Nº 029 - 21 de setembro de 2020
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Izabel de Loureiro Maior
Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência
Nesta segunda-feira (21 de setembro) celebra-se o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência. A data é um convite para a reflexão sobre como promover maior inclusão, dignidade, direitos e bem-estar para as 45 milhões de pessoas com deficiência que vivem no Brasil.
Em alusão à data, a assessoria de comunicação da ANADEP traz uma entrevista especial com Izabel de Loureiro Maior - médica, professora aposentada da UFRJ e a primeira pessoa com deficiência a assumir a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Na entrevista, Izabel de Loureiro Maior traz detalhes da história da antiga Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) e da luta histórica para se aprovar a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela ONU em 13 de dezembro de 2006.
Izabel também avalia o papel do Estado na promoção e garantia dos direitos das pessoas com deficiência, bem como a importância da inclusão digital.
Confira na íntegra:
Especial: Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência
ANADEP -
Como e quando começou o movimento de luta pelos direitos das pessoas com deficiência no Brasil?
O movimento de pessoas com deficiência, como grupo e segmento de protagonistas, começou no final da década de 1970 e se fortaleceu com o ano internacional da pessoa com deficiência, promulgado pela ONU em 1981. A partir daí, o movimento obteve desenvolvimento e visibilidade dos protagonistas, como sujeitos de direitos que podiam falar por si mesmos. Essa foi a grande diferença. Isso não quer dizer que não houvesse antes ações voltadas aos direitos das pessoas com deficiência, mas eram basicamente atuações de profissionais das áreas da saúde, da educação e da assistência social que visavam ao atendimento e por isso eram chamadas associações PARA pessoas com deficiência. O contraponto a tudo isso foi o movimento DE pessoas com deficiência e associações DE pessoas com deficiência como sujeitos de direito e que pudessem representar a si mesmos e não mais ter o lugar de fala ocupado por seus pais ou pelos profissionais que antes representavam as suas demandas.
2010- com principais lideranças do Movimento das Pessoas com Deficiência, em Brasília (Acervo da Izabel Maior)
Por que o movimento entendeu ser importante uma Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência?
A ONU já havia elaborado várias declarações, desde a década de 1970, durante o ano internacional e nos dez anos que se seguiram. A chamada "Década das Pessoas com Deficiência" teve nos países ocidentais vários programas e projetos, como o Programa Mundial de Ação para as pessoas com deficiência e, ao final da década, as “Regras Gerais para a Equiparação de Oportunidades das pessoas com deficiência”, que tinha muitas informações pertinentes para traçar políticas públicas.
Acontece que esses documentos não eram vinculantes e não se tornavam leis nos países porque não eram nem assinados, nem ratificados pelos países-membros da ONU. Ficava, na verdade, uma grande expectativa, se serviriam de apoio para a elaboração das políticas nacionais, mas elas não aconteciam na maioria das vezes.
Somente 20 anos depois, em 2001, começou-se a elaborar uma convenção que seria apresentada no México. A partir disso, a ONU autorizou um Comitê “ad hoc” para elaboração da Convenção, que na verdade ainda era para verificar a conveniência de uma Convenção de Direitos Humanos específica, porque sempre ficava aquela dúvida, se já existe a Declaração Universal dos Direitos Humanos como se faria mais uma vez uma subdivisão desses direitos?
O que não é verdade, pois a Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência traz os mesmos direitos, acrescidos de apenas um que é justamente o direito à acessibilidade, que nós chamamos de direito básico ou direito intermediário para o alcance dos demais direitos que já estão na Declaração.
Então, a importância que o movimento viu foi para que os países tivessem a obrigação perante a ONU e perante Comunidade Internacional de assinar e de ratificar a Convenção, tornando-a lei nos territórios nacionais.
Mesmo existindo boas leis nos anos 2000, a Convenção trouxe avanços e, portanto, o nosso Movimento Nacional de Pessoas com Deficiência apoiou fortemente, tanto a área governamental, quanto a área não-governamental, toda a sociedade civil e os órgãos de controle, o Ministério Público, a Defensoria Pública, todas as instâncias do Judiciário e Legislativo deram apoio maciço para o Brasil atuar positivamente em relação à elaboração de uma convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência.
