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Nº 051 - 27 de agosto de 2020
Liszt Vieira
O "História de Defensor" dessa semana traz uma entrevista especial com o defensor público aposentado do Rio de Janeiro: Liszt Vieira. 
 
Autor dos livros "A Busca" e "A Democracia Resiste”, Liszt Vieira viveu um dos períodos mais obscuros da história do Brasil: a ditadura militar (1 de abril de 1964 a 15 de março de 1985). Ele fala, por exemplo, da relação com o movimento estudantil à época, a prisão e o exílio.
 
Levando o legado da Defensoria Pública de promoção e proteção dos direitos humanos, Liszt Vieira foi um dos tantos brasileiros que lutaram pela liberdade e a democracia. Hoje, após se deparar com as manifestações de intervenção militar e pedidos de fechamento do Congresso Nacional, o defensor afirma que a memória é fundamental para compreender o presente e construir o futuro. 
 
ANADEP - 
Dr. Liszt Vieira o senhor pode nos contar sua história na Defensoria Pública? Como foi seu ingresso?
Ingressei na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em 1966. Minhas primeiras comarcas foram Vassouras e Miguel Pereira, estava lotado nas duas cidades. Levei um susto com meu primeiro processo na cidade de Vassouras: defender um camponês acusado de estuprar a filha. Foi o único caso desse tipo que tive na carreira.
Quais os trabalhos que mais te marcaram dentro da Instituição?
Marcou-me muito o trabalho na vara cível e família de Duque de Caxias, em 1967/68. Muita miséria. O caso era de uma senhora com dois filhos no colo, que denunciava o abandono do marido no lar. Intimado a comparecer, o marido dizia: "Dr. tenho dois filhos com esta e dois filhos com outra. E estou desempregado".
 
Meu trabalho na Vara Cível de São Gonçalo também foi marcante. Recebi certa vez cinco pessoas pobres dizendo que haviam comprado o mesmo terreno e apresentavam, como documento de compra, um papel de embrulho assinado por um estelionatário. Outro exemplo inesquecível foi na 5ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Uma senhora, testemunha de defesa, disse ao juiz, na cara do policial, testemunha de acusação, que viu quando ele colocou droga no bolso do jovem acusado. Rara coragem!
Em que ano o senhor foi exilado? Quais eram as acusações do governo para tirá-lo do seu país? Como foi essa fase na sua vida?
Já formado em direito, ingressei no curso de Ciências Sociais da UFF e participava de atividades do movimento estudantil. Em 13/12/1968 foi editado o Ato Institucional nº 5 que suprimiu o pouco de liberdade que ainda restava no país. Participei da resistência contra a ditadura militar, tive de entrar na clandestinidade, posteriormente fui preso e banido do país junto com 40 presos políticos liberados após o sequestro do embaixador alemão no Rio de Janeiro em junho de 1970. Eu descrevo minha experiência na clandestinidade e no exílio (na Argélia, Cuba, Chile de Allende até o golpe de Pinochet, Argentina e França) no meu livro “A Busca – Memórias da Resistência”. Não é uma biografia apenas factual, preferi dar ao livro um estilo literário. Fui honrado na segunda edição deste livro com a apresentação escrita pelo colega André Castro, ex-presidente da ANADEP.
 
Saí do Brasil em junho de 1970. Minha organização participou de ações armadas contra a ditadura militar. Estive preso no DOI-CODI de São Paulo, a então chamada Operação Bandeirantes, um quartel não oficial destinado a torturar e às vezes assassinar presos políticos. Depois de dois meses, fui enviado para o DOPS, onde abriram um processo que, com o banimento, foi arquivado.
 
 
O senhor encontrou ou conheceu outros brasileiros no exílio?
Convivi com muitos brasileiros em todos os países por onde andei. Eram milhares de exilados do Brasil e de outros países da América Latina. Ao escapar da ditadura fascista de Pinochet, no Chile, em setembro de 1973, pedi asilo na embaixada Argentina, em Santiago, que recebeu 700 pessoas, das quais 150 crianças. Após dois meses trancados na embaixada, fomos enviados à Argentina. Minha mulher, então grávida, foi aceita como asilada na Alemanha. Meses depois, fui aceito como exilado na França, onde vivi cinco anos. Lá, trabalhei, estudei e fiz Mestrado em Economia do Desenvolvimento na Universidade de Paris. Minha filha nasceu em Berlim, em maio de 1974, mas o Consulado Brasileiro se recusou a registrar o bebê. Ordens do Brasil! Após um ano, minha mulher veio morar comigo na França, onde o Consulado Brasileiro também recusou o registro. O bebê ganhou o status e a carteira de refugiado político, como seus pais. Conto essa e outras histórias no meu livro A Busca.
 
