Nº 08 - 28 de outubro de 2021
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Os estados do Espírito Santo e de Minas Gerais foram marcados por duas tragédias ambientais: o rompimento das barragens de Mariana e de Brumadinho.
O rompimento da barragem de Mariana ocorreu em 5 de novembro de 2015 e culminou em mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos que atingiram o rio Gualaxo do Norte, o Rio Doce e o mar de Regência, no litoral capixaba. A lama causou a morte de 19 pessoas e uma série de impactos ambientais, sociais e econômicos, atingindo 39 municípios de Minas Gerais e Espírito Santo.
Já a barragem de Brumadinho, localizada na mina Córrego do Feijão, situada no município de Brumadinho, rompeu-se em 25 de janeiro de 2019. A lama de rejeitos de minério matou 270 pessoas, das quais 11 continuam desaparecidas, de acordo com a contagem oficial. Dois anos depois, os prejuízos causados por esse desastre ainda não são totalmente conhecidos.
Para entender como foi a atuação da Defensoria Pública em ambos os casos, a assessoria de comunicação da ANADEP dialogou com duas defensoras públicas que atuaram nos casos: Carolina Morishita, de Minas Gerais e Mariana Sobral, do Espírito Santo.
As defensoras trazem relatos emocionantes do casos. Segundo elas, o olhar e a atuação da Defensoria Pública foram fundamentais para dialogar com as vítimas e buscar garantir o direito daquelas que não tinham esperanças após tantas perdas materiais e emocionais. Confira:
ANADEP -
Há quanto tempo vocês são defensoras públicas? Por que decidiram ingressar na carreira?
Carolina Morishita: Sou defensora pública há seis anos. Comecei a me interessar pela carreira em 2006, quando ingressei na faculdade e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo começou a ser estruturada.
Mariana Sobral: Ingressei na Defensoria Pública do ES há oito anos, mas a minha história com a Defensoria começou um pouco antes, pois minha mãe é defensora pública no Estado de Sergipe e sempre foi uma inspiração na luta pelo fortalecimento da Instituição. Desde a minha formação acadêmica, via dentro de casa a importância e a diferença que a Defensoria pode fazer para a sociedade e para as pessoas que mais precisam.
Gostaríamos de falar nesta entrevista sobre dois dos maiores desastres ambientais já vistos no País: o rompimento das barragens de Mariana e de Brumadinho. Como esses casos chegaram até vocês? Como foi a atuação da DPE-ES e da DPE-MG nestes casos?
Carolina Morishita: Em 2018, me inscrevi para o recém-inaugurado Núcleo Estratégico para Proteção de Vulneráveis em Situações de Crise, que foi criado justamente para atuar no caso Rio Doce. A atuação começou no dia 08.10.18 com o plano de estar junto com as comunidades atingidas percorrendo todo o território da bacia do Rio Doce, atingida em Minas Gerais.
Os três primeiros meses foram quase inteiramente de deslocamentos pela bacia para que fossem formados vínculos com a atuação da Defensoria Pública e construídas e impulsionadas pautas. Logo após esse período, prestes a iniciar uma nova rodada de deslocamentos para continuidade das pautas, houve o rompimento da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho.
Já no primeiro dia, 25.01.19, fui deslocada para o atendimento dos familiares que procuravam notícias das pessoas que trabalhavam ou residiam na localidade, sendo que no domingo - o rompimento foi na sexta por volta de 12h28 - começavam a ser realizadas as reuniões comunitárias e construções de pautas emergenciais nas comunidades mais próximas ao local de rompimento. O trabalho de construção de pautas com a comunidade foi respaldado pela experiência trazida pela atuação que estava em ação na bacia do Rio Doce e se estendeu rapidamente de Brumadinho para toda a bacia do rio Paraopeba.
Tragédia de Brumadinho aconteceu em 25 de janeiro de 2019
Mariana Sobral: Enquanto integrante da DPES, atuo na assistência jurídica dos atingidos e atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, Mariana/MG, que em novembro de 2015 despejou rejeito de minério na Bacia do Rio Doce atingindo o estado do Espirito Santo até mesmo na costa litorânea. A lama demorou alguns dias para chegar até a região e no início pouco se sabia o que deveria ser feito e quais os impactos socioambientais seriam enfrentados. Aproximadamente em novembro de 2016, ingressei no grupo SOS Rio Doce que fazia atendimentos individuais às pessoas atingidas da Foz do Rio Doce.
