Nº 016 - 07 de junho de 2023
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No dia 4 de maio último, a ANADEP lançou oficialmente a campanha nacional "DEFENSORIA PÚBLICA: em ação pela inclusão". A campanha é uma iniciativa da ANADEP com apoio das Associações Estaduais e do DF, das Defensorias Públicas Estaduais e do DF, além do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege).
Um dos objetivos da Campanha é ressaltar a atuação das defensoras e dos defensores públicos na garantia dos direitos das pessoas com deficiência.
Outro foco da Ação é abordar a importância de se efetivar a acessibilidade na cultura organizacional da Defensoria Pública. Segundo dados do Levantamento do perfil étnico-racial e interseccional de defensoras e defensores públicos divulgado pela ANADEP, em 2022, ao menos 20 defensores(as) informaram conviver com alguma deficiência, dentre os quais: 4 com deficiência auditiva, 2 com deficiência física, 5 com visão monocular, 1 com esclerose múltipla e 1 com surdez unilateral.
Para explicar um pouco essa realidade, a ASCOM ANADEP dialogou com defensoras públicas e defensores públicos com deficiência para entender como é a cotidiano do grupo no ambiente institucional e ouvir quais são as principais barreiras enfrentas no seu ambiente de trabalho. Confira:
ANADEP -
Desde quando cada um(a) de vocês está na Defensoria Pública? Podem nos contar um pouco de como foi o ingresso na Instituição e como foi a experiência de cada um(a) em seus respectivos concursos?
Marisa Fonseca (DPE-PR): Ingressei na DPE-PR no final de janeiro/2023, tendo prestado as provas do concurso em 2022. No geral, não tive grandes empecilhos para prestar as provas de concurso. Já no momento da inscrição, disponibilizaram espaço para que o candidato com deficiência informasse o atendimento e a adaptação necessária à sua deficiência. Contudo, tive alguns episódios que me deixaram apreensiva, especialmente no período de restrições em razão da pandemia de Covid-19.
Por ter deficiência auditiva, preciso fazer leitura labial, então o uso de máscara praticamente impossibilitava que eu entendesse a fala do locutor. Já nas fases objetivas e subjetivas, ficava apreensiva por não conseguir entender as informações passadas pelos fiscais ou demais colaboradores, principalmente na prova discursiva, quando traziam informações de última hora sobre materiais permitidos e proibidos.
Fiz cerca de sete concursos nessa época, e apenas em um deles houve um profissional que não utilizava máscara, e se encarregava de passar as informações necessárias para candidatos com deficiência auditiva.
Fiquei receosa quando passei para a fase oral, por não saber se os examinadores estariam usando máscara ou não, e se concordariam em me examinar sem máscara. Todavia, nas fases orais que fiz, os examinadores já estavam sem máscara, e, antes de iniciar a prova, eu informava sobre a deficiência auditiva.
Amanda Fernandes (DPDF): Estou na Instituição desde agosto de 2020. O ingresso na Defensoria do DF veio depois de longas lutas que o concurseiro precisa enfrentar para atingir êxito nos concursos hoje em dia. Eu trabalho desde os 17 anos, então sempre precisei conciliar os estudos com outras atividades, inclusive na época da faculdade. Os concursos jurídicos possuem muitas fases e, por vezes, elas são muitos cansativas. Um momento muito marcante é a prova oral. É um momento de muita exposição e vulnerabilidade. Possuo uma deficiência física e naturalmente tive receios de como poderia ser recebida e visualizada, numa situação já tão frágil. Porém, deu tudo certo e consegui a aprovação!
Cosmo Sobral (DPEMA): Eu estou na Defensoria Pública maranhense há 11 anos. Fui o primeiro membro da carreira a ingressar por cotas destinadas a pessoas com deficiência. Já tinha passado em outros concursos por cotas e exercido outros cargos públicos. O grande desafio, no meu caso que tenho deficiência física, é chegar até o local de trabalho, pois os ambientes, em sua grande maioria, não obedecem as diretrizes legais sobre acessibilidade arquitetônicas.
Ao ingressar na Defensoria Pública, quais foram os principais desafios enfrentados para executar o seu trabalho?
Marisa Fonseca: No curso de formação, na qual passamos por experiências em diversas áreas de atuação da Defensoria, identifiquei algumas dificuldades, notadamente: audiência semipresencial. Eu participava de forma presencial e algum participante comparecia de forma virtual. Como o áudio era disponibilizado para todos da sala, em equipamento do fórum, não havia transmissão direta para meus aparelhos auditivos. Então, a fala daquele que participava de forma virtual soava, para mim, como ruído. Entre outras situações, estão: atendimento ao preso em parlatório porque a conversa se dá por telefone; atendimento ao público, em geral, especialmente quando utilizavam máscara; no plenário do júri, em que a testemunha, acusação, réu, falam em posição que impede a leitura labial.
