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Rafael Munerati (SP) e Adriana Pereira (MG)
Causos e narrativas de sangue verde
Garantir acesso integral à justiça em todas as instâncias do Poder Judiciário – do juízo de primeiro grau até o Supremo Tribunal Federal – é uma das principais missões da Defensoria Pública. Pensando nisso, foi criado, em Brasília, o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores, o GAETS.
Com defensoras e defensores públicos de 13 estados, o grupo tem por objetivo tornar acessíveis os Tribunais Superiores às pessoas em situação de vulnerabilidades e que não possuem condições financeiras para arcar com um advogado particular. As defensoras e defensores acompanham processos em grau de recursos, propõem revisões criminais, ações rescisórias, impetram mandados de segurança e habeas corpus.
Com uma atuação articulada e estratégica, o GAETS tem obtido resultados positivos. Atualmente, a Defensoria Pública é a classe de impetrante com maior percentual de concessão — integral e parcial — nos HC’s e RHC’s impetrados perante o STJ. De cada cem writs concedidos, 66.4% são impetrados por defensores públicos, cerca de 2/3 do total de concessões.
Assim, nesta primeira entrevista de 2021 no projeto Histórias de Defensor(a) - causos e narrativas de sangue verde - vamos contar como a formação do grupo aconteceu, como é o trabalho no dia a dia, a participação em ações, entre outros. Para isto, os convidados são o defensor público de São Paulo, decano do grupo, Rafael Muneratti, e a defensora pública de Minas Gerais, Adriana Pereira. Confira:
História do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores
ANADEP -
Há quanto tempo vocês são defensores públicos? Por que decidiram ingressar na carreira?
Adriana: Sou defensora pública há 22 anos. Ingressei na carreira após quase seis anos de advocacia privada, pois buscava a estabilidade do serviço público sem ter que abrir mão de trabalhar de forma relevante e fazer diferença na vida das pessoas. Daí, escolhi a Defensoria Pública!
Rafael: Eu me considero defensor público desde 1998, ano em que ingressei na Procuradoria do Estado de São Paulo. Desde o primeiro dia de atuação, trabalhei na antiga Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ), que prestava assistência judiciária gratuita para a população carente de São Paulo. Então, já se vão 23 anos. Em 2006, quando foi finalmente criada a Defensoria Pública em São Paulo, fui um dos 87 procuradores que optou pela Defensoria. Na época foi uma escolha mais emocional do que racional, impulsionada, talvez pela vocação e pela vontade e satisfação de continuar a trabalhar em favor daqueles mais vulneráveis.
A atuação se concentra em dois Tribunais Superiores, o STJ e o STF. Rafael Munerati, você é um dos decanos que ajudou na construção do GAETS. Como tudo começou?
Rafael: Eu costumo dizer que o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores - GAETS surgiu de uma constatação e de duas necessidades.
A constatação foi no sentido de que as teses e os interesses dos vulneráveis defendidos perante os Tribunais Superiores pelas Defensorias Públicas que já atuavam em Brasília eram os mesmos, independentemente do estado de origem.
Quando eu cheguei em Brasília, em 2008, a Defensoria de São Paulo já atuava nos Tribunais Superiores e eu substitui a primeira colega paulista que aqui oficiou, Daniela Sollberger.
No dia a dia do trabalho nos Tribunais e conversando com os demais defensores estaduais que também já atuavam em Brasília, foi fácil perceber que tratávamos dos mesmos assuntos. Em 2009/2010, informalmente, eu e o colega Fernando Calmon, da Defensoria do DF, começamos a fazer despachos conjuntos nos gabinetes dos Ministros. Nessa época, além da Defensoria do DF e SP, também já atuavam nos Tribunais Superiores as Defensorias do Rio de Janeiro, com defensores em rodízio, e Tocantins com a colega Iracema e Espírito Santo com o colega Thiago Piloni.
Em 2012, recebemos o reforço dos defensores do Rio Grande do Sul, Josane Herdt e Rafael Raphaelli. Começamos, assim, as primeiras reuniões registradas entre defensores estaduais e distritais sobre a atuação nos Tribunais Superiores. Em 2014, realizamos, oficialmente, o Primeiro Encontro de Defensores Estaduais e Distritais nos Tribunais Superiores, na Escola da Defensoria Pública do DF. Estiveram presentes defensores do DF, SP, RJ, RS e PE, recém chegado na Capital Federal com a colega Anna Walerya. Também participou a Defensoria Pública da União, convidada para integrar o grupo, mas que ao final decidiu por não continuar presente.
