Se você não consegue visualizar as imagens deste e-mail, clique aqui, ou acesse
http://www.anadep.org.br/wtksite/grm/envio/3074/index.html
 
Nº 013 - 30 de junho de 2022
 
O Brasil ocupa a 5ª posição de país com a maior taxa de feminicídio do mundo. A cada duas horas uma mulher é assassinada no país. A maioria delas foi morta por seus companheiros ou por parentes próximos. De acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, 1.319 mulheres foram vítimas deste tipo de crime. 
 
A partir desses casos, um grupo de defensoras públicas que atuam no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Amazonas (NUDEM/DPE-AM), observaram uma outra consequência desse tipo de crime: a situação dos órfãos, ou seja, crianças e jovens que tiveram suas vidas marcadas pela violência. 
 
Com isso, as defensoras públicas Caroline da Silva Braz e Pollyana Souza Vieira desenvolveram a prática "ÓRFÃOS DO FEMINICIDÍO". O trabalho consiste em mapear os processos tipificados como feminicídio (consumado ou tentado), iniciados a partir de março de 2015, nas três Varas do Tribunal do Júri da Comarca de Manaus. A partir do estudo documental, é feito contato com as famílias das vítimas e o acompanhamento social e psicológico com visitas domiciliares, repetidas a cada seis meses para coleta de dados por entrevistas, para identificar as condições dos órfãos e os fatores que levaram aos casos de feminicídio. Ou seja, aproxima-se uma rede de proteção a essas crianças e jovens que estão em situação de extrema vulnerabilidade. 
 
De acordo com as defensoras públicas, "até então, os direitos desses órfãos eram negligenciados. Eles eram invisíveis para o Estado. De uma forma geral, acontecia o crime e os olhares se voltavam para a parte criminal, enquanto essas crianças e suas demandas eram completamente ignoradas pelo Poder Público". 
 
Após quatro anos em atuação, a prática "ÓRFÃOS DO FEMINICIDÍO" foi vencedora do Prêmio Innovare, em 2021. Confira abaixo detalhes deste trabalho:
ANADEP - 
Em 2021, vocês foram as vencedoras do Prêmio Innovare com a prática "Órfãos do Feminicídio". Podem nos contar como surgiu este projeto? E como ele é desenvolvido?
 
Caroline Braz: O Projeto parte do princípio que todas as mulheres vítimas de feminicídio são partes integrantes de uma determinada família e que, após o crime, estas famílias são levadas a uma condição de vulnerabilidade social peculiar, seja pela composição familiar alterada ou pelas condições econômicas, psicológicas e/ou sociais que, muitas vezes, não recebem suporte do poder público que basicamente se ocupa em apenas punir o assassino. 
 
O projeto surge a partir do trabalho diário com as vítimas de violência doméstica e seus familiares, onde se constatou que, as políticas públicas desenvolvidas e disponibilizadas pelo Estado tem a preocupação de proteger a vítima durante o período de violência e, nos casos de feminicídio, até o seu óbito. Contudo, quando o feminicídio é consumado, os filhos e familiares que vivenciam a violência doméstica e o assassinato da mãe, filha, irmã, sofrem um abandono por essa rede de proteção.
 
O projeto é desenvolvido pelo Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) desde 2018 e conta com assessoria jurídica, psicóloga e assistente social.  A identificação dos casos começa a partir da busca-ativa realizada com base nos dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM), Núcleo Especializado de Feminicídio e notícias em jornais, sites de notícias e outros meios de comunicação. A partir dessa busca, fazemos a primeira visita domiciliar, no qual a equipe apresenta o projeto, e caso a família tenha interesse em ser acompanhada ela é convidada a participar de uma reunião de adesão no Nudem e, a partir da adesão, procede-se o acompanhamento jurídico, social e psicológico, conforme as particularidades dos casos. As visitas domiciliares são realizadas no início, durante e no encerramento do projeto. 
 
Para melhor atender as necessidades das famílias acompanhadas, contamos com a articulação e parceria com a Rede Atendimento, Enfrentamento e Proteção no suporte aos cuidados dos participantes. Considerando as peculiaridades dos casos, o acompanhamento das famílias é realizado até a conclusão do processo criminal e de família, permanecendo o acompanhamento somente pela Rede e monitoramento pela equipe psicossocial do Nudem.
 
Vale destacar que estamos há algum tempo cobrando da SSP-AM o estabelecimento de um fluxo para que possamos chegar mais rápido nessas famílias. A ideia é que sejamos comunicados dos casos a partir do momento que a Secretaria tome conhecimento.
 
Pollyana Vieira: Quando cheguei no NUDEM já havia a idealização do projeto. A partir dai, colocamos, junto com a equipe, o projeto em prática. Com a atuação da Defensoria como assistente da vítima nos processos criminais, atendimento às famílias das vítimas, reuniões e parcerias com os responsáveis pelos atendimentos psicológicos dos Estados e Municipios  para atendimento dessas famílias.
 