Em seguida, esta demanda passou a ser trabalhada de forma perene no Núcleo de Defesa Agrária Moradia-NUDAM, do qual já fazia parte. No mês de agosto de 2020, a DPES criou o Núcleo de atuação em Desastre e Grandes Empreendimentos que passou a atuar não só no caso da Samarco, mas em outras demandas referentes a desastres ambientais e tecnológicos. A DPES norteia sua atuação tendo como princípio fundamental a centralidade dos atingidos e atingidas com luta constante pela efetiva participação social e acesso amplo a informações confiáveis e adequadas para diminuir a disparidade de forças existentes em conflitos desta magnitude. A proximidade das comunidades permitiu e permite que as estratégias, judicias ou não, sejam discutidas e definidas de forma democrática, o mais próximo possível da realidade social.
Em Mariana, o desastre aconteceu em 5 de novembro de 2015
Quais foram os principais objetivos e demandas atendidas nos casos?
Carolina Morishita: O principal objetivo em ambas as atuações é trazer informação segura, tempestiva e rápida para as pessoas atingidas, que, munidas de informação, trazem sempre propostas concretas e alinhadas com as reais necessidades e permitem uma potencialização do trabalho da Defensoria Pública em prol da concretização de direitos.
Em ambas as bacias, as demandas de água para consumo humano, irrigação, dessedentação e alimentação animal são constantes pela dificuldade de acesso à água e pelo modo de vida embasado na atividade rural, especialmente agricultura familiar em ambas as bacias. A necessidade de renda e os aumentos do custo de vida, especialmente em face do adoecimento mental são também similares.
No caso de Brumadinho, a busca por familiares, direito à memória, ao luto, enterro digno, ao encontro dos restos mortais foram e permanecem como pautas centrais, permanecendo ainda a busca por pessoas que perderam a vida.
Carolina Morishita durante atendimento Mariana Sobral: A reparação integral é o maior objetivo dentro deste processo de reparação. A malha social foi esgaçada e os impactos são muito mais profundos e complexos que possamos imaginar. Existem uma série de desafios para que soluções e respostas possam chegar às comunidades de forma célere e efetiva. Passados quase seis anos, já foram trabalhadas diversas demandas, tanto na seara judicial quanto na extrajudicial.
Como exemplo, posso destacar a demanda da saúde física, tendo em vista a possível contaminação por metais pesados pela água e pelos peixes, e da saúde mental, cujos relatos e estudos demonstram aumento significativo de uso de medicamentos para insônia e depressão, principalmente em relação às mulheres atingidas que sofrem ainda mais o impacto da sobrecarga doméstica.
E falando em temas de atenção, as mulheres atingidas precisam, até hoje, empreender uma luta muito maior pelo reconhecimento e efetivação de seus direitos, principalmente aqueles decorrentes do reconhecimento da sua autonomia econômica. Um dos enfoque de trabalho da DPES é ter esse recorte de gênero na implementação de programas e ações no fortalecimento de políticas públicas que atendam as mulheres nas demandas de saúde, educação, fomento econômico, assistência social e rede de atendimento a mulher em situação de violência.
E qual foi a maior dificuldade enfrentada por vocês? Como era o diálogo com as vítimas?
Carolina Morishita: O diálogo com as pessoas atingidas é sempre carregado da emoção das perdas vivenciadas e das violências permanentes nos territórios. A perda de familiares, amigos, de vínculos comunitários, de pertencimento, do projeto de vida, do orgulho da construção da própria renda, são inúmeras perdas que atingem as pessoas em intensidades e momentos diferentes. Esse diálogo, ainda que difícil pela dimensão emocional, sempre vem alicerçado no desejo de retomada, de reconstrução, de uma volta a vida, ainda que aos poucos se compreenda que é outra vida, diferente daquela que foi tomada. Ainda nos momentos mais desgastantes de negociações ou atuações processuais as pessoas atingidas são propositivas e enxergam caminhos e possibilidades guiados pelos conhecimentos da realidade e modo de vida locais. As construções mais efetivas são as construídas nessa troca, que é a base de todo o trabalho.