Primeiro Encontro dos Defensores Públicos Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores - Escola da DPDF - Outubro de 2014 - Em pé da esquerda para direita: Rafael Munerati (DPSP); Davi Brito (DPDF); Gustavo Zortéa (DPU); Fernando Calmon (DPDF). Sentadas: Josane Herdt (DPRS); Paula (DPDF); Stephanie Kornreich (DPSP); Anna Walerya (DPPE) e Thais Lima (DPRJ).
No ano seguinte, 2015, realizamos o Segundo Encontro, dessa vez na Escola da Defensoria de São Paulo. Dessa reunião saiu o rascunho do que viria a ser o primeiro Acordo de Cooperação para Atuação Estratégica das Defensorias Públicas perante o STJ e STF, escrito pelos colegas do Rio de Janeiro Fabio Cunha e Thais Lima, assim como a sigla GAETS.
Esse termo foi assinado pelos defensores-gerais das Defensorias do DF, ES, PE, RJ, RS, SP e TO, todas que possuíam representação na época em Brasília, em uma reunião do CONDEGE, em outubro de 2016.
Em fevereiro de 2020, um novo Termo de Cooperação foi assinado, nessa oportunidade, no âmbito do CONDEGE, por todos os defensores-gerais, ampliando o GAETS para abarcar todas as Defensorias Públicas Estaduais e a Distrital para atuação no STJ. O próximo passo é ampliar o Termo e incluir a atuação no STF.
Condege inaugura sede de representação em Brasília. ANADEP participa de cerimônia, em fevereiro de 2020.
A primeira das duas necessidades era a de estarmos presente nas discussões e nos processos com repercussão geral, repetitivos ou de controle concentrado de constitucionalidade, levando as pretensões e defendendo os interesses das pessoas vulneráveis, em casos cujas decisões são de extrema relevância e vinculam todo o Poder Judiciário do País. Com o avanço da adoção do modelo de precedentes qualificados pelo Direito brasileiro, proporcionar a atuação das Defensorias nesses casos era nossa preocupação principal. Muitos desses processos não eram e não são oriundos das Defensorias Públicas e, para participarmos, precisávamos nos utilizar da figura do amicus curiae.
A segunda necessidade deriva da primeira. Esse ingresso como amicus curiae deveria ser racional e organizado. Causava certo incômodo nos Tribunais aceitar as Defensorias Públicas Estaduais como amicus curiae. Um argumento era de que a DPU já representaria as Defensorias do país e tinha alcance nacional. Outro argumento era que ao aceitar uma Defensoria Estadual como amicus surgiria a “obrigação” de aceitar todas as demais que fizessem o mesmo pedido. Situação que, segundo se dizia, causaria tumulto e lentidão processual com inúmeras intimações, aberturas de prazos, recursos, etc. A organização das Defensorias Estaduais pelo GAETS com uma atuação conjunta e única resolvia todos esses problemas.
O sucesso da atuação das Defensorias Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores, seja individualmente, seja por meio do GAETS, como mostram as estatísticas de êxito dos próprios Tribunais, levaram outras carreiras como os Ministérios Públicos Estaduais a se organizarem para também possuírem atuação em Brasília, inclusive, com compartilhamento de espaço e divisão de custos como nós fazemos hoje. Atualmente, compartilham espaço as Defensorias de São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Amazonas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Como é o trabalho no dia a dia nos Tribunais Superiores?
Adriana: Estou atuando em Brasilia desde fevereiro de 2019, portanto há dois anos.
O trabalho da representação sob o aspecto processual se dá pelo acompanhamento de todos os recursos e HCs que chegam dos órgãos de base, dando seguimento aos que forem indeferidos, através de novos recursos, quando for estrategicamente interessante para o assistido e para a Instituição.
Isto porque temos que ter o cuidado de não fortalecer jurisprudência desfavorável com recursos que tem pouca ou nenhuma chance de provimento considerando o posicionamento do tribunal acerca do tema tratado.
Temos buscado levar adiante preferencialmente os que chamamos de “bons casos”, que não tem nada a ver com a qualificação técnica de quem o fez, mas com as condições e circunstâncias do caso e do recorrente modo a favorecer a criação de bons precedentes que servirão a todos os casos e não somente para os “bons casos” no futuro.