Amanda Fernandes: No meu caso, o principal desafio foi tomar posse durante a pandemia do COVID-19. Entrar num emprego novo já possui diversas barreiras, quando se está num momento tão atípico como esse, então. Tomei posse sozinha. Então, tinha que pedir ajuda aos colegas que nem conhecia pelo meio virtual, WhatsApp e ligações. Também tive dificuldade de conhecer melhor a instituição: quais os trabalhos desenvolvidos, os projetos... Além das enormes dificuldades trazidas pelos assistidos nesse período. Muitas vezes, nós éramos o único espaço do poder público ao qual eles tinham acesso.
Cosmo Sobral: No meu espaço de trabalho ainda existem falhas no que diz respeito à acessibilidade. Não temos rota acessível para pessoas com deficiência visual e o prédio não tem sinais em braile. O espaço é escorregadio e os elevadores são estreitos. Ademais, faltam pessoas habilitadas para conversar em língua de sinais. Apesar disso, observo avanços!
Hoje você atua em um ambiente ideal para uma pessoa com deficiência?
Marisa Fonseca: O ambiente de trabalho atual, o ofício em que estou substituindo tem um ambiente adequado às minhas necessidades, às especificidades da minha deficiência. Ademais, houve espaço para que eu informasse eventuais tecnologias assistivas e/ou adaptações que fossem (ou venham a ser) necessárias.
Amanda Fernandes: Infelizmente, não consigo considerar que hoje atuo num espaço ideal para PCD. Ainda vejo muitas barreiras físicas, atitudinais e de pensamento coletivo para que o espaço possa ser ideal. Precisamos de mais pessoas com deficiência dentro dos nossos núcleos de trabalho, precisamos de mais acessibilidade para que nossos assistidos possam chegar a nós. Esse é um problema da nossa sociedade como um todo, que ainda não internalizou por completo o modelo social de deficiência, que entende que depende de nós, como sociedade, eliminar as barreiras.
Cosmo Sobral: No meu espaço de trabalho ainda existem falhas no que diz respeito à acessibilidade. Não temos rota acessível para pessoas com deficiência visual, não tem sinais em braile, o espaço é escorregadio, elevadores estreitos e faltam pessoas habilitadas para conversar em língua de sinais. Apesar disso, observo avanços!
A Defensoria é uma instituição que tem como base a promoção dos direitos humanos. No entanto, há relatos de que muitos(as) defensores(as) públicos(as) com deficiência sofrem preconceito e/ou episódios de capacitismo em seu cotidiano. Como lidar?
Marisa Fonseca: A princípio, é preciso desmistificar as deficiências, pois não devem ser tratadas como tabu ou fator que inferioriza, ofende ou reduz as aptidões do indivíduo. Portanto, acredito que a educação em direitos é essencial, bem como a difusão do conhecimento sobre as deficiências e sobre o capacitismo.
Destaco também a relevância da participação das pessoas com deficiência nos espaços de poder, contribuindo para a tomada de decisões políticas, nas instituições e serviços públicos, bem como nas instituições privadas. Além de permitir que contribuam para desmistificar as deficiências, medidas de acessibilidade e inclusão devem ser tomadas em conjunto com os destinatários das ações. Dito de outro modo, é a própria pessoa com deficiência que pode dizer as medidas pertinentes para a sua inclusão, ou como certas medidas ou ações do Estado, suas instituições e particulares podem afetar o pleno exercício de seus direitos.
No âmbito da Defensoria Pública, seja internamente, seja no atendimento ao público, além da participação de pessoas com deficiência nas ações que lhe digam respeito, é de suma importância a capacitação de todos os integrantes da instituição, orientando sobre o atendimento adequado aos diversos tipos de deficiência. Muitos episódios de capacitismo e discriminação ocorrem pela falta de capacitação, uma vez que as pessoas que realizam o atendimento, que recebem a pessoa com deficiência, sequer sabem como atendê-la.
Nesse ponto, entendo que a participação dos usuários do serviço da Defensoria Pública tem especial relevância, para que possam informar as dificuldades e necessidades verificadas no atendimento da Defensoria.
Amanda Fernandes: Sim, infelizmente muitas são as formas de capacitismo. Até mesmo a visão heróica desproporcional de uma pessoa com deficiência ou sua infantilização, são formas comuns de capacitismo institucional. Eu acho que o primeiro passo é sempre ouvir as pessoas com deficiência; ouvir desde como querem ser chamadas, quais são as barreiras existentes, conviver com elas, trazer para o debate, oportunizar espaços de fala e de poder, até saber como todos podem ser multiplicadores desse conhecimento.
Cosmo Sobral: As campanhas internas de conscientização e educação em direitos, cursos de capacitação, criação de comitês dentro das instituições, rodas de conversa sobre a temática, dentre outros, talvez sejam o caminho para remover essas barreiras atitudinais.