Mariana Sobral durante reunião com os atingidos Mariana Sobral: No caso do Rio Doce, enquanto Defensoria Pública, uma das grandes dificuldades foi a extensão territorial dos danos e a própria capacidade estrutural de prestar assistência jurídica, integral e gratuita, a todas as pessoas atingidas que necessitam de tal assistência. Nem todos os municípios contam com Defensoria instalada e nem todas as comunidades têm acesso à informação suficiente para buscar suporte jurídico através da Defensoria.
Foi necessário um trabalho estratégico de ida às comunidades em um processo de mobilização em conjunto com organizações locais, sociedade civil, grupos acadêmicos e movimentos sociais.
Aqui no Espírito Santo destaco, em especial, a atuação conjunta com o Movimento de Atingidos por Barragens-MAB e o Organon (UFES). O trabalho em rede permitiu chegar em comunidades mais afastadas para discutir demandas e soluções com quem, de fato, possui conhecimento da realidade e da necessidade locais. A experiência com o caso Rio Doce demonstrou o quanto a construção coletiva com participação efetiva das pessoas atingidas trás para o processo a sensação de pertencimento às ações implementadas. Na litigância que envolve grandes desastres, muitas decisões estratégicas precisam ser tomadas e é fundamental que a decisão seja partilhada com os titulares dos direitos, cientes dos riscos de cada caminho. Por isso, estar atento a este processo de escuta é indispensável para nós, defensoras e defensores públicos.
Dra. Carolina Morishita, a senhora esteve à frente do caso de Brumadinho. Como a Defensoria Pública tem atuado na assistência jurídica dos atingidos pelo desastre?
Carolina Morishita: A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais atua em ambas as frentes, individual e coletiva, seja por meio do acordo extrajudicial embasado no termo de compromisso firmado, seja por meio de construções coletivas para a realização do previsto no acordo judicial, por exemplo, o Programa de Transferência de Renda. Na seara judicial, a Defensoria Pública tem sede instalada na comarca de Brumadinho com atendimento na área cível, família, sucessões, criminal e execução penal e acompanha as ações civis públicas que buscam a reparação integral em tramitação.
Por ser um desastre ainda recente, com apenas dois anos do fato, como está o andamento dos causas judiciais? Qual o objetivo do termo de cooperação?
Carolina Morishita: No âmbito individual, a maioria dos casos com atuação da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais tem sido resolvida extrajudicialmente. O objetivo do termo de cooperação é justamente possibilitar uma via rápida, descomplicada e que traga uma indenização em um patamar justo. Assim, foram traçados parâmetros para alguns tipos de danos causados, por exemplo, dano à moradia e perda de renda, sendo que a autodeclaração é elemento comprobatório que permite a indenização.
Apenas quando não é bem sucedida, a negociação é acionada a via judicial. No âmbito coletivo, foi realizado acordo judicial que trouxe como maiores conquistas a construção de um Programa de Transferência de Renda e um valor voltado para Projetos de Demandas das Comunidades Atingidas, além de organização de consulta popular para priorização do fortalecimento dos serviços públicos.
Estes casos tiveram um impacto emocional muito grande para as vítimas, famílias, vizinhos e, inclusive, para todas as pessoas que trabalhavam para resgatar pessoas com vida, como os bombeiros. Podem nos contar algum relato?
Carolina Morishita: São muitos atendimentos marcantes. Um dos mais marcantes aconteceu em uma atendimento individual. Uma moça que devia estar próximo dos 40 anos sentou em minha mesa querendo saber se ela tinha direito à indenização em decorrência dos danos vividos.
Bastante tímida, perguntou primeiro se podia deixar o telefone na mesa para o caso do filho ligar. Começou contando que havia perdido o emprego como doméstica. Emendou que não havia exatamente perdido, mas a casa em que trabalhava havia sido destruída, pois ficava no Córrego do Feijão e estava abaixo dos rejeitos. E a dona da casa, de quem gostava bastante, tinha falecido.
Revelou então que estava na casa na hora do rompimento e quando ouviu um estrondo já sabia que era o rompimento, que ela correu muito e tentou chamar a dona da casa, mas que uma árvore caiu em cima dela e os rejeitos quase a alcançaram, porém ela conseguiu levantar e correr. Passaram-se seis horas sem conseguir se comunicar com o marido e filho que também estavam no Feijão e só depois descobriu que eles também estavam vivos e bem. Mas o filho, pré adolescente, agora ligava muito quando ela saia de casa para garantir que ela estava bem. Só chorou no fim do atendimento, depois de receber as orientações e tirar algumas dúvidas porque disse que não tinha ainda contado tudo que aconteceu assim de uma vez só. Depois desse atendimento, a atingida retornou com o filho e marido para que eles também entendessem as opções possíveis e pudessem ser atendidos.