A senhora participou das reuniões de elaboração da Convenção?
Eu assumi a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), em 2002, exatamente no início dos trabalhos da elaboração da Convenção, em Nova York. Naquela ocasião, o Brasil era representado, localmente, pelos diplomáticos, mas nós dávamos a assistência técnica correspondente. Coube a mim, estabelecer um contato com o Itamaraty, com a missão em Nova York e com o CONADE (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência) e com todos que tivessem interesse nesse debate internacional. Tivemos participação nas reuniões regionais e no GRULAC (Grupo Latino-Americano e de países do Caribe). Depois, eu participei, no último ano, no fechamento do texto que veio a ser aprovado em dezembro de 2006. Foi uma experiência enriquecedora para todos que estiveram na ONU, representantes governamentais e sociedade civil. Uma experiência para toda vida.
Quais eram as principais reivindicações do movimento quando da elaboração da Convenção?
Eram 192 países e 800 pessoas com deficiência que, pela primeira vez, diretamente, participaram dos debates substantivos para elaboração de um documento tão importante como uma convenção. Nunca, nenhum outro segmento tinha tomado assento nas galerias e tinha tido direito à palavra. Portanto, as reivindicações eram muitas e algumas delas não puderam ser aproveitadas, mas a grande maioria, com o apoio do Brasil e de muitos países, foram inseridas na Convenção. São ideias de coautoria da sociedade civil e por isso temos uma convenção moderna e tão emancipatória.
Entre os principais pontos, eu destacaria: o protagonismo, direito de escolha, ser considerado parte da diversidade humana, a não discriminação e o direito à acessibilidade e, também entram, e isto pode ser encontrado no artigo 3.º da Convenção, o direito igual do homem e da mulher, o direito da criança a manter sua identidade de criança com deficiência e a participação das pessoas com deficiência na elaboração de todas as políticas que lhe digam respeito.
A segunda questão era necessidade do direito à acessibilidade e, por fim, a não-discriminação.
A senhora foi a primeira Secretaria Nacional de direitos das pessoas com deficiência no Brasil, por que era importante o Brasil ter uma Secretaria com esta temática?
Em 1986 foi criada a Coordenadoria Nacional para a Integeração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), órgão ligado a Presidência da República. Com ela, o principal objetivo era existir um órgão que tivesse respaldo político e força suficiente para fazer com que os setores e as áreas governamentais se interessassem, dentro de suas competências e atribuições, pelo recorte da deficiência.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que é de grande importância para o movimento, surgiram preceitos legais constitucionais que dizem respeito às pessoas com deficiência e com a terminologia pessoa portadora de deficiência, o que foi um avanço para época. A partir dali, nós sentimos que todas as leis deveriam contemplar o segmento das pessoas com deficiência por suas especificidades.
Mas, ao mesmo tempo em que as leis eram feitas e as políticas começaram a ser esboçadas, houve uma mudança muito grande porque a Coordenadoria perdeu o status e foi vinculada à área da assistência social, com muito menos capacidade de interagir com as outras pastas. Em 1995, a temática foi transferida para a Secretaria de Cidadania que, posteriormente, se transformou em Secretaria de Direitos Humanos.
Daí, surgiu a necessidade de crescermos novamente em termos de estrutura do governo, não apenas na quantidade de pessoas na equipe, mas especialmente no nível hierárquico. Assim, com a Secretaria Nacional, criada em 1995, houve a possibilidade de sermos ouvidos e a possibilidade de dialogar, de igual para igual, com outros Ministérios.
Nestes anos a senhora considera que houve conquistas? Se sim, quais as principais?
Se nós pensarmos nos 40 anos, desde o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência, de 1981 até agora, as conquistas foram inúmeras. Embora você não veja todas as pessoas com deficiência nas escolas, nem no mercado de trabalho, você vê uma grande quantidade de políticas públicas e possibilidades que as pessoas com deficiência anteriormente não perceberiam.