Vocês foram procuradas para que a prática possa ser desenvolvida em outras localidades ou estados? Há conhecimento de projetos semelhantes?

Caroline Braz: Sim, inclusive um dos últimos contatos foi realizado pela Comissão da Mulher da Assembleia Legislativa da Bahia. Estamos muito felizes com o despertar que o ocorreu com essa expressão da questão social, especialmente a partir de 2019.

Atualmente, temos conhecimento de ações similares em vários estados, cada um com suas peculiaridades, mas que busca em comum garantir que os direitos desses órfãos não sejam negligenciados em meio à dor da família e as necessidades básicas cotidianas.

Como exemplo, citamos os estados do Pará, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Ceará, Brasília, Pernambuco, que além do apoio jurídico, social, psicológico, abarcam a prioridade de atendimento nos serviços públicos estaduais. Dentre os projetos desenvolvidos destacamos o do Município de Cuiabá, que além do suporte já citado, incluiu o auxílio financeiro, pago a cada um dos órfãos, até que atinjam a maioridade. 

O projeto trouxe um olhar diferenciado para os direitos das crianças que acabam carregando, ao longo de suas vidas, as marcas emocionais pela perda da mãe e prisão do pai. Como ampliar essa rede de proteção para as crianças?

Caroline Braz: Esse olhar diferenciado era necessário e urgente, pois, até então, os direitos desses órfãos eram negligenciados. Eles eram invisíveis para o Estado. De uma forma geral, acontecia o crime e os olhares se voltavam para a parte criminal, enquanto essas crianças e suas demandas eram completamente ignoradas pelo Poder Público.

O crime de feminicídio é muito traumático para os órfãos, pois no geral é o pai que comete o crime. Considerando esse cenário, temos três possibilidades: ou ele é preso, ou vira fugitivo ou comete suicídio. Nessas três possibilidades o que temos verificado é o rompimento dos vínculos também com a família paterna. 
 
Nesse contexto, temos crianças e adolescentes que perdem a mãe e o pai. Além disso, essas crianças e adolescentes conviveram em um ambiente de violência. Fora o luto, elas vão passar por uma série de alterações na rotina que vão desde a mudança de casa e escola, possibilidade de ser separados dos irmãos, e alguns ainda vão ter que conviver com a lembrança traumática de ter presenciado o crime. Ressalto ainda que essa mulher, vítima do feminicídio, em muitos casos, era também a principal provedora e esses órfãos, que vão sentir também o impacto na parte financeira. 
 
Abro um parêntese para falar sobre a situação das avós maternas, que após o feminicídio, no geral, são as que ficam responsáveis pelos órfãos e temos presenciado uma verdadeira sobrecarga física, financeira e emocional. Tudo isso era ignorado pelo Estado. Diante desse contexto, a ampliação da Rede depende hoje da criação de uma política pública nacional que abranja um protocolo de atendimento adequado para esses órfãos, que inclua além da assistência jurídica, acompanhamento social e psicológico e o fornecimento de algum tipo de benefício financeiro.
 
 
Desde a criação do projeto “Órfãos do feminicídio”, temos acompanhado algumas iniciativas isoladas em diferentes estados, mas que trazem a vontade de fazer alguma coisa em prol dessas crianças e adolescentes, contudo, no geral observa-se que a burocracia ainda impera, dessa forma, precisamos avançar em termos de praticidade e agilidade e a Defensoria tem um papel importante ao cobrar do Estado o atendimento desse grupo vulnerável. 
 
Pollyana Vieira: Não vejo outra saída a não ser o desenvolvimento de uma responsabilidade coletiva em relação a essas vítimas secundárias desse tipo de crime. Não há como auxiliar esses órfãos sem um verdadeiro empenho das autoridades. Com desenvolvimento de programas que possibilitem o auxílio não só financeiro, mas, principalmente psicológico para essas crianças, a fim de que tenham a oportunidade de se curarem desse trauma e não serem reprodutoras, no futuro, desse tipo de violência, como vítimas ou como agressores e agressoras.
 
No Brasil, os dados sobre violência de gênero são alarmantes. Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostra que, no ano passado, mais de 1.319 mulheres foram vítimas de feminicídio. Quais são as características deste crime?

Caroline Braz: Primeiro é importante lembrar que até bem pouco tempo esse crime era considerado um “crime passional”, sendo incluído somente a partir de 2015 na legislação penal brasileira. Lembramos que o feminicídio é a maior causa de mortes violentas de mulheres no mundo, então não estamos falando de algo isolado. De uma forma geral, a principal causa do feminicídio é a desigualdade estrutural de poder, afinal, estamos em uma sociedade patriarcal e machista que desde os primórdios naturalizou uma cultura de submissão das mulheres aos homens.