Assim, fazemos agravos internos, HCs, memoriais, audiências, sustentações orais e participamos ativamente na discussão de temas de interesse da Instituição, atuando como amicus curie nos processos em que o GAETS pleiteia e é admitido como tal.
Fazemos ainda uma atuação política, representando a Instituição em diversos eventos em Brasília de modo a fortalecer o reconhecimento da importância e relevância do trabalho da Defensoria Pública no Brasil.
GAETS despachando no STJ - outubro de 2016. Da esquerda para direita: Thiago Piloni - DPES; Fabio Cunha - DPERJ; Leilamar Duarte - DPETO; Rafael Raphaelli - DPERS; Fernando Calmon - DPDF; Thais Lima - DPERJ: Anna Walerya Rufino - DPEPE e Rafael Munerati - DPESP.
Como um defensor(a) é designado para o GAETS?
Adriana: As Defensorias Estaduais e Distrital têm resoluções próprias tratando da forma de designação. Em Minas Gerais, por exemplo, é aberta inscrição a todos os defensores estáveis da carreira.Tais inscrições vão para o Conselho Superior da DP que compõe lista tríplice, e o defensor público-geral faz a escolha do nome que entende ser o que possui perfil mais adequado para o trabalho.
Pesquisa recente mostrou que a Defensoria Pública tem a maior taxa de sucesso que os advogados particulares quando recorrem ao STF e STJ. O que isso significa para o GAETS? *
Rafael: O sucesso da atuação das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores é fundamental para o trabalho e o êxito do GAETS. Isso porque as Defensorias construíram uma imagem de atuação responsável, cuidadosa e de excelência nos Tribunais Superiores. Assim, quando nos juntamos em algum caso para atuação via GAETS, os ministros veem com bons olhos e sabem que poderemos contribuir com argumentos, dados e informações relevantes para a solução da causa. Em razão disso, o GAETS foi aceito como amicus curiae, ou mesmo parte, na grande maioria dos casos em que pleiteou o seu ingresso. *Levantamento da Folha de São Paulo.
GAETS em despacho com o então Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, em fevereiro de 2020. Da esquerda para direita: Pedro Carrielo - DPERJ; Thiago Piloni - DPDF; Rafael Munerati- DPESP.
Como a Defensoria Pública, através do GAETS, consegue garantir o acesso à justiça aos grupos vulneráveis?
Rafael: Por meio da atuação do GAETS em processos com repercussão geral, de controle concentrado de constitucionalidade ou repetitivos, em que na origem não havia Defensoria Pública, conseguimos defender os interesses e levar a voz dos nossos assistidos para casos de extrema relevância, de precedentes qualificados, e cujas decisões se tornarão vinculantes em todo o país, ampliando significativamente o acesso à justiça da população vulnerável.
Durante a pandemia, o GAETS realiza reuniões virtuais
Atualmente, quais estados têm representações em Brasília?
Adriana: Somos 13 representaçãoes:
DPE AMAZONAS – Fernando Mestrinho
DPE BAHIA - Hélio Soares
DPE CEARÁ – Mônica Barroso e Raísa
DP DISTRITO FEDERAL – Fernando Antonio Calmon Reis
DPE ESPÍRITO SANTO – Thiago Piloni
DPE GOIÁS - Marco Paiva
DPE MINAS GERAIS - Adriana Pereira e Flávio Wandeck
DPE PARÁ – Anelyse Freitas
DPE PERNAMBUCO – Anna Walerya e Isabella
DPE RIO DE JANEIRO – Pedro Paulo Carriello
DPE RIO GRANDE DO SUL – Rafael Raphaelli e Domingos Barroso da Costa
DPE SÃO PAULO – Rafael Munerati e Fernanda Bussinger
DPE TOCANTINS – Maria do Carmo Cota e Leilamar Duarte
GAETS no STJ em 2019. Da esquerda para direita: Marco Paiva Silva - DPEGO; Mônica Barroso - DPECE; Bárbara Lenzi - DPERS; Adriana Pereira - DPEMG e Hélio Soares Jr. - DPEBA.
Qual a importância de ter todos os Estados representados nos Tribunais Superiores?
Adriana: Consideramos muito importante que todos os estados enviem representação para atuação presencial em Brasília. Os temas trazidos através dos nossos recursos são próprios da atuação das Defensorias Estaduais e Distrital, e ninguém melhor que nós para identificarmos as lutas que devemos e precisamos travar. A representação junto aos Tribunais Superiores dá credibilidade a Instituição na medida que proporciona aos assistidos o pleno acesso à justiça, incluindo aí aos Tribunais Superiores!