Eu vejo como principais pontos: a visibilidade das pessoas com deficiência; a redução do estigma, do preconceito e da discriminação (não significa dizer que isto acabou); a existência de políticas públicas nas diversas áreas; a educação inclusiva como um grande valor que foi conseguido especialmente de 2004 para cá; aumento grande na formação de equipes de reabilitação; centros de reabilitação; a concessão dos equipamentos que as pessoas com deficiência precisam, como aparelhos auditivos, bengalas, muletas, cadeiras de rodas, próteses, órteses de todo o tipo, bolsas de colostomia e equipamentos para área da deficiência visual; a lei de reserva de vagas em concursos públicos; o Decreto da Acessibilidade de 2004; os tratados de direitos humanos; o fortalecimento dos conselhos de direitos; e o benefício de prestação continuada (BPC).
Vejo grandes conquistas, como enumerei, mas vejo que há necessidade de mais fiscalização do governo e do controle social para que os direitos básicos, começando pela acessibilidade, aconteçam, seja nos espaços e prédios públicos, nos transportes e na área da comunicação. Almejamos que acessibilidade realmente seja cumprida e faça com que as pessoas tenham em todos os aspectos da vida social, a possibilidade de participar em igualdade de oportunidades.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência foi uma destas conquistas? Se sim, por que?
A Lei Brasileira da Inclusão (Lei 13.146/2015) entrou em vigor em janeiro de 2016. É uma legislação que traz uma atualização em relação às nossas leis e aproveita ao máximo tudo que nós tínhamos, especialmente, em relação às questões de políticas de ação afirmativa como as cotas, a concessão do BPC, educação inclusiva, entre outros.
Mas o seu ponto central é a adoção do modelo biopsicossocial de avaliação da deficiência e o conceito de pessoa com deficiência a partir de uma revisão do que nós temos feito até agora. Nós já tínhamos visto que não era justo que uma pessoa com deficiência a cada vez que precisasse acessar uma política pública tivesse que buscar um atestado médico para dizer qual era a sua doença, quando o que ela apresenta é uma condição de diversidade humana e não uma patologia.
Outro ponto que considero importante é justamente a nova figura da tomada de decisão apoiada, rechaçando a questão da interdição das pessoas com deficiência e transformando a interdição, mesmo parcial, para questões negociais e patrimoniais. A própria pessoa com deficiência escolhe duas pessoas de sua confiança e isso ainda é um processo ligado ao Poder Judiciário, com auxílio de uma equipe multiprofissional.
Outra conquista é a tipificação dos crimes de discriminação por motivo de deficiência.
No que o Brasil precisa avançar em relação aos direitos das pessoas com deficiência?
O Brasil precisa aprender a elaborar, implementar, fiscalizar e cumprir as políticas públicas. Aqui, o poder de fiscalização é muito fraco. Toda lei que existe tem de ser cumprida e todo direito precisa ser exercido por quem o detém. É isto que está faltando para que tenhamos os direitos, visto que eles estão todos aí na legislação.
Aqui, quem menos cumpre os direitos das pessoas com deficiência são os governantes, que são responsáveis pela acessibilidades nas cidades e municípios. É uma obrigação da União, Estados e municípios que devem legislar sobre pessoas com deficiência.
No meu entendimento, nós precisamos avançar no cumprimento das políticas públicas e na penalização daqueles que descumprem as políticas públicas referentes às pessoas com deficiência.
Qual a importância de datas como a do dia 21/09 para o movimento?
Em 2005, através da Lei 11.133, de iniciativa do Senador Paulo Paim (PT-RS), foi criado, formalmente, o Dia Nacional de Luta. É uma data que está no nosso calendário nacional.