Mariana Sobral acolhendo uma assistida vítima da tragédia Mariana Sobral: O rompimento da barragem de Mariana, diferente de Brumadinho, não possui alto número de mortes, o que pode passar a falsa percepção de um baixo impacto emocional, porém, o que acompanhamos são relatos de intenso de sofrimento, de saudade de uma vida passada levada pela lama e de um futuro incerto. Além dos danos ambientais, os danos sociais são facilmente perceptíveis. Escutamos muitos relatos de aumento do consumo de drogas e álcool, de famílias desfeitas, de violência doméstica, de acirramento de conflitos com amigos, vizinhos e parentes... Muitos atendimentos são marcantes, mas como mulher, os casos de violência sempre tocam mais profundamente. Posso citar o caso, por exemplo, de uma atingida que o marido passou a consumir álcool de forma abusiva após o rompimento e por mais de uma vez tentou tirar a própria vida e a dela. Mesmo assim, esta mulher foi submetida a mais de duas tentativas de acordo com a Fundação Renova em conjunto com o agressor e o acordo não pôde ser finalizado, na ocasião, porque ela possuía ação na justiça. O medo e a vontade de terminar logo seu processo para mudar para cidade em que possuía família era muita marcante no seu olhar na audiência de instrução que acompanhei.
Na opinião de vocês, a questão do direito ambiental e a atuação da Defensoria Pública nesta seara precisa ser ampliada? Qual foi o aprendizado que Brumadinho e Mariana trouxeram para a Instituição?
Carolina Morishita: As primeiras pessoas e comunidades a serem atingidas negativamente por questões socioambientais são as mais vulnerabilizadas: o público central da Defensoria Pública. Há também um recorte racial e de gênero das pessoas atingidas por desastres e grandes empreendimentos. Em cada espaço de discussão e participação, há ampla maioria de pessoas negras e mulheres. A ampliação da atuação é também elemento de proteção dos modos de vida rurais, tradicionais, das comunidades e cadeias econômicas e produtivas e permite a construção preventiva. Mariana Sobral: O racismo ambiental é um fato e está intimamente ligado à injustiça social. A maioria das pessoas impactadas na implementação de grandes empreendimentos e por desastres, ambientais e tecnológicos são comunidades de minoria étnicas e de classes sociais mais baixas. Então, acredito que a função constitucional da Defensoria Pública está intimamente ligada a essas pessoas. Não há justiça nem nos benefícios do desenvolvimento, nem nos impactos decorrentes dele. Faz-se necessário que, cada vez mais, a Defensoria Pública amplie a atuação com pessoas atingidas por grandes empreendimentos, iniciando assistência jurídica e acompanhamento já no período pré implementação, quando se discute projetos, compensações e licenciamentos. A DPES avançou neste sentido, inclusive com a criação de um núcleo especializado específico, o NUDEGE, que acima me referi.
E, por fim, o que você acha que precisa ser feito para o fortalecimento da Defensoria Pública nacionalmente?
Carolina Morishita: Certamente é necessário o fortalecimento com o aumento do número de defensoras e defensores públicos em todo o país. O trabalho coletivo exige tempo: tempo de deslocamento, tempo de escuta individual e coletiva, tempo de apresentar as possibilidades jurídicas e de estudar como encaixar o direito nas demandas comunitárias. Esse tempo somente é possível quando há defensoras e defensores para compartilhar o serviço, para estar nas comunidades e dividir atribuições. Mariana Sobral: Como já abordei, o reduzido número de Defensoras e Defensores, aliado também a falta de equipe técnica multidisciplinar de apoio, diminui o alcance de atuação e a possibilidade de construção de soluções de forma autônoma em conjunto com as pessoas atingidas. Com uma Defensoria Pública fortalecida, sem dúvida, as pessoas atingidas por grandes empreendimentos e por desastres terão, ao menos, reduzido essa discrepância de forças que existe entre elas, empresas e, até memos, poder público.
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