 
Foto de parte dos 40 presos políticos libertados há 50 anos após o sequestro do embaixador alemão no Rio de Janeiro.
Em 1979, o então presidente João Baptista Figueiredo assinou a Lei da Anistia, que beneficiou presos políticos e permitiu o retorno das pessoas exiladas, que não podiam voltar ao país sob o risco de serem presas. Comente
Foi muita emoção retornar ao Brasil depois de dez anos de exílio. Confesso que tive, no início, um certo estranhamento. Por exemplo, a velocidade dos ônibus, a informalidade das pessoas no trato e nos horários. Ninguém dizia adeus ou até a próxima. A despedida era “aparece lá em casa”. Certa vez, ao procurar trabalho, um amigo me disse: aparece na praia. A ideia de que se pode conseguir trabalho conversando na praia não existe na Europa. Retornei em dezembro de 1979 e fui reintegrado à Defensoria Pública pela Lei da Anistia em 1981. Em outubro de 1982 fui eleito deputado no Rio de Janeiro.
 
Anos 80, quando eu era deputado, numa manifestação de mulheres. 
Há alguma crítica à Lei da Anistia, uma vez que ela conferiu autoanistia para militares acusados de crimes de violação dos direitos humanos?
Isso é uma longa discussão. Anistiar os militares e civis, funcionários públicos, pagos pelo Estado com dinheiro público, que cometeram crimes contra a humanidade, como tortura e assassinato de presos políticos, foi uma conciliação imposta pelo governo militar. Até hoje pagamos o preço político dessa anistia, ao contrário de outros países, como Chile, Argentina e Uruguai que condenaram os militares assassinos.
Desde as eleições de 2018, há fortes manifestações nas ruas que pedem, por exemplo, o fechamento do Congresso Nacional, do STF e a volta da da Ditadura Militar. Qual sua análise sobre esses fatos?
Para explicar isso e a resistência das forças democráticas contra o projeto de implantar uma ditadura é que eu escrevi o livro “A Democracia Resiste”. Há no Brasil um eleitorado tradicional de 30% que vota na direita, e 30% que vota na esquerda. Os 40% restantes têm um movimento pendular. Votaram antes no PT, votaram em 1968 no atual presidente, sem levar em conta que ele defendia a tortura, armas para todos, guerra civil, pregava violência, discriminava mulheres, gays, negros e índios. Seu objetivo é destruir, criar o caos para justificar a implantação de uma ditadura para restabelecer a ordem. Parece que não conseguiu tudo o que queria, mas já fez um estrago enorme destruindo a educação, a saúde, a pesquisa científica, a cultura, os direitos humanos, o meio ambiente, a política externa independente etc.
 
Há várias afirmações que dizem que o Brasil não tem memória referindo-se, por exemplo, a falta de um museu que lembre as vítimas de abusos cometidos durante regimes militares, como o Museu da Memória (Santiago/Chile). Qual sua opinião sobre isso?
A memória é fundamental para compreender o presente e construir o futuro. As instituições culturais e históricas estão sucateadas. Em muitos países, a memória é cultivada e repassada às novas gerações. Em Cartagena, por exemplo, existe um museu da tortura. Em Berlim, um museu do Holocausto. No Brasil, existe um Memorial da Resistência, no antigo DOPS de São Paulo, mas é pouco para o alcance e a gravidade dos crimes cometidos pela ditadura militar.
Em 2014, o senhor recebeu o Prêmio Palmes Académiques concedido pelo Governo Francês por relevantes serviços prestados na área de cooperação científica e cultural. O que isso significou para você?
Foi uma honra receber esse Prêmio. Fui presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro por dez anos e organizei projetos de pesquisa com o Museu de História Natural de Paris. Acho que foi por essa razão, e por minha vivência na França, que fui agraciado com esse Prêmio.
E, por fim, o que você acha que precisa ser feito para o fortalecimento da Defensoria Pública?
A Defensoria Pública se fortaleceu muito quando conquistou o direito de promover o interesse público – antes considerado monopólio do Ministério Público – e não apenas patrocinar interesse particular. A Defensoria Pública está hoje presente nas grandes causas identitárias e sociais, desde a 1ª. instância até o Supremo Tribunal Federal. É importante prosseguir na política de aproximação com a população mais carente, especialmente nesse período de pandemia, para a efetivação de políticas públicas constitucionais e a realização dos direitos fundamentais. Ganhando os vulneráveis, a Instituição se fortalece. Garantir o acesso à justiça é essencial numa democracia, ainda mais com a enorme desigualdade social que há no Brasil. Para tanto, é necessário estar sempre atualizado com a tecnologia para promover melhores condições de atendimento ao assistido.
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