ANADEP durante inauguração do escritório conjunto da Defensoria de São Paulo e Ceará, em Brasília, junho de 2017.
ANADEP participa da inauguração do escritório das Defensorias Públicas de Minas Gerais e da Bahia, em Brasília, setembro de 2017.
Contem um caso que marcou a atuação do GAETS na Corte.
Rafael: O GAETS já atuou ou atua em mais de 40 processo nos Tribunais Superiores, todos de grande relevância. Alguns exemplos: pagamento de honorários de sucumbência para a Defensoria Pública (RE 1140005); dever estatal de assegurar atendimento e matrícula de crianças de zero a cinco anos em escolas de ensino infantil ou creches (RE 1008166); inconstitucionalidade das revistas vexatórias em presídios (RE 959620); prazos prescricionais no direito processual e penal, art. 366, CPP e art. 112, CP (RE 600851 e ARE 848.107); pulverização ilegal de agrotóxicos (ADI 6137); aplicação de multa para defensor público que abandona processo, art. 265, CPP (ADI 4398); não recepção pela CF88 do crime de desacato (ADPF 496); execução antecipada da pena no Tribunal do Júri (RE 1235340); constitucionalidade do juiz de garantias (ADI 6298); política nacional de educação especial (ADPF 751); redução de IPI para importação de armas (ADF 772); aumento abusivo em planos de saúde para idosos (RESP 1715798), entre outros.
Rafael Muneratti durante sustenção oral da REsp 1.854.065
Durante a pandemia estivemos atentos às questões envolvidas e atuamos no HC 188820-STF para garantir prisão domiciliar para presos idosos e de grupo de risco; no HC 186185-STF também para garantir prisão domiciliar para mulheres gestantes e lactantes presas; para garantir liberdade provisória independentemente do pagamento de fiança – HC 568.693/STJ; a obrigatoriedade de vacinação de crianças – ARE 1267879/STF e admissão na ADI 6661 proposta pelo governo da BA para liberação da vacina da Sputinik V.
Contudo, para mim, uma das atuações mais marcantes foi no HC 143.641 junto ao STF em favor das presas gestantes e mães de crianças menores de 12 anos. O GAETS foi admitido como amicus curiae e eu tive a honra de fazer a sustentação oral, junto com o colega do Rio de Janeiro, Pedro Carriello. Foi a primeira ordem concedida no mérito em habeas corpus coletivo no STF para possibilitar prisão domiciliar a essas mães presas preventivamente que, muitas vezes, davam a luz na cadeia e viviam com seus filhos de colo no cárcere.
Rafael Muneratti em sustentação oral do julgamento conjunto ADC 43, ADC 44 e ADE 54
Adriana: A questão da liberdade religiosa, na qual tive o privilégio de fazer a sustentação juntamente com a colega Fernanda da DPESP, na qual, firmou-se tese favorável ao que postulávamos, no sentido de se admitir que candidatos em concurso público pudessem fazer provas em dias ou horários distintos dos demais em razão de crença religiosa. A afirmação dos direitos fundamentais é super importante para a Instituição e para os nossos assistidos!
Adriana durante sustentação oral no julgamento da RE 611874 e da ARE 1099099
E, por fim, o que você acha que precisa ser feito para o fortalecimento da Defensoria Pública?
Rafael: Dentro do contexto da nossa conversa, eu acredito que o fortalecimento da Defensoria Pública passa, obrigatoriamente, pelo reforço da sua atuação perante os Tribunais Superiores. Acredito que todas as Defensorias Estaduais, sem exceção, devem cuidar e acompanhar seus processos nos Tribunais Superiores e, se possível com representações em Brasília e defensores(as) destacados para tanto. Presença que também contribuirá, por consequência, para o fortalecimento da atuação do GAETS. Adriana: Penso que o fortalecimento da Defensoria passa necessariamente pelo reconhecimento do trabalho sempre aguerrido das defensoras e defensores na efetivação dos direitos dos vulneráveis e na realização da justiça social. Para tanto, mister a sensibilização dos governantes para que, compreendendo o significado e importância da Instituição, por meio de ações afirmativas em prol da Defensoria, possam viabilizar seu crescimento e o cumprimento de sua função constitucional.
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