Nesse sentido, umas das principais características dos casos de feminicídio íntimo (feminicídio decorrente da violência doméstica e familiar) é que ele é praticado após o rompimento ou na tentativa de rompimento da relação, pois, nesse tipo de relação, a mulher é objetificada e quando “esse objeto” ousa manifestar sua vontade, o “seu dono” não admite, afinal a mulher deve ser submissa, e quando não é, é considerada descartável e destituída de qualquer direito. 
 
Outra característica do feminicídio são os meios utilizados, com destaque para as armas brancas, geralmente com requintes de crueldade. Vemos isso pela quantidade de golpes desferidos nas vítimas. São crimes na maioria praticados na presença dos filhos ou outros familiares (vítimas secundárias) que acabam tendo suas vidas marcadas por esse ato. Dos casos de feminicídio que ocorreram em 2021, acompanhados pelo NUDEM, os agressores em quase 60% dos casos faziam uso prejudicial de álcool e drogas ou somente álcool. Sabemos que a causa é outra (relação desigual de poder), mas o álcool e as drogas têm se mostrado como um dos principais potencializadores para ocorrência da violência contra a mulher. Outro ponto que nos faz refletir é que não é questão de uma geração apenas, mas que está arraigada na sociedade de forma estrutural, pois a faixa etária dos agressores varia de 18 (dezoito) anos a 60 (sessenta) anos. 
 
Pollyana Vieira: Acredito que o machismo estrutural enraizado na sociedade. O crime cometido em razão do gênero feminino (violência contra a mulher) se destaca pelos motivos e pelos modos de execução. Os autores deste tipo de delito, em geral, mutilam e desconfiguram as vítimas. Os agressores empregam de meios cruéis ou degradantes visando aumentar, de forma desnecessária, o sofrimento das vítimas. Obviamente há um "plus" de ódio em razão do gênero da vítima.
 
E como vocês enxergam o papel da Defensoria Pública na garantia dos direitos das mulheres? O que a Instituição vem fazendo de diferente no sistema de justiça para garantir o acesso à justiça às mulheres vulneráveis?

Caroline Braz: A Defensoria Pública tem um importante papel na garantia dos direitos das mulheres. Sabemos que a violência de gênero se configura como um dos maiores desafios a serem enfrentados não só no Brasil, mas por todas as sociedades. Nesse sentido, acreditamos nas possibilidades de ações institucionais, em especial daquelas que atuam na defesa dos Direitos Humanos, que possam descortinar, desconstruir e reconstruir significações subjetivas, formais e materiais diante da violência de gênero, e a Defensoria é uma delas. 

A Lei Maria da Penha garantiu no artigo 28 a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, mediante atendimento específico e humanizado e, desde então, importantes passos têm sido dados em defesa das mulheres. 
 
O NUDEM tem buscado fortalecer a atuação extrajudicial da Defensoria Pública do Estado do Amazonas como ator na Rede de atendimento e enfrentamento à violência contra a mulher, pois acreditamos que o papel da Defensoria na questão da mulher deve ir além da assistência jurídica, e para isso temos buscado analisar de forma continuada as demandas de atendimento. 
 
Entre as ações desenvolvidas pela DPE/AM, por meio do NUDEM, que consideramos inovadoras, é termos a garantia inicialmente de uma equipe psicossocial, pois, a violência contra a mulher é multidimensional e nosso atendimento não poderia ficar restrito a assistência jurídica. Nesse sentido, contando com uma equipe ampliada, desenvolvemos além do projeto “Órfãos do feminicídio”, o projeto “Acolhendo trajetórias” que visa evitar que a mulher seja revitimizada, ou seja, que sofra a violência institucional também no âmbito da Defensoria Pública. Assim sendo, objetiva-se construir uma cultura de acolhimento a essa mulher, com sua história, dores, necessidades e angústias que buscam auxílio para desistir das MPU, bem como concretizar a DPE-AM, pelo NUDEM, como ator na rede de proteção, como porta de entrada, na efetivação do acesso aos direitos dos mais vulneráveis.
 
No momento, estamos trabalhando na organização da “Rede Marias” no intuito de compartilhar informações e fazer alinhar estratégico a fim de proporcionar melhor acolhimento e direcionamento das mulheres em situação de violência. Além disso, não esquecemos o viés educativo, no qual temos os projetso “Papo por elas”, que leva até as escolas a discussão de temas relacionados ao combate a violência contra a mulher, e o curso “Defensoras Populares”
 
Nesse contexto, buscamos com essas ações colaborar no reconhecimento da visibilidade institucional perante a sociedade civil através da construção de um  vínculo de confiança com as assistidas e com a rede, contribuindo diretamente no fortalecimento do papel da Defensoria junto às populações vulneráveis.
 
Pollyana Vieira: Vejo que as Defensorias em geral têm se empenhado em especializar esse atendimento, fortalecendo seus núcleos especializados, o que é de suma importância, uma vez que o membro sozinho não consegue executar um trabalho de excelência. Ao mesmo tempo que, também, vislumbro que temos que ter alguns avanços nessa estruturação.
ver edições anteriores »Clique aqui caso não queira mais receber nossos e-mails.