Referências bibliográficas__________________________
 
ALBUQUERQUE, Aline. “Capacidade jurídica e direitos humanos”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
 
BUDASSI, Rosana di Tullio. “Autorrealización: atributos e capacidade jurídica”. P. 103-116. In “Derechos humanos de las personas mayores”. / María I. Dabove. 2ª ed., – Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Astrea, 2017.
 
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Nota__________________________
 
[1] PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. 1ª edição – Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
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