A Defensoria Pública é referência no atendimento às pessoas com deficiência. Como é este trabalho?
Marina Fonseca: Não tive experiência de atender pessoas com deficiência na DPE-PR. Todavia, na minha experiência pessoal, existe uma identificação. Por um tempo, fui acompanhada por uma fonoaudióloga surda, com implante coclear. Então, havia uma identificação que impactava no atendimento.
Quando atuava como advogada monitora em serviço de assistência jurídica, atendi uma pessoa com deficiência auditiva, que também relatou ter havido identificação. O atendimento tende a ser mais acolhedor, há uma sensibilidade maior para perceber dificuldades e necessidades que possivelmente passariam despercebidos por pessoas sem deficiência (ou que não convivem com pessoas com deficiência), e a pessoa que está sendo atendida sente-se mais confortável em expor suas demandas.
Amanda Fernandes: Acho um trabalho fantástico e ao mesmo tempo desafiador. A Defensoria atua em defesa de grupos vulneráveis. Nossos assistidos com deficiência, em sua maioria, são hipervulneráveis, ou seja, possuem diversas interseccionalidades de vulnerabilidades e assim, precisam de nossa atenção de maneira global. Muitas vezes, esse olhar de interseccionalidades só é encontrado por eles na Defensoria Pública. Atuamos com um mesmo assistido na saúde, na educação, na assistência social. Por isso, somos grandes formadores de políticas públicas e mudança social efetiva, muito transformador e também de muita responsabilidade.
Cosmo Sobral: Eu trabalho como titular do Núcleo de Defesa das Pessoas com Deficiencia na DPE-MA, em São Luís, juntamente com outro colega e uma equipe de apoio. Percebo que nos esforçamos para prestar um serviço de qualidade. O fato de ser também uma pessoa com deficiência e “ter lugar de fala” dentro do movimento, faz com que compreenda o drama do assistido. Acho que, aos poucos, o nosso trabalho ganha visibilidade social, especialmente pela atuação em causas coletivas envolvendo essas pessoas.
Há uma identificação entre os(as) assistidos(as) com deficiência quando percebem que estão sendo atendidos por pessoas com deficiência? Pode nos contar sua experiência?
Amanda Fernandes: Com certeza. Essa é a parte mais importante de se ter um defensor com deficiência no atendimento. A representatividade acolhe de forma única. Quase sempre quando um assistido com deficiência, ou sua mãe, percebem a minha mão, logo em seguida noto um sorriso carinhoso. Sinto que ainda temos muitas pessoas que têm vergonha de sua própria deficiência, se sentem de alguma forma diminuídas, quando essas pessoas olham que a pessoa que vai defendê-los também possui deficiência, isso é muito empoderador.
Cosmo Sobral: Eu procuro sempre deixar a pessoa à vontade e, sempre que possível, conto um pouco da minha história e dos desafios que enfrentamos para viver em sociedade. Percebo que isso, em muitos casos, faz o assistido depositar mais confiança na minha atuação.
Onde o Brasil precisa avançar nas questões relacionadas aos direitos das pessoas com deficiência?
Amanda Fernandes: Ainda temos muito a avançar, isso parte do próprio conceito de pessoa com deficiência, que oito anos após a vigência da Lei da Brasileira de Inclusão, ainda não temos uma avaliação biopsicossocial. Assim, nem sabemos quais são as barreiras das pessoas e nem como eliminá-las. Precisamos sair do modelo médico, sempre associando deficiência à doença e começar a entender nossos desafios como sociedade para uma inclusão efetiva e em todas áreas da vida.
Cosmo Sobral: Nós temos uma das legislações mais avançadas do mundo em termos de previsão normativa para proteção das pessoas com deficiência. O grande desafio é fazer com que as pessoas compreendam que esses direitos precisam ser respeitados. A cultura do respeito ao lugar do outro precisa ser trabalhada. O ideal é que tenhamos um patamar civilizatório em que não seja mais necessário entrar com ações judiciais para obrigar pessoas e instituições a respeitarem normas básicas que tutelam direitos das pessoas com deficiência.
Por fim, o que vocês acham que precisa ser feito para o fortalecimento da Defensoria Pública em âmbito nacional?
Amanda Fernandes: Acho que podemos ser um grande elo entre os vulneráveis e o poder público. Inicialmente, podemos melhorar nossos dados estatísticos para entender melhor a quem atendemos, onde encontrá-los e quais os principais problemas enfrentados. Temos que reconhecer nosso papel de defensor dos direitos humanos dos vulneráveis e de partes na formulação de políticas públicas. Esse fortalecimento precisa passar por nossas casas, sendo exemplo de órgão inclusivo em todo país, referencias de atendimento e ainda mais de pertencimento.
Cosmo Sobral: Acho que a previsão constitucional de expansão dos serviços das Defensorias Públicas precisa ser cobrada de forma mais enfática dos gestores, nos dois níveis de governo (federal e nos estados).
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