O dia já havia sido proposto em 1982, logo depois do primeiro Congresso Nacional das Pessoas com Deficiências, de 1981, Ano Internacional da ONU para pessoas com deficiência. Foi proposto por Cândido Pinto Melo, uma das lideranças do movimento e um ativista político em favor dos direitos humanos naquele período da ditadura militar. Ele foi um líder muito importante porque politizou o próprio movimento das pessoas com deficiência no entendimento da conjuntura que nós vivíamos em todo aquele período no final dos anos 70 e a década de 80, até que trabalhamos na Assembleia Constituinte para colocar os direitos na Constituição Brasileira.
Assim, é um dia simbólico para dar visibilidade ao Movimento de luta. Este ano, por causa da pandemia do coronavírus, não teremos eventos presenciais, mas nem por isso será menos importante. É um dia de luta, de avanço, de novas conquistas ou, pelo menos, de impedir que haja retrocessos.
A grande luta desta vez é mostrar que o mundo virtual precisa também de acessibilidade. Precisamos de legenda, precisamos da presença de intérprete de sinais ou de aplicativos que sejam capazes de colocar a Língua Brasileira de Sinais com qualidade para as pessoas com deficiência e que as lives tenham todos estes recursos à disposição, e também linguagem simples.
Esta é a grande luta: não deixar o ano passar sem as comemorações e continuar lutando pela sobrevida das pessoas com deficiência e pelo atendimento de qualidade das pessoas com deficiência, quando elas, porventura, na pandemia Covid-19, precisam de atendimento em saúde. Este é o meu grande desejo, que todos possam ser atendidos com a melhor qualidade possível.
Qual a importância de instituições como a Defensoria Pública na defesa dos direitos das pessoas com deficiência?
As pessoas com deficiência carecem de muita informação a respeito de seus próprios direitos e a Defensoria Pública tem um trabalho fundamental, uma vez que é uma instituição pública voltada para a assistência e a orientação jurídica a qualquer pessoa que não possui condições financeiras de pagar ou que tem despesas altas suficientes para não permitir que ela contrate um advogado.
Nos últimos anos, a Defensoria Pública ganhou mais consistência e é mais abrangente no território nacional, e passou a ter também as suas subdivisões, suas coordenadorias vinculadas a determinados grupos vulneráveis, como o atendimento às pessoas com deficiência. Fica mais fácil de entendermos o quanto é importante a participação do defensor público na defesa dos direitos porque se considerarmos que mais de 80% das pessoas com deficiência são pessoas carentes, economicamente falando, elas já seriam naturalmente público da Defensoria Pública quando precisam de ter seus direitos garantidos frente à aplicação da lei.
Então, é natural que muitas pessoas com deficiência ainda não procurem a Defensoria Pública por não conhecer, mas, por outro lado, outros, por serem mais pobres, já são naturalmente encaminhados também para o atendimento pelos defensores públicos. E não é só a questão de carência, é a preparação mesmo do defensor público para lidar com direitos constitucionais, com direitos de toda a natureza, e para poder atuar protegendo os direitos que estão na legislação e também verificando de que maneira a legislação não deixe de ser cumprida pelos vários outros atores envolvidos na sociedade.
Acredito que precisamos estreitar o relacionamento dos conselhos de direitos das pessoas com deficiência com as Defensorias Públicas, convidar mais e participar mais das atividades da Defensoria Pública e estar mais presente, assim como já vínhamos fazendo há mais tempo junto ao Ministério Público, tanto com o Ministério Público Federal como o Ministério Público dos Estados. Assim vamos poder cercar as pessoas com deficiência de bons defensores tanto dos direitos coletivos como dos direitos individuais. Vejo como muito importante esta aproximação e creio que possa ser uma das maneiras de evitarmos que as leis não sejam fiscalizadas e os direitos deixados de lado.
Quero manifestar meu apreço pela participação da Defensoria Pública na vida das pessoas com deficiência e na garantia dos direitos que tão arduamente foram conquistados ao longo das últimas quatro décadas e que são comemorados no Dia Nacional de Luta, 21 de setembro, que a Defensoria Pública, cada vez mais, se torne um parceiro próximo de todos